Correio da Cidadania

O Governo Lula-Alckmin e as relações internacionais do Brasil

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Palácio Itamaraty – Wikipédia, a enciclopédia livre
Após a desastrosa gestão de Ernesto Araújo à frente do Ministério das Relações Exteriores, sucedida por outra, no mínimo, medíocre, comandada por Carlos Alberto França, é necessário reconstruir as antigas e sólidas estruturas do Itamaraty, profundamente abaladas durante o governo Bolsonaro.

O Itamaraty possui uma tradição que remonta aos tempos do Barão do Rio Branco e que conseguiu manter as suas diretrizes basilares ao longo de governos e regimes de diferentes matizes (inclusive ditaduras). Essa tradição tem como eixo o primado da manutenção do profissionalismo na implementação das relações internacionais brasileiras.

Assim, foi possível, ao longo de mais de um século, estabelecer alianças, expandir a influência comercial e adotar estratégias com vistas à projeção do Poder Nacional. No entanto, como asseveram especialistas de perspectivas distintas, logo no início do governo Bolsonaro houve a ideologização da diplomacia brasileira, então sob o comando do desastroso Ernesto Araújo.

Em decorrência do caminho trilhado, repleto de equívocos e de afrontas a governos com os quais o Brasil mantém negócios, o país sofreu e ainda sofre reveses nos assuntos internacionais. Não bastasse isso, a irresponsabilidade do atual presidente em relação às questões climáticas, à proteção da Amazônia e aos povos originários, somada aos flertes com a extrema direita de orientação fascista, converteu o Brasil em algo muito próximo de um pária internacional.

Assim, defendo a perspectiva de que o país deva retomar a sua tradição diplomática de forma a corrigir os lastimáveis equívocos cometidos nos últimos quatro anos. Desse ponto de vista, recomendo que o país deva estreitar laços com países com os quais possua relações formalmente estabelecidas, independentemente de orientações ideológicas e/ou políticas, sejam elas perenes ou momentâneas. Nesse aspecto, muitas das heranças da Política Externa Independente podem ser de inestimável valia para o nosso Tempo Presente.

Ato contínuo, o Brasil deve reforçar as suas relações com os países do subcontinente sul-americano, com vistas à consolidação do Mercosul e de outros organismos regionais, extremamente prejudicadas pelas políticas atuais. Isso não implica a renúncia de princípios, mas expressa uma postura de não intervenção em negócios internos de nações soberanas, uma pedra angular das nossas Relações Internacionais. Ao mesmo tempo, a diplomacia brasileira deve fortalecer os laços com os EUA, estremecidos em função do envolvimento indevido de Bolsonaro no processo eleitoral daquele país, ao defender Trump e postergar o reconhecimento da legítima vitória de Biden sobre o seu adversário.

Além disso, o Brasil deverá retomar o protagonismo internacional e assumir um papel de liderança no Brics. Em relação aos países que compõem o Brics, embora hoje o Brasil seja apenas a terceira economia do bloco, durante a gestão Lula nosso país foi um grande protagonista. Hoje é necessário pensar na expansão do bloco na África, com a possibilidade de inclusão da Nigéria e, se possível, de outros parceiros. Além disso, o Brics tem possibilidades de expansão no Oriente, em especial em algumas áreas do mundo muçulmano e na América Latina, onde Argentina e Colômbia poderiam fortalecer o bloco na região. Contudo, esses avanços, dependem em grande medida da negociação da crise decorrente dos conflitos entre a Índia e a China. Mais uma vez, o Brasil pode ser um bom mediador.

Enfim, a nossa diplomacia deve agir na defesa de uma agenda multilateral ampla, definir claramente os seus compromissos com a proteção das florestas e da agenda climática, com a coibição do trabalho análogo ao trabalho escravo, com superação da fome e da extrema pobreza, com a garantia da igualdade de gênero e com a defesa dos direitos LGBTQIA+, com a proteção dos povos originários e com todas as liberdades democráticas. Em síntese, é possível empregar uma política doméstica progressista e democrática para alavancar a política externa, de forma a, mais uma vez, tornar o Brasil uma referência internacional. Essa perspectiva, seguramente, terá repercussões de grande monta em diferentes campos e, em especial, na economia brasileira.

O Brasil, sob um novo governo democrático e de reconstrução da soberania nacional, deverá retomar uma estratégia no campo das relações internacionais que, de um lado, valorize as negociações multilaterais e, de outro, demarque claramente os seus interesses como potência emergente. Para fazê-lo, o país precisa recuperar a sua proeminência no cenário internacional, erodida por erros grosseiros em sua diplomacia recente e pela subserviência às potências tradicionais. Isso não será tarefa fácil, uma vez que o governo atual assumiu compromissos antinacionais associados aos interesses do grande capital e das chamadas potências centrais. Em decorrência, faz-se urgente distinguir os interesses nacionais e assinalar a retomada de uma perspectiva de diplomacia propositiva em defesa da soberania e dos interesses nacionais.

