Ataques na Líbia prenunciam ação imperialista na África
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- Grupo São Paulo
- 24/05/2011
Os traçados retilíneos das fronteiras dos países árabes, no norte da África e no Oriente Médio, ilustram motivações históricas das tensões que têm sacudido a região.
Essas fronteiras foram definidas na partilha da região entre os Estados vitoriosos na Segunda Guerra Mundial – os mesmos países que Samuel Huntington chamou de "diretório militar" do mundo, ou seja, EUA, Inglaterra e França. As fronteiras de Líbia, Egito, Tunísia, entre outros tantos países da região, escondem no interior de retas bem traçadas tensas relações entre tribos de seculares rivalidades e autocracias que há décadas, conformando regimes ditatoriais, gerenciam a exploração e o comércio das imensas reservas de petróleo e gás existentes no subsolo norte-africano.
Para entender a crise na Líbia, é preciso levar em conta que sua população nunca constituiu uma unidade nacional e até hoje é dividida em 140 tribos, na maioria arabizadas e islamitas sunitas. O país tem 1,7 milhão de quilômetros quadrados, perto de um quarto da superfície do Brasil, e apenas 6,4 milhões de habitantes (dos quais cerca de 500 mil são imigrantes africanos), concentrados nas poucas cidades – como Trípoli, a capital, com mais de 1 milhão de pessoas – espalhadas por um imenso deserto.
O território líbio só muito recentemente passou a ser uma unidade política. Desde a Antiguidade, suas três regiões – Tripolitânia, Cirenaica e Fezzan – levaram vidas separadas. As duas primeiras só foram unificadas no século XVI, pelo Império Otomano, e a elas o Fezzan se reuniu só no século XIX. Em 1911 as três regiões foram ocupadas pela Itália, e nos anos 1930 o nome Líbia foi dado a essa colônia italiana.
Durante a Segunda Guerra Mundial, a partir de 1943, a Líbia foi ocupada por tropas britânicas e francesas, que ali instalaram um governo militar. Em 1951 foi proclamada sua independência, sob uma monarquia. Os recursos econômicos eram muito precários, pois a maior extensão do território era desértica. A Líbia vivia praticamente de "doações" de países ocidentais, em troca de permitir a permanência de tropas estrangeiras (as últimas saíram em 1969). Só em 1958 é que foi descoberto o petróleo. A monarquia do rei Ídris foi derrubada em 1969, num movimento militar liderado pelo jovem coronel Kadafi, então com apenas 27 anos, inspirado nas idéias do líder egípcio Gamal Abdel Nasser, expoente do pan-arabismo.
Nascido em uma família da tribo beduína, na região de Tripoli, Kadafi sempre foi profundamente anti-colonialista, tendo inclusive um avô paterno morrido em combate contra os soldados italianos, quando a Líbia foi invadida pela Itália em 1911. Kadafi chegou ao poder com amplo apoio popular ao derrubar a monarquia. Em 1974 – valendo-se da recessão mundial –, expulsou as empresas ocidentais, expropriou propriedades estrangeiras e promoveu uma série de reformas progressistas que melhoraram a qualidade de vida dos líbios.
Em 1988, agentes líbios foram acusados do atentado contra um avião da estadunidense Pan Am, em que morreram 270 pessoas, e no ano seguinte contra um avião francês, no Níger, matando 170 pessoas. Instado a entregar a um tribunal internacional suspeitos identificados como participantes desses atentados, Kadafi se recusou e a Líbia passou a figurar nas listas de países envolvidos com o terrorismo feitas pelos EUA e pela Europa Ocidental. Em conseqüência, o país sofreu sanções da ONU e foi bombardeado pelos EUA.
