Os seis meses de Obama e a reflexão de Amin Maalouf
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- Miguel Urbano Rodrigues
- 29/07/2009
Na Conferência que pronunciou em Lisboa, o escritor Amin Maalouf fez uma apologia apaixonada ao atual presidente dos EUA. "Essa pessoa – afirmou – também nos representa". Numa entrevista ao Público expressou a convicção de que o futuro da humanidade, quase a sua sobrevivência, depende do êxito da estratégia de Barack Obama. O eventual fracasso do presidente, em sua opinião, "seria uma tragédia para a América, para o ocidente e para o mundo".
É antiquíssima a tendência em tempos de grandes crises para o estabelecimento de uma ponte entre a sua superação e o aparecimento de um salvador providencial. Admiro Amin Maalouf. Terei sido o primeiro português a escrever sobre o seu belo e comovente livro "As Cruzadas vistas pelos Árabes". Essa antiga admiração pelo escritor humanista justifica a minha surpresa ao tomar conhecimento da sua adesão à perigosa tese dos "salvadores".
Nos milênios transcorridos desde a criação da escrita fonética, alguns homens, apresentando-se como reformadores do mundo, exerceram uma influência decisiva para alterar, recorrendo às armas, o rumo da História. Quase sempre para sofrimento dos seus contemporâneos. Cito, entre outros, Alexandre, César, Gengis Khan, Napoleão e Hitler.
Desconhecer o peso do fator subjetivo na História seria negar uma evidência. Mas basta acompanhar no seu percurso sinuoso a lenta marcha do grande rio da História para se compreender que as grandes transformações que contribuíram para o progresso da humanidade não resultaram da intervenção de salvadores providenciais.
Nem sempre isso foi temporalmente perceptível, mas o sujeito das viragens decisivas foram sempre os povos. O motor dessas mudanças geradoras de avanços civilizacionais não foi este ou aquele indivíduo, mas rupturas, muitas vezes súbitas, provocadas pela intervenção torrencial de massas populares que provocaram a destruição da ordem social preexistente. Isso aconteceu com a Revolução Francesa de 1789 e com as Revoluções Russas de 1917. Sem a teoria, essas revoluções não se teriam produzido, mas o sujeito que tornou possível a mudança – repito – foi nelas o povo, ou mais exatamente uma parcela minoritária da sociedade que atuou em nome do coletivo, traduzindo-lhe aspirações profundas.
A esperança messiânica no aparecimento de um salvador preparado para enfrentar vitoriosamente um presente sombrio e abrir as alamedas de um futuro de paz e prosperidade pode assumir contornos românticos e seduzir muita gente honesta, mas nas suas origens é identificável um pensamento incompatível com o progresso. A História oferece-nos muitos exemplos de salvadores cujo objetivo inconfessado era a defesa da ordem social em desagregação, responsável pela crise.
A mitificação de Obama
A grande crise de civilização que vivemos, inseparável da crise estrutural do sistema capitalista, gerou frustrações e angústias que desembocaram na convicção irracional de que a humanidade, uma vez mais, precisa de um salvador.
Seria incorreto afirmar que assistimos a uma repetição quase mecânica de situações já vividas.
O mundo era pequeno quando na Palestina surgiu um profeta judeu, Jesus. Crucificado pelos seus contemporâneos, os discípulos projetaram dele a imagem do messias redentor e a sua mensagem, muito alterada, deu origem a uma grande religião.
Outros salvadores, profetas e guerreiros, todos diferentes, houve, antes e depois, que deixaram memória como depositários da esperança. Mas nenhum, pelos atos ou pela herança, resolveu magicamente os males cuja denúncia o transformou em pólo da esperada mudança.
O mundo cresceu desmesuradamente. E a dimensão de uma nova e gravíssima crise facilita a compreensão do renascer da fome de um salvador.
Nos EUA puseram-lhe nome: Barack Obama. E na época da informação instantânea, uma campanha de dimensão planetária, desencadeada com o apoio entusiástico dos grandes da União Européia, co-responsáveis pela crise, difunde um discurso cuja conclusão encontramos na mensagem de Amin Maalouf: uma tragédia espera a humanidade se Obama não a salvar.
A campanha, insidiosa, massacrante, é uma ofensa à inteligência. Mas catapultada por governantes, políticos, banqueiros, militares, escritores, jornalistas, chega aos lugares mais remotos da Terra e impressiona milhões de pessoas em todas as camadas sociais.
O efeito é tão perigoso que a necessidade de lutar contra a mitificação do presidente dos EUA se torna um dever imperioso para as forças progressistas.
Não estou em condições de formar uma opinião fundamentada sobre o caráter do cidadão Barack Obama.
A sua inteligência e talento são transparentes. Uma oratória inabitual contribuiu decisivamente para a superação dos obstáculos, na aparência insuperáveis, que encontrou na longa e paciente caminhada que o conduziu à Casa Branca. É também inegável que o apoio do grande capital pesou muitíssimo na escolha que o establishment fez quando Hillary Clinton emergia como favorita. Mas não teria sido eleito se muitas dezenas de milhões de compatriotas seus não confiassem nas suas promessas de mudança. Obama convenceu esses eleitores de que introduziria transformações radicais na sociedade norte-americana e nas relações do seu país com o mundo exterior.
Transcorridos seis meses da sua entrada na Casa Branca, o balanço da presidência não justifica, antes desmente, o otimismo que a envolve, trombeteado pelos cultores da obamamania.
O que fez e não fez em seis meses não corresponde ao compromisso, desrespeita-o. No tocante à política interna, a promessa de enfrentar a engrenagem de Washington, por ele fustigada quando candidato, não foi cumprida. O presidente optou por uma estratégia que privilegia a finança como alavanca de superação da crise, atribuindo papel subalterno a uma política econômica baseada na produção e no emprego. O seu secretário do Tesouro, Thimothy Geithner, é um tecnocrata de Wall Street, empenhado em acudir aos grandes bancos e a empresas gigantes ameaçadas de falência pelas suas práticas fraudulentas. Mecanismos que contribuíram decisivamente para a crise voltam a ser introduzidos no sistema pelos senhores da finança.
Essa política de namoro com o grande capital é tão ostensiva que tem sido criticada no próprio coração do sistema, inclusive por Prêmios Nobel da Economia que apoiaram a candidatura do presidente.
Obama manteve tribunais militares cuja inconstitucionalidade tinha denunciado e adiou para data imprevisível o encerramento do presídio de Guantánamo. Nas frentes da Educação, da Saúde e da Previdência Social, e no campo da política de imigração, o seu governo não tomou também até hoje iniciativas que respondam às promessas feitas.
O endividamento externo continua a ser a base em que assenta a hegemonia econômica mundial do país. Dai uma vulnerabilidade alarmante. Dois países, a China e o Japão, possuem mais de dois trilhões de dólares em títulos do Tesouro americano e em reservas. Se abandonassem o dólar, todo o sistema capitalista ruiria, arrastando aliás ambos.
Palestina, África, Europa e Honduras
No terreno internacional a política de Obama distancia-se também dos compromissos da campanha.
O discurso é outro, mas no fundamental o presidente mantém fidelidade ao projeto de dominação mundial dos EUA como nação predestinada a salvar a humanidade dos perigos que a ameaçam.
Admito que Obama está persuadido de que lhe cabe desempenhar uma missão providencial. Não é um político reacionário, beócio e enfeudado a grandes grupos financeiros.
Mas o seu desejo de não abdicar de um comportamento ético, tal como o concebe, esbarrou desde a entrada na Casa Branca com engrenagens cujo poder tinha subestimado.
Não se pode esquecer que as suas idéias liberais – na acepção americana da palavra – são inseparáveis da convicção de que o sistema capitalista precisa de grandes reformas, mas deve ser preservado custe o que custar.
Em poucos meses concluiu que o seu projeto de reformas teria de ser reformulado, no plano interno e no externo, ajustando-se a uma relação de forças muito complexa. E, de cedência em cedência, a sua política adquiriu contornos cada vez mais aceitáveis pelo establishment.
A insuficiência do seu conhecimento da História terá pesado muito na adoção de orientações para a política exterior que pouco diferem das anteriores, inspiradas pelo sonho imperial.
O chamado discurso histórico do Cairo é uma peça que, despojada da retórica, confirma a aliança dos EUA com Israel. Obama insiste nos dois Estados para a Palestina, mas quando o governo de Telavive intensificou a construção de milhares de edifícios em colonatos na Cisjordânia reagiu timidamente. Por si só a sua afirmação sobre uma "Jerusalém única e indivisível" ilumina a tendência para a capitulação perante o sionismo arrogante e expansionista.
O discurso dirigido de Gana a África foi outro exercício de retórica. O que dele fica de substancial é a defesa da criação de uma força transnacional para defesa da "democracia" no Continente. Traduzidas em linguagem comum, essas palavras anunciam um reforço de intervenções armadas do imperialismo como "solução" para as crises africanas.
O presidente expressou a sua grande preocupação com as situações criadas em Darfur (cujas reservas prováveis de petróleo são enormes) e na Somália, mas não proferiu ali um palavra sobre os acontecimentos em Honduras.
Esse silêncio foi atribuído pela própria imprensa dos EUA à contraditória posição assumida perante o golpe de Estado hondurenho. Obama criticou o gorilazo, não reconheceu o governo fantoche de Micheletti e apoiou a resolução da OEA que exige o regresso de Manuel Zelaya, o presidente legítimo. Mas os EUA não retiraram de Tegucigalpa o seu embaixador, um cubano de Miami que mantém íntimas relações com os golpistas. Indiscrições de militares e de ministros nomeados por Micheletti confirmaram que na embaixada se realizaram reuniões preparatórias do golpe. Para agravar essa rede de cumplicidades, o comando da Força Aérea hondurenha está instalado na base militar norte-americana de Palmerola, a umas dezenas de quilômetros da capital. Foi, aliás, de Hillary Clinton que partiu a idéia da mediação do costarriquenho Oscar Arias, iniciativa que permite aos golpistas ganhar tempo.
É transparente que a ambigüidade da posição dos EUA perante a crise hondurenha reflete o seu temor de que a reinstalação na presidência de Manuel Zelaya fortaleça o bloco de países da ALBA, liderado por Hugo Chávez.
Na União Européia, onde os governantes continuam a derramar elogios sobre Obama, o presidente utilizou na reunião do G-8 uma linguagem barroca para disfarçar o fundamental do recado transmitido: os EUA não abdicam da tarefa, que se auto-atribuíram, de dirigir o mundo, nem aceitarão qualquer projeto que retire do dólar o papel de moeda universal.
Os encontros com Medvedev e Putin deixaram as coisas no pé em que estavam. A troca de sorrisos e de palavras amáveis não pôde disfarçar a desconfiança mútua entre Washington e Moscou. Uma certeza: a OTAN não desiste da sua intenção de avançar para leste e os EUA não revelam disponibilidade para retirar das fronteiras russas o chamado escudo anti-mísseis.
Iraque e Afeganistão-Paquistão
É no Oriente Médio e na Ásia Central que as opções da política internacional de Obama suscitam maior preocupação em nível mundial. Em vez de contribuírem para a paz, disseminam a violência, prolongam e ampliam guerras criminosas herdadas da administração Bush.
Relativamente ao Irã, os apelos do presidente a um diálogo franco não encontraram até agora expressão prática. Pelo contrário. As exigências sobre a questão nuclear, com contornos de ultimato, persistem, acompanhadas da ameaça de novas sanções.
Simultaneamente, o envolvimento dos serviços de inteligência norte-americanos nas manifestações de rua de Teerã posteriores às eleições tem sido repetidamente confirmado por fontes críveis, inclusive estadunidenses.
A hipótese de uma agressão militar ao Irã parece, contudo, excluída na atual conjuntura. A Casa Branca terá chegado à conclusão, com o apoio do Pentágono, de que no momento em que os EUA se encontram atolados em duas guerras, no Iraque e no Afeganistão, não existem condições políticas e militares para uma escalada na região que atingiria o Irã.
No Iraque o esforço da máquina midiática para apresentar o país como ‘pacificado’, o que teria permitido a retirada das cidades do exército norte-americano, é desmentido no dia a dia pela realidade.
A violência no mês de junho e na primeira quinzena de julho atingiu ali um nível que não se registava há muito. A resistência à ocupação estrangeira aumenta a cada semana e o governo instalado por Washington está desacreditado.
Impressionado pelos relatórios do general Petraeus, Obama cometeu um erro que pode ser fatal para a imagem da sua administração. Não se limitou a transferir tropas do Iraque para o Afeganistão; decidiu enviar para aquele país mais 21.000 soldados.
Ao erigir o binômio Afeganistão-Paquistão em primeira prioridade da sua política exterior não parece consciente de que é arrastado por ilusões que, num contexto diferente, desembocaram há meio século na humilhante derrota do Vietnã.
A atual ofensiva na Província do Helmand, em que participam milhares de marines, está indo muito mal e o número de mortos britânicos suscita já protestos no Reino Unido.
O comandante no terreno é um militar americano cujo currículo contribui para aumentar as apreensões. O general Stanley Chrystal tem sido definido pelo seu passado como um criminoso de guerra.
Petraeus fala numa ‘nova atmosfera’ que permita a conquista das populações. Mas até agora o que se regista é um crescimento do ódio inspirado pelos invasores.
Correspondentes europeus, entre os quais jornalistas de El Pais, insuspeitos de simpatia pela resistência, afirmam que não existe contato algum da tropa com os moradores das aldeias, que fogem dos soldados americanos e ingleses como o diabo da cruz.
O medo de que o radicalismo islâmico se alastre pelo Paquistão está na origem da ambiciosa estratégia bipolar em que Obama deposita tanta confiança. Mas os bombardeios das tribos do noroeste paquistanês, que já causaram a morte de centenas de camponeses, geram a indignação da minoria pachtun, a segunda do país, ou seja, mais de vinte milhões de pessoas da mesma etnia dos afegãos pachtunes, separados destes por uma fronteira artificial imposta em 1893 pelo império britânico.
O ceticismo dos próprios veículos norte-americanos quanto ao desfecho da estratégia de Obama para a região já é inocultável. Alguns são tão pessimistas que, prevendo uma derrota de conseqüências catastróficas, definem a guerra no Afeganistão como ‘o novo Vietnã’.
Tudo leva a crer que a evolução da estratégia asiática do presidente dos EUA pesará muito na sua imagem.
O Barack Obama aclamado como salvador providencial da humanidade por intelectuais como Amin Maalouf corre o risco, se as coisas correrem mal na Ásia, sobretudo nas montanhas e vales do Afeganistão, de surgir como o coveiro involuntário do sonho imperial dos EUA.
Miguel Urbano Rodrigues é escritor, jornalista e membro do Partido Comunista Português.
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