Para onde vai a Argélia?
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- Miguel Urbano Rodrigues
- 06/03/2010
O fascínio que Argel exerce há séculos sobre os estrangeiros que ali chegam é inseparável do cenário.
O casario, predominantemente branco, sobe pelas encostas que a encerram em gigantesca taça, moldura de uma baía deslumbrante, apenas superada em grandeza pela Guanabara e Nápoles.
O Colóquio Internacional de Homenagem a Georges Labica proporcionou-me em fevereiro o reencontro com a cidade, por onde tinha passado em 1953 quando a Argélia era ainda uma colônia mascarada de parcela da França.
Dessa breve visita guardava na memória imagens de uma cidade onde a grande maioria dos moradores era de origem francesa. Recordo ter percorrido então a Casbah, o núcleo urbano anterior à conquista onde residiam muitas dezenas de milhares de muçulmanos, definidos como indígenas pela administração colonial. Achei a Casbah atual quase irreconhecível.
Agora Argel é uma cidade muçulmana onde os europeus são uma minoria insignificante. Na Casbah não há gendarmes nem bandeiras francesas, o árabe substituiu a língua de Voltaire como idioma nacional, mas a modernidade aparente da era da globalização impõe-se nos ruídos das ruas, nas cores de cartazes publicitários e no desaparecimento do vestuário tradicional.
Declarada patrimônio da humanidade, a cidade velha não se assemelha a qualquer outra do Islã. Nos 45 hectares que restam da antiga capital amuralhada da época da conquista, concentram-se 1.200 casas, labirinto de ruelas, becos, escadas tortuosas, numa malha urbana onde se destacam mesquitas e palácios do período da dominação turca, santuários, museus, um medersa (universidade corânica) e minúsculas lojas.
Com alguma surpresa, recordando cidades asiáticas do Islã como a antiga Cabul, achei a Casbah limpa.
Percorrendo o dédalo das suas ruas, a minha imaginação viajou pelo tempo. Revivi a gesta da resistência de 18 anos do emir Abdel Kader à invasão francesa de 1830 e, com emoção, a luta travada na Casbah pelos patriotas da FLN contra os paraquedistas de Massu, imortalizada em "A Batalha de Argel", o filme de Pontecorvo.
Pisando aquele solo milenar, com o olhar descendo para o mar azul das escarpas nuas que fecham o horizonte, subiu em mim naquela tarde fria um sentimento de respeito e admiração pelos povos da Argélia que ao longo de 20 séculos se bateram com heroísmo contra todos os invasores desde Roma à ocupação francesa.
Um país militarizado
As Forças Armadas Argelinas, avaliadas em 180.000 homens (as mulheres são escassas no exército), constituem hoje talvez o corpo militar mais numeroso no continente africano, superando o Egito.
Esse gigantismo não resulta de qualquer ameaça externa previsível. O exército cresceu como resposta do Estado à onda de violência desencadeada na sociedade argelina pela Frente Islâmica de Salvação – FIS.
Não cabe neste artigo comentar a situação criada pelo desafio do radicalismo islâmico ao Poder detido pelos herdeiros do movimento que dirigira a luta pela independência nacional.
Registro somente que a mensagem do FIS encontrou de início receptividade entre as camadas mais desfavorecidas de uma população misérrima, que perdera a esperança suscitada pela independência e as promessas do "socialismo argelino".
Enquanto a população do país quadruplicou desde meados do século passado – hoje supera os 30 milhões –, a anunciada revolução não se concretizou e o êxodo total da população européia provocou o desmoronamento do sistema econômico preexistente.
A anulação das eleições ganhas pelo FIS, que se beneficiava do descontentamento geral, traduziu-se numa vaga de violência irracional (150.000 mortos e centenas de milhares de exilados). O Grande Medo contribuiu decisivamente para a perda de popularidade da organização.
A resposta do Estado foi a militarização do país. Argel é hoje uma cidade muito mais "segura" do que a maioria das capitais da América Latina. A FIS foi militarmente esmagada.
Mas o preço social da derrota infligida à organização islâmica foi muito alto. A densidade do policiamento e a visibilidade do dispositivo militar impressionam o forasteiro.
Às seis da tarde não se encontra uma mulher nas praças e ruas do centro; às oito, a cidade, deserta, parece adormecida. A vida noturna é praticamente inexistente.
O contraste com o dia perturba o visitante porque a grande metrópole (talvez uns três milhões com os subúrbios, mas as estatísticas argelinas não inspiram muita confiança) é um formigueiro de gente desde a manhã ao pôr-do-sol.
Na própria Residência Oficial onde se realizou o Colóquio Labica, reservada aos participantes e convidados, não se podia entrar sem passagem por um detector de metais similar ao dos aeroportos.
