A Guerra Civil na Costa do Marfim
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- Mauricio Santoro
- 06/04/2011
A Costa do Marfim já foi a jóia da coroa da África pós-colonial, mas na semana passada tornou-se cenário de mais uma guerra civil no continente – ela se junta aos conflitos existentes na Líbia, Congo e Somália. O cerne da disputa é a recusa do presidente Laurente Gbagbo em reconhecer a derrota eleitoral para seu oponente Alassane Ouattara, que representa grupos étnicos e religiosos tradicionalmente discriminados no país. Tropas leais a Ouattara dominam quase todo o país, mas o presidente Gbagbo resiste em Abidjã, a cidade mais importante.
Crises semelhantes ocorreram nos últimos anos no Quênia e no Zimbábue, onde a oposição ganhou nas ruas mas acabou aceitando governos de "unidade nacional". Em termos práticos, resignou-se ao controle de alguns ministérios e órgãos públicos, temerosa de um conflito armado amplo. Na Costa do Marfim, a intransigência é maior, quando mais não seja porque Ouattara tenta ser presidente há 10 anos, sendo constantemente impedido por manobras jurídicas ou políticas de caráter duvidoso. Por ironia, Gbagbo ascendeu à presidência pela primeira vez, em 2000, liderando uma revolta provocada pelas mesmas razões.
Após a independência, a Costa do Marfim foi governada por mais de trinta anos por
Félix Houphouët-Boigny, habilidoso fazendeiro de cacau com laços familiares com a aristocracia local. Estabeleceu um regime autoritário, mas que nos anos 60 e 70 teve bem-sucedidas políticas econômicas, baseadas no incentivo à agricultura comercial privada no cacau, café e frutas, e em cooperação internacional com a França. Na época, a Costa do Marfim crescia a 7% por ao ano, uma das taxas mais elevadas do mundo. Mas com o tempo, os vícios comuns às ditaduras triunfaram, com muita corrupção e gastos inúteis e dispendiosos, como a transformação em capital do vilarejo natal do presidente, Yamoussoukro, que virou uma espécie de Versalhes africana.
Após a morte de Houphouët-Boigny, seus sucessores exploraram as rivalidades étnicas e religiosas entre o norte islâmico e o sul cristão para conquistarem e manterem o poder, mesmo que às custas de guerra civil e conflito armado, que ocorreram entre 2002-07, sob o governo de Gbagbo. Ouattara tem interessante biografia: é um tecnocrata que trabalhou muitos anos no FMI e tem fortes ligações com os EUA com a União Européia, mas simultaneamente é um muçulmano nortista, representante dos grupos tradicionalmente excluídos da elite da Costa do Marfim. Sua mãe é de Burkina Faso, e até recentemente isso o qualificava como "estrangeiro" nas leis eleitorais, mas é um dado importante num país no qual 25% da população são imigrantes ou filhos deles. Iniciou a carreira política como assessor de Houphouët-Boigny, quando o velho ditador tentou reformar as combalidas finanças públicas nacionais.
A guerra civil era iminente desde novembro, quando o presidente Gbagbo recusou-se a aceitar a derrota eleitoral. Os conflitos têm sido ferozes, com atrocidades cometidas por ambos os lados. A maior até agora foi o massacre de 800 pessoas na cidade de Douékué. Ainda não está claro quem foi o responsável, mas as suspeitas iniciais caem sobre as tropas de Ouattara. Estima-se que um milhão de pessoas tenha fugido da Costa do Marfim, indo para os países vizinhos, que em geral são muito pobres e enfrentam, eles mesmos, o desafio de reconstrução pós-bélica, como na Libéria.
Houve reação internacional ao impasse na Costa do Marfim, porém mais tíbia do que o que ocorre na Líbia. Há uma força de paz da ONU no país, apoiada por um contingente francês, mas ambas fizeram pouco mais do que garantir enclaves seguros para os ocidentais em Abidjã. EUA e União Européia implementaram sanções econômicas contra o regime de Gbagbo, bastante dependente dos mercados externos para o agronegócio. Mas a União Africana tem relutado em intervenções mais expressivas, seja pelas boas relações que muitos de seus membros mantêm com o governo da Costa do Marfim, seja pelo medo de que no futuro esse tipo de instrumento possa ser usado contra eles. A situação é especialmente sensível na Nigéria, que no próximo sábado terá eleições.
Mauricio Santoro é jornalista, doutor em Ciência Política e professor universitário.
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