As “causas perdidas” e o século XXI
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- Juliano Medeiros
- 09/12/2011
“Pátria es humanidad.” José Martí
O mais recente livro do filósofo esloveno Slavoj Zizek é um verdadeiro petardo contra o falso consenso liberal-democrático. Entre outras razões porque Em defesa das causas perdidas (Boitempo Editorial) assume claramente o papel de manifesto em favor dos grandes projetos de transformação social – mesmo daqueles que fracassaram. Em tempos de ofensiva das tendências pós-modernas, esta é uma empreitada corajosa.
Embora muitos admitam o fracasso do modelo liberal-democrático, poucos são os que se arriscam a propor alternativas. E não é por falta de indignação: a crise que atinge o coração do sistema capitalista demonstra sua irracionalidade, diante da qual só uma saída política radical pode apontar caminhos que a superem. Para responder à suposta crise de alternativas, Zizek propõe retomar os grandes projetos de transformação do século XX. Por isso as chamadas causas “perdidas” (do inglês, lost) deveriam voltar à agenda da esquerda socialista. A meu ver, este reencontro começa, antes de tudo, pela retomada da solidariedade às grandes lutas do século passado, que sobrevivem hoje em diferentes partes do mundo desafiando a farsa do fim das utopias e alimentando a esperança dos revolucionários.
No coração da América do Sul, embrenhados entre selvas e montanhas, homens e mulheres lutam em armas por reforma agrária, justiça e liberdade. Combatendo um governo controlado por multinacionais e tomado pela corrupção, organizam-se como força popular insurgente e resistem às investidas do exército regular e dos bandos armados pela extrema-direita. Para estes guerrilheiros, acordar a cada manhã é uma vitória.
Numa ilha caribenha, um povo constrói sua revolução. Conquistado o poder pelo exército rebelde, colocam o Estado finalmente a serviço dos trabalhadores: há escolas e boa educação, saúde de qualidade e médicos em profusão. O analfabetismo foi erradicado e, apesar das dificuldades, não há crianças nas ruas ou violência. Esta revolução, contudo, é acossada por um gigante imperialista a menos de 90 milhas de distância. Dorme com o inimigo, que está sempre pronto para atacar.
Do outro lado do oceano, a milhares de quilômetros dali, o colonialismo sobrevive. Outorgando-se o direito sobre uma vasta região do continente africano, o invasor estrangeiro impede que um povo tenha direito à sua liberdade e autodeterminação. A luta pela libertação nacional é dura e cheia de idas e vindas. As potências ocidentais parecem desconhecer o problema. Enquanto isso, campos de refugiados abrigam milhares de pessoas, na sua maioria mulheres e crianças, que lutam por sua sobrevivência enquanto não conquistam sua libertação.
Estas imagens poderiam descrever um determinado momento do século XX. Entre os anos 60 e 70 do século passado, o mundo vivia em convulsão. As últimas colônias africanas e asiáticas libertavam-se do controle imperialista, guerrilheiros povoavam o continente americano em luta contra ditaduras militares e Cuba consolidava sua revolução, apesar das investidas do imperialismo ianque. Porém, estas cenas são uma fotografia do presente: trata-se das causas abandonadas pela nova esquerda – adaptada à ditadura do mercado financeiro e que já não se identifica com conceitos como “revolução”, “insurgência” ou “autodeterminação”.
Estive no começo deste ano em Cuba. Lá encontrei um povo mobilizado, livre e feliz. Consciente dos limites de sua revolução, este povo engajou-se decididamente nos debates preparatórios ao 6º Congresso do Partido Comunista, que aconteceu em abril deste ano. Lá apresentaram suas críticas, demandas, propostas. Apontaram erros e sugeriram saídas.
Conscientes de que preservar sua revolução significa preservar a própria idéia de revolução, os cubanos prestam um serviço a todos os revolucionários do mundo: mantêm o exemplo de que é possível vencer, e vencendo é necessário resistir. A revolução cubana é um estorvo para o imperialismo. Por isso é preciso derrotá-la, senão materialmente (o que não foi possível mesmo com um criminoso bloqueio econômico e centenas de atentados terroristas), ao menos simbolicamente, ridicularizando seus líderes e destacando as difíceis condições de vida de seu povo.