Um cordão de militares cerca a capital à noite. Mas, nas três vezes que saímos para jantar em restaurantes do centro, distante meia dúzia de quilômetros dos bairros altos, os carros oficiais em que seguíamos foram submetidos a numerosos controles em postos militares. Com os táxis, a inspeção é mais rigorosa.
Uma economia frágil
Durante a nossa breve permanência em Argel, a minha companheira e eu tivemos a oportunidade de manter prolongados encontros com velhos combatentes da guerra de independência. Essas conversas proporcionaram-me uma informação importante, embora superficial, sobre a conjuntura argelina, tal como a sentem e vivem intelectuais revolucionários distanciados do poder. Falei também com jornalistas que esboçaram um panorama da comunicação social.
Uma realidade indesmentível: a dependência da Argélia aos combustíveis é preocupante. O petróleo e o gás fornecem, segundo as estatísticas oficiais, quase 98% das exportações do país e representam 40% do Produto Interno Bruto. As reservas comprovadas garantem a extração no nível atual até 2030, o que suscita inquietação quanto ao futuro de uma sociedade na qual o setor produtivo é de uma insuficiência transparente.
A agricultura atravessa uma crise profunda, agravada pela política neoliberal ortodoxa imposta no início dos anos 90. Um punhado de multimilionários monopoliza as importações de cereais, leite e carne, com a cumplicidade de personalidades destacadas do Exército. A conseqüência dessa estratégia foi desastrosa para os produtores nacionais, incapazes de suportar a concorrência dos preços internacionais. Aliás, as cooperativas estatais formadas após a independência não puderam corresponder às esperanças nelas depositadas por falta de apoio do poder central.
Essa grande burguesia, que acumulou fortunas colossais, possui casas no estrangeiro, onde passa largas temporadas. Não se conhece o nível das suas contas em bancos suíços, mas é certamente elevadíssimo. Num patamar inferior, formou-se uma burguesia próspera, enriquecida também através de negócios escusos. Mas muitos milhões de argelinos vivem abaixo do nível da pobreza.
A crise econômica e social assumiu tamanhas proporções que o governo sentiu a necessidade de reconhecer o fracasso da chamada economia de mercado cuja apologia fizera durante anos. No seu discurso de junho de 2008, o presidente Bouteflika anunciou uma viragem de estratégia. Mas a condenação da política neoliberal não foi acompanhada da formulação de uma alternativa. Não basta reconhecer que as transnacionais que tinham prometido realizar investimentos grandiosos trataram de saquear o país, tripudiando sobre os compromissos assumidos. A nova lei de finanças suprimiu os privilégios de que gozava o capital estrangeiro; mas o Poder não elaborou um projeto nacional.
O presidente Boumedienne, após o golpe que derrubou Ben Bella, ainda utilizou durante algum tempo a expressão "socialismo argelino". Mas a fórmula, retórica, não travou a marcha do país rumo a um capitalismo dependente.
A indústria metalúrgica, que gerou esperanças graças a uma siderurgia nacional que viabilizou a produção de tratores e a montagem de veículos de transporte, é hoje pouco mais do que uma recordação. O PIB per capita não excede 2.300 dólares.
A Argélia é territorialmente um gigante com mais de 2.350.000 quilômetros quadrados (grande parte no Deserto do Saara, onde se concentram o petróleo e o gás). Mas enormes extensões de terras férteis permanecem incultas.
Temor do futuro
Uma implantação débil da Internet facilita a compreensão de um absurdo aparente: as grandes tiragens dos jornais argelinos num continente onde se lê pouquíssimo.
O maior diário do país, em língua árabe, tem uma tiragem que ronda os 400.000 exemplares. O principal dos diários de língua francesa atinge os 80.000.
Oficialmente não existe censura. Mas jornalistas com quem falei disseram-me que a auto-censura é rotineira na maioria das redações.
Como a corrupção é considerada um flagelo nacional, os editoriais e reportagens sobre grandes escândalos são tolerados e por vezes incentivados. Mas desde que neles não seja transparente o envolvimento de altas personalidades das Forças Armadas.
Oficialmente, estas apresentam-se unidas no apoio ao regime. Mas a realidade desmente a imagem difundida. No corpo de oficiais, mesmo nos escalões superiores, manifestam-se tendências contraditórias quanto ao rumo do país.
Na área internacional a imprensa é anti-sionista e, com o apoio oficial, solidária com a luta dos povos da Palestina e do Líbano. O Hamas e o Hizbollah não são satanizados, ao contrário do que ocorre noutros países muçulmanos. As críticas às guerras de agressão dos EUA no Iraque e no Afeganistão e às campanhas contra o Irã são, aliás, freqüentes.