Em 1999, Kadafi fez uma mudança radical em suas relações internacionais. Entregou a um tribunal internacional os suspeitos do atentado ao avião da Pan Am, o que levou a ONU a suspender suas sanções, e em 2003 concordou em pagar US$ 2,7 bilhões em indenizações às famílias das vítimas e ainda renunciou a ter armas químicas, biológicas e nucleares, obtendo também a suspensão das sanções estadunidenses. Kadafi mereceu elogios de Tony Blair, Berlusconi, Sarkozy e Zapatero. Nas recentes derrubadas dos governos tirânicos da Tunísia e do Egito alinhou-se com os países do Ocidente. E transformou a Líbia em barreira aos imigrantes da África subsaariana que tentavam chegar ilegalmente a Malta, Itália e Espanha.
A Líbia produz 1,7 milhão de barris de petróleo por dia, dos quais depende a energia de países como Itália, Portugal, Áustria e Irlanda. Vale recordar que o Iraque, também alvo preferencial dos EUA, é o segundo maior produtor mundial de petróleo – 2,11 milhões de barris por dia, só superado pela Arábia Saudita. Possui uma reserva calculada em 115 bilhões de barris.
A Líbia ocupa o primeiro lugar no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) da África e tem a mais alta esperança de vida do continente. A educação e a saúde recebem especial atenção do Estado. O PIB per capita é de 13,8 mil dólares, o crescimento econômico em 2010 foi de 10,6% e a pobreza atinge 7,4% da população. Tudo isso a leva a ocupar a 53ª posição no IDH, enquanto o Brasil ocupa a 73ª.
Entretanto, o que está em jogo na Líbia não é apenas petróleo. Como analisa José Luis Fiori, cientista social da Universidade Federal do Rio de Janeiro, nem tudo no mundo da geopolítica e da luta de poder entre as grandes e médias potências tem a ver com energia, ou mesmo, com economia. Neste caso, está em jogo o controle de uma região fronteiriça da Europa, parte importante do Império Romano, e território privilegiado do contexto civilizatório da "cristandade". Foi por onde começou o colonialismo europeu, no século 15 e depois, de novo, no século 19. Segundo Fiori, "já estamos assistindo uma nova corrida imperialista na África, e não é impossível que se volte a cogitar de alguma forma renovada de colonialismo".
A África não é simples nem homogênea, com seus 53 Estados e quase 800 milhões de habitantes. O atual sistema estatal africano foi criado pelas potências coloniais européias e só se manteve, até 1991, graças à Guerra Fria. Após, com o fracasso da intervenção estadunidense na Somália, em 1993, os EUA redefiniram sua estratégia para o continente, propondo globalização e democracia. Até o fim do século XX, a preocupação dos EUA com a África se restringiu à disputa das regiões petrolíferas e ao controle das forças islâmicas e dos terroristas do Chifre da África.
Deverá ocorrer uma mudança radical do comportamento dos EUA e europeu, graças à invasão econômica da China, Rússia, Índia e Brasil. A África será de novo um ponto central da nova corrida imperialista, que deverá se aprofundar na próxima década.
Não é improvável que as potências, envolvidas na disputa pelos recursos estratégicos, voltem a pensar na possibilidade de conquista e dominação colonial de alguns dos atuais países africanos, cujas fronteiras retilíneas foram criadas pelos próprios colonialistas europeus.
Thomaz Ferreira Jensen, Andrea Paes Alberico, Elisa Helena Rocha de Carvalho, Guga Dorea, João Xerri e José Juliano de Carvalho, do Grupo de São Paulo - um grupo de pessoas que se revezam na redação e revisão coletiva dos artigos de análise de Contexto Internacional do Boletim da Rede, editado pelo Centro Alceu Amoroso Lima para a Liberdade, de Petrópolis, RJ.
Artigo publicado na edição de abril de 2011 do Boletim Rede.
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Comentários
O povo também,deve manifestar a intolerância à países europeus e ao USA,que desejam interferir apenas,por motivos capitalistas de,obter o poder e impor novas regras.
Faltou um pouco mais de profundidade.
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