Quênia: civilização-barbárie
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- Grupo São Paulo
- 11/06/2008
Cerca de 1.500 mortos e mais de 300 mil refugiados, guerra entre etnias, casas incendiadas, mulheres violentadas: era este o saldo, no final de março, dos distúrbios que se seguiram às eleições presidenciais no Quênia, realizadas em dezembro de 2007, e que levaram à constituição de um governo de coalizão em abril deste ano. O estopim da violência: acusações de fraude eleitoral. No final de abril, foi assassinado o presidente da Aliança Nacional da Juventude do Quênia, braço político de uma seita declarada ilegal.
O Quênia é um dos países economicamente mais ricos da África, fundamental para toda a costa oriental do continente. Foi colônia da Inglaterra, interessada em minerais preciosos, madeiras e especiarias, entre 1890 e 1963, ano em que os britânicos foram expulsos e no qual a Inglaterra reconheceu sua independência. No início da década de 1950, surgiu o primeiro movimento organizado de independência e luta pela terra, sendo que desde o começo do século XX o Quênia já vinha sendo palco de revoltas contra os colonizadores. A organização como país é uma construção política decorrente da colonização, que usava também como arma a divisão de etnias aliadas e a união de rivais. Há, no país, mais de 50 tribos divididas entre sete etnias distintas.
A crise do Quênia "pôs à mostra as tensões de classe que vinham aflorando de modo esparso há mais de cem anos", segundo o jornalista Oduor Ong'wen, membro do Fórum Social Africano.
A realidade do país fala por si: na capital Nairóbi, dois terços dos habitantes ocupam apenas 8% da área da cidade, vivendo em favelas; mais de 63% da população urbana não têm acesso à água potável; dois em cada três quenianos sobrevivem com menos de um dólar por dia e grandes extensões de terra pertencem a alguns poucos, enquanto o número dos sem-teto e dos sem-terra aumenta cada vez mais, também por conta da violência durante o processo eleitoral – no final de abril, mais de 140 mil pessoas ainda viviam em tendas.
O jornalista Oduor também relata que o Vale da Fenda, rica região agrícola do país, foi o epicentro dos conflitos. Região fortemente explorada pelos colonizadores britânicos, o vale é palco de disputas sobre a propriedade da terra desde a ocupação colonial. Lá os colonos ingleses se apropriaram de grandes extensões de terra pertencentes aos quenianos, pagando uma quantia irrisória por hectare. Alguns foram ludibriados ao serem induzidos a firmar acordos desvantajosos com os colonizadores e outros foram retirados à força de sua terra comunal. Com o processo de independência, os conflitos pela terra continuaram.
"Os quenianos não estão polarizados porque pertencem a diferentes subnacionalidades. Isso ocorre porque se relacionam de modo diferente com os recursos e forças produtivas do país", analisa o jornalista Oduor em artigo publicado no semanário eletrônico Correio da Cidadania ("Classes e parentescos nos campos da morte do Quênia"). No artigo, Oduor nota como o Quênia e o conjunto dos países africanos são vistos como ainda não alcançados pela "civilização". Mas que civilização é essa?
O uso que as potências imperialistas (as colonizadoras do passado) fazem das rivalidades étnicas para melhor dominar os povos africanos e o diferente tratamento dado (quando dado) pelos meios de comunicação aos diferentes povos do mundo são problemas políticos.
Onde inscrever, entretanto, o fenômeno da rivalidade étnica? Qual a lógica que leva um ser humano com raízes em um determinado grupo étnico a voltar-se contra um ser humano de outro grupo étnico? Outra questão que vem à tona é a sempre presente violência sexual praticada em conflitos. Alguns homens – sim, machos da espécie humana – transformam o corpo em poderosa e violenta arma para subjugar o "inimigo", personificado nas mulheres do grupo rival.
A construção do mundo novo abrange mais do que a luta política. Mas é preciso atuar sempre nos dois campos. Enquanto estes problemas não forem superados, não haverá paz na África.
Andrea Paes Alberico, Alejandro Buenrostro y Arellano, José Juliano de Carvalho Filho, Marietta Sampaio e Thomaz Ferreira Jensen do Grupo de São Paulo, um grupo de 10 pessoas que se revezam na redação e revisão coletiva dos artigos de análise de Contexto Internacional do Boletim Rede, editado pelo Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, de Petrópolis, RJ.
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Artigo publicado na edição de maio de 2008 do Boletim Rede.
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