A caminho de uma “nova” União Européia?
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- Alex Alves Tolkmitt
- 23/12/2011
Não é novidade que o mundo atual procura soluções para que seu tão querido capitalismo funcione sem as crises que se agravam cada vez mais em ciclos cada vez mais curtos. Não é novidade que opiniões sobre políticas econômicas e divergências de mentalidade sejam palco para discórdias ferrenhas. Também não é novidade que as terapias de choque se aproveitem dos momentos mais frágeis e desesperados da sociedade para impô-la políticas impopulares. O que, porém, não é tão comum assim é que tudo isto seja feito com a pompa e determinação que a Alemanha e a França, na sexta-feira, dia 9 de dezembro de 2011, usaram para apresentar seu projeto de “união fiscal” européia, que prevê que toda a política econômica dos países da Zona do Euro seja única e decidida em Bruxelas. Tempos interessantes se anunciam no cenário político-econômico europeu, com possíveis repercussões mundiais e consecutivas reflexões a serem feitas.
Dos 27 países que constituem a União Européia, apenas 17 fazem parte da chamada “Zona do Euro”, que partilha a moeda comum, o Euro, sendo que, dos três grandes pilares da União Européia, apenas Alemanha e França utilizam o Euro como moeda, enquanto o Reino Unido nunca quis adotá-la. Assim foi e assim volta agora a ser uma questão cultural aguda da mentalidade político-econômica que separa novamente a Europa continental do modelo anglo-saxão.
Nos anos 80, o modelo Reagan-Thatcher de neoliberalismo, privatização e financeirização extrema da economia foi se tornando o paradigma mundial de sucesso econômico e, enquanto estes dois países se transformavam rapidamente nesta direção, o resto do mundo seguia lentamente atrás. A Europa continental não fez diferente, mas o fez muito lentamente, tentando se resguardar dos perigos da financeirização desenfreada. Para a mentalidade européia, o Welfare State (estado do bem-estar social), a divisão de renda e todos os seus benefícios (baixa criminalidade, consumo