Meses atrás visitei também os companheiros do Partido Comunista na Colômbia. Tido como exemplo pelas potências imperialistas, o país tem cerca de 46% de sua população abaixo da linha da pobreza, segundo dados do Alto Comissariado da ONU para os Direitos Humanos (2009). Esta realidade de extrema pobreza, que tem como pano de fundo a concentração de terras nas mãos de uns poucos terratenientes, levou, em 1964, à organização de um grupo rebelde formado por pequenos proprietários rurais, influenciados pelo sucesso de Fidel Castro na Sierra Maestra, e liderados por Manuel Marulanda, o Tirofijo.
Reagindo com brutalidade e incentivando o surgimento de grupos paramilitares vinculados ao narcotráfico, o Estado transformou a guerra de guerrilhas num conflito de larga escala que já dura mais de quarenta anos e tirou a vida de milhares de colombianos. São centenas de casos de massacres contra trabalhadores rurais e urbanos, desaparecimentos forçados, execuções, seqüestros e outros crimes cometidos pelos paramilitares com a anuência do Estado colombiano. Não obstante a tentativa de eliminação total das forças rebeldes, as FARC-EP (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército Popular) e o ELN (Exército de Libertação Nacional) contam com mais de 20.000 homens e mulheres em suas fileiras, desafiando as teorias que afirmam a impossibilidade da insurgência armada em pleno século XXI.
Mas o que mais poderia contestar o mantra da infalibilidade do consenso democrático-liberal que a existência de um povo dominado por um agressor estrangeiro? Os palestinos são a expressão mais conhecida deste fenômeno, mas não são a única. Os curdos, perseguidos no Iraque, Turquia, Armênia, um dos últimos “povos sem Estado”; a Guiana Francesa, última colônia européia na América do Sul; os bascos e a resistência ao domínio político e cultural do estado espanhol, também são exemplos de que segue viva a luta pela libertação nacional – e da importância desta dimensão “nacional” enquanto combustível dos processos de transformação.
Entre eles, uma das mais importantes experiências de resistência encontra-se na República Árabe do Saara Democrático (RASD), liderada pela heróica Frente Polisário na luta pela independência. Com seu território ocupado desde 1975 pelo reino do Marrocos, os saarauís vivem em acampamentos na Argélia e na zona liberada que ocupa uma região desértica entre o Saara e território dominado pelo Marrocos. A própria ONU, que tenta mediar o conflito desde o início dos anos 90, admite tratar-se de um processo de descolonização “inconcluso”.
Assim como estas, as provas de que as promessas de paz e liberdade do establishment não podem ser cumpridas saltam aos olhos. Senão, como falar de livre mercado quando um desumano bloqueio econômico impede que Cuba possa desfrutar dos bens produzidos por outros países? Como pensar em democracia enquanto na Colômbia vigoram leis de exceção que violam os princípios básicos do liberalismo? Como defender a integração regional entre povos e Estados se subsiste em alguns rincões do mundo a vergonhosa chaga do colonialismo, como no Saara Ocidental?
Logo, a solidariedade à revolução cubana, o apoio à autodeterminação de palestinos, saarauís ou curdos e a defesa de uma saída negociada para o conflito colombiano não são simples “profissões de fé”. Trata-se, por um lado, de reconhecer a atualidade do direito à insurgência, à revolução e à liberdade como elementos constituintes de uma estratégia socialista, e por outro, de pôr abaixo a farsa liberal que vende ao mundo a idéia de que estes conceitos e valores são coisa do passado. Por isso, nossa solidariedade a estas lutas é, também, o reconhecimento de sua validade universal e de sua inevitabilidade histórica.
Juliano Medeiros é membro da Direção Nacional do PSOL e editor do site Unamérica.