Ainda, o novo presidente deve colocar-se à frente de uma diplomacia de negócios, tornando-se personagem central na promoção dos interesses brasileiros, com vistas à abertura de mercados tanto para as nossas estatais quanto para o setor privado. De fato, já se percebe a ação do presidente Lula nesse sentido, com a sua prevista participação tanto no Fórum Econômico Mundial (Davos) quanto na COP-27 (Sharm El Sheikh, Egito), mesmo antes de tomar posse. Sublinhe-se que os convites para essas participações expressam a deferência dos principais atores globais e o reconhecimento de que Lula é um estadista de grosso calibre.

A partir dessas premissas fundantes, cumpre de imediato imprimir as diretrizes que se seguem:

a) retomada do papel de proeminência que o Brasil teve no Brics, duramente esgarçado pelo isolamento internacional e pela subalternidade às potências centrais assumidas nos últimos anos. Ainda no que se refere ao Brics, o país deve buscar junto aos parceiros o reforço dos fundos para o financiamento ao desenvolvimento industrial dos países membros. Em especial, no que se refere à China, o Brasil deve assinalar a necessidade de repactuar as negociações comerciais de tal modo que deixe de exportar apenas commodities e tenha condições de expandir as exportações que possuam maior valor agregado. Essas tratativas não serão fáceis, mas o país poderá explorar a guerra comercial entre a China e os EUA, para melhorar as bases de negociações com ambos os campos.

b) O Brasil deverá retomar e acelerar o processo de integração do Mercosul e, nesse sentido, explorar positivamente a crise argentina auxiliando o país vizinho por intermédio do estreitamento tanto das relações do bloco quanto bilaterais. Ainda em relação ao Mercosul, faz-se necessário avançar as negociações com a Comunidade Europeia e buscar pactuar acordos com os países do Caribe e com o México. Esses pontos são extremamente complexos e há divergências entre os membros do bloco e, portanto, merecem uma discussão mais aprofundada.

c) O Brasil deverá retomar a sua atuação propositiva na África e rapidamente recuperar os prejuízos ocasionados pelo descaso em relação ao continente desde 2016.

d) O Brasil terá que encetar negociações nada fáceis com os EUA, que no presente contexto assumem um perfil bastante protecionista. Nesse campo, deverá explorar a guerra comercial que a maior potência global está a mover contra a China. Assim, o Brasil deverá buscar o estabelecimento de negociações e procurar explorar possibilidades para exportar produtos com valor agregado e não apenas commodities.

As diretrizes protecionistas, sempre presentes na política externa estadunidense, antes mascaradas, tornam-se cada vez mais patentes. Desse modo, a diplomacia brasileira deve explorar a postura do novo governo em defesa de ações concretas para superar os desafios climáticos e, em especial, em defesa da Amazônia, para se reposicionar em relação aos EUA e à Comunidade Europeia. Além disso, o Brasil deve buscar o princípio da reciprocidade nas negociações entre as duas maiores potências continentais. Nesse processo, deve-se atentar para que eventuais negociações com os EUA não coloquem obstáculos para a consolidação do Mercosul e, em futuro próximo, ao estabelecimento de uma área de livre comércio no interior do bloco.

e) O Brasil precisa definir, de forma mais consistente, parcerias com o objetivo de pressionar por reformas na ONU, em especial na redefinição do seu Conselho de Segurança. Essa é uma tarefa difícil, em que houve alguns avanços durante o período Lula, mas houve a erosão das estratégias encaminhadas naquele período, mesmo durante o primeiro governo Dilma, uma vez que, em decorrência da profunda crise política interna, o país se recolheu e perdeu proeminência internacional durante aquela gestão.

f) Por fim, o Brasil deve se colocar como um possível mediador para buscar soluções plausíveis para o conflito bélico entre a Rússia e a Ucrânia e, de forma indireta e ampliada, entre a Rússia e a OTAN.

Enfatizo, ainda, que as perspectivas agenciadas nesse arrazoado são parciais, provisórias e sujeitas a reconsiderações. Por fim, sublinho que muitos dos aspectos tratados neste artigo conformam um leque mais amplo de reflexões consideradas importantes para a política externa do Brasil.

Sidnei Munhoz é professor do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Estadual de Maringá (UEM) e da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Autor de “Guerra Fria: História e Historiografia”.

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