Mas no tocante às relações internacionais do governo Bouteflika, as surpresas são muitas para o visitante desconhecedor dos meandros sinuosos da estratégia do Poder.
A economia está orientada para a União Européia (aproximadamente 60% do comércio externo), mas o alto comando do Exército aprofunda a cooperação militar com a China e mantém relações cordiais com Washington. É inquietante que a CIA tenha sido autorizada a funcionar discretamente em Argel. O governo Obama, invocando a necessidade de "combater o terrorismo" no continente, iniciou negociações – segundo a revista web de Michel Collon – tendentes à utilização pelos EUA da nova base militar instalada em Tamanrasset, no extremo sul.
Com o governo de Sarkozy as relações são hoje marcadas por uma tensão inocultável. A França foi forçada pela luta do povo argelino a aceitar a independência do país. Mas os seus sucessivos governos nunca assumiram uma atitude responsável no relacionamento com a República da Argélia. Não somente sempre recusaram debater a legitimidade de reparações materiais ao povo da sua antiga colônia (centenas de milhares de argelinos foram mortos durante os oito anos da guerra que provocou enormes destruições materiais) como, sobretudo desde que Sarkozy chegou à presidência, insistem em reescrever a História, apresentando a colonização como globalmente positiva.
Um governo desprestigiado
A FLN, o partido do governo, é hoje uma caricatura do movimento de libertação que dirigiu a luta pela independência numa guerra de oito anos. Como não dispõe de uma base eleitoral que lhe garanta maioria no Parlamento, montou uma heterogênea coligação, a Aliança Presidencial. Os seus parceiros são a União Nacional Democrática (RND), um partido de tecnocratas cuja bandeira é a modernização do país, e o Movimento Social Popular (ex-Hamas), organização populista.
A ideologia está ausente da teoria e da prática da Aliança e do governo por ela apoiado. O presidente Bouteflika mantém-se no poder pela inexistência de uma alternativa a curto prazo. Mas perdeu o escasso prestígio que tinha ao ser eleito em 1999. Na opinião de observadores internacionais, o FIS, não obstante inspirar hoje mais temor e repulsa do que simpatia, venceria as próximas eleições se elas fossem normais. Seria essa uma forma de castigar Bouteflika e os seus aliados.
Para se avaliar a complexidade da reação popular perante o Poder e aqueles que para o enfrentar optaram por uma orgia de violência, é útil esclarecer que o analfabetismo real na Argélia deve rondar os 50%, o que desmente as estatísticas oficiais.
O fosso que separa uma intelectualidade brilhante (na Universidade, o francês predomina sobre o árabe) e as massas é muito profundo.
Mas é importante registrar que houve um enorme progresso no campo da educação. Antes da independência, apenas umas centenas de argelinos tinham acesso ao ensino universitário, reservado quase exclusivamente a europeus. Hoje, o total de estudantes nas numerosas universidades existentes ultrapassa os 250.000. Lamentavelmente, o diploma, concluídos os cursos, não assegura trabalho a dezenas de milhares, cuja frustração é legítima.
Os sindicatos são hoje de pura fachada, e o desemprego, elevadíssimo, dificulta a luta dos trabalhadores, cuja combatividade é escassa pela ausência de uma organização revolucionária com implantação entre a classe operária, capaz de mobilizá-la em defesa dos seus direitos; uma organização que pudesse desempenhar o papel assumido durante a guerra pelo Partido Comunista Argelino.
Num país onde o salário mínimo equivale a 150 euros, e o médio oscila entre os 250 e os 300, o custo de vida é comparável ao de Portugal, com a peculiaridade de os hotéis e os restaurantes serem caríssimos.
Para onde caminha a Argélia?
Não me sinto em condições de esboçar uma resposta. Nos meus breves dias de Argel encontrei-me num país desconhecido que perdeu a grande esperança que mobilizou a nação numa guerra de libertação épica.
A juventude atual nasceu após a guerra da independência, tal como a geração anterior. Sente uma enorme frustração pela ausência de perspectivas. Um veterano do combate dos anos 50 dizia-me, com tristeza: "Milhares de jovens emigram todos os anos, principalmente para a França e Quebec, no Canadá. Acredito que, se não fosse a extrema dificuldade de obtenção de vistos para entrar na Europa e na América, nove entre cada dez jovens argelinos deixariam o país".
O futuro próximo parece sombrio. Mas a história heróica dos povos da Argélia demarca-me de uma atitude pessimista.
Conheci ali neste reencontro homens cuja lucidez e firmeza reforçaram a minha confiança no amanhã da terra milenarmente martirizada da Argélia, berço de grandes pensadores e sábios e de revolucionários que se impuseram ao respeito da humanidade.
Miguel Urbano Rodrigues é jornalista e escritor português.
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