Correio da Cidadania

100 anos da Declaração Balfour

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No dia 29 de setembro de 1923, entrou em vigor o chamado “Acordo de Mandato” da então Liga das Nações, uma fraude jurídica que deu vida “legal” e verniz de “direito internacional” à Declaração Balfour, de 2 de novembro de 1917. A combinação da promessa britânica de entregar uma terra que não era sua nem habitada por ingleses para estrangeiros europeus de fé judaica e o mandato colonial da Liga da Nações, denominado também de “protetorado”, é a razão primeira e principal de toda a catástrofe que se abateu sobre o povo palestino e que perdura até hoje, com perigos reais que já ameaçam toda a humanidade.

Como o mandato de protetorado não existiria sem a Declaração Balfour, e esta não haveria sem o acordo secreto denominado Sykes-Picot, de 16 de maio de 1916 (data da última ratificação governamental), entre britânicos e franceses, no qual dão início à ocupação colonial da Ásia Ocidental, ou parcela da parte árabe do denominado Oriente Médio – importante nos determos neste ponto.

Antes de tudo, Sykes (Mark Sykes, pelo lado britânico) e Picot (François Georges-Picot, pelo lado francês) não estavam, a princípio (de 23 de novembro de 1915 a 3 de janeiro de 1916, período das negociações primárias deste entendimento colonial), sós. Embora fossem outras as áreas em questão (do Império Otomano em desmantelamento porque derrotado na 1ª Guerra Mundial), os russos também estavam implicados, por meio de Sergey Sazanov, então ministro de relações exteriores do regime czarista. Não é um mero detalhe porque a Rússia tinha, também, interesses na Palestina, até mesmo territoriais, com pretextos religiosos (ortodoxia cristã), o que interferiria, necessariamente, na definição do que seria o mapa de uma Palestina para eventual domínio britânico e servir de “Lar Nacional Judeu”.

Ocorre que a história reservou algumas surpresas, a mais significativa delas a Revolução Bolchevique, iniciada nos primeiros meses de 1917 e que substituiu o regime dos Romanov pelo dos sovietes de Lênin. Com os bolcheviques no poder, a Rússia se retira dos pactos coloniais, dentre eles Sykes-Picot-Sazanov, que passa à história apenas com os nomes das partes britânica e francesa. E é isto o que pode ajudar a explicar, ainda que em parte, a Declaração Balfour ocorrer em 2 de novembro de 1917, e não antes, pois desde o momento que a Rússia deixa de integrar os interesses conjugados dos que derrotaram a Turquia e espoliam seu império, os britânicos, que ocupavam militarmente partes da Palestina, especialmente Jerusalém, desde exatamente 1917, estavam livres para execução de seus planos e assumir a demanda sionista.


A Declaração Balfour é essencial neste quebra-cabeça. Em primeiro lugar porque dá aos sionistas o que eles não tinham para uma empreitada colonial, a da conquista e colonização da Palestina, isto é, um poder imperial, o britânico, com poder econômico, político, diplomático e, claro, bélico. Num segundo ponto, porque promete, efetivamente, a Palestina a estes europeus de fé judaica que buscam construir um novo Estado, só para si, num modelo já superado desde Vestfália (século 17), isto é, de supremacismo religioso, o judaico, no caso. E, por fim, conforme se depreende das 67 palavras de seu texto, aos originários, isto é, os palestinos, mas se referindo, na prática, aos não judeus, haveria apenas direitos civis e religiosos; os nacionais somente aos judeus. Inaugurava-se o Apartheid!

Mas a Declaração Balfour não propunha a limpeza étnica da Palestina, nem é possível suspeitar previsão neste sentido em suas “entrelinhas”. Afinal, não teria sentido estipular preservação de direitos civis e religiosos de uma demografia que será eliminada, senão o contrário. Esta é uma objeção inicial plausível.

Limpeza étnica vem com o mandato

Mas é no texto do Mandato da Palestina que está a chave para compreender o real papel britânico no planejamento e execução da limpeza étnica. Em seus 28 artigos, o povo palestino não é citado uma só vez, ao mesmo tempo que os estrangeiros europeus de fé judaica, aos quais a Palestina é destinada, são citados como “povo judeu”, aos quais era “reconhecido o vínculo histórico do povo judeu com a Palestina e os fundamentos para a reconstituição de seu lar nacional naquele país”.

Uma falsificação grosseira da história comprovada para justificar o colonialismo. Já na abertura, no segundo dos “considerandos”, é determinado que a “Mandatária deveria ser responsável por colocar em vigor a declaração originalmente feita em 2 de novembro de 1917, pelo Governo de Sua Majestade Britânica, e adotada pelas referidas Potências, em favor do estabelecimento na Palestina de um lar nacional para o povo judeu”, mantida a ressalva de que “nada deve ser feito que possa prejudicar os direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas existentes na Palestina”.

Mas como então afirmar que a limpeza étnica foi definida no documento denominado “mandato”? Lendo atentamente seus 28 artigos, especialmente os primeiros dez, não pairam dúvidas a este respeito, restando, quanto à preservação dos “direitos civis e religiosos das comunidades não judaicas existentes na Palestina”, mera reprodução da Declaração Balfour ou, ainda, entendermos que população não judaica “existentes na Palestina” pode ser, simplesmente, a que porventura venha a restar em algum momento. Mas para esta o Apartheid já estava previsto, pois não teria direitos nacionais.

O Artigo 2º diz que a Grã-Bretanha “será responsável por colocar o país sob tais condições políticas, administrativas e econômicas que assegurem o estabelecimento do lar nacional judaico”. Isso explica, dentre outras coisas, impedir aos palestinos autodeterminação e reprimir suas tentativas neste sentido, especialmente nas brutais repressões de 1929 e de 1936 a 1939, em verdadeiras guerras coloniais, nas quais a resistência palestina foi aniquilada, o que, para alguns, foi decisivo para facilitar a posterior limpeza étnica promovida pelos sionistas, entre dezembro de 1947 e 1951.

Enquanto aos palestinos era negado participar do governo colonial, construir instituições autônomas e se autogovernar, o Artigo 4º impunha que “uma agência judaica apropriada será reconhecida como um órgão público com o propósito de aconselhar e cooperar com a Administração da Palestina em assuntos econômicos, sociais e outros que possam afetar o estabelecimento do lar nacional judaico e os interesses da população judaica na Palestina”. Apenas esta população e seus interesses estavam previstos no texto, novamente recordando que povo palestino não é citado uma só vez.

Para agravar, a futura “agência judaica” passa a ser a Organização Sionista, já que o próprio Artigo 4º a prevê nos seguintes termos: “A Organização Sionista, desde que sua organização e constituição sejam apropriadas na opinião do Mandatário, será reconhecida como tal agência”.

Tornar a demografia da Palestina majoritariamente judaica está determinado no Artigo 6º, que prevê a facilitação da “imigração judaica em condições adequadas e encorajará, em cooperação com a agência judaica referida no Artigo 4, assentamento por judeus na terra, incluindo terras do Estado e terrenos baldios não necessários para fins públicos”. A esta altura, 50% da terra era do Estado, conforme herdado do Império Otomano, restando que “terrenos baldios” poderiam ser todas as partes do território que assim definissem os britânicos ou seus beneficiários, os colonos judeus. Como, aliás, fazem hoje os colonos judeus, protegidos pelas forças armadas sionistas que ocupam a Palestina.

E esta nova demografia estrangeira feita sob medida para a imigração à Palestina seria tornada palestina, isto é, equiparada aos que há milênios ali viviam. O Artigo 7º diz que haverá uma “lei de nacionalidade”, com “disposições enquadradas de modo a facilitar a aquisição da cidadania palestina por judeus que fixam residência permanente na Palestina”.

Até mesmo atividades de governo estão previstas (Artigo 11) para a colonização por estrangeiros judeus, ao prever “um sistema fundiário adequado às necessidades do país, tendo em conta, entre outras coisas, a conveniência de promover o povoamento próximo e o cultivo intensivo da terra”. Não há clareza maior de que se trata de colonialismo por assentamento de nova população!

As obras públicas na Palestina também se dariam em colaboração com a agência judaica, inclusive obtendo lucros para seu projeto geral de tomada da Palestina. À agência judaica seria permitida a construção ou operação de “quaisquer obras públicas, serviços e utilidades, e para desenvolver quaisquer dos recursos naturais do país, na medida em que essas questões sejam não realizadas diretamente pela Administração”, privilégio recusado à população palestina originária e não judaica.

Assim começava, há 100 anos, na prática, o projeto sionista na Palestina. A Nakba, a limpeza étnica massiva, os refugiados, o atual regime de apartheid imposto pelo regime supremacista israelense, as matanças intermináveis, o muro de segregação, o bloqueio assassino à Faixa de Gaza, a miséria e o desemprego, tudo isso começou um século antes. A Grã-Bretanha ainda não pediu desculpas por este crime de lesa-humanidade cometido contra o povo palestino e contra os povos da região, que é continuado. Deve fazê-lo e, mais, compensar a Palestina por este século de tragédia, bem como os demais povos agredidos pelo regime israelense desde que este passou a existir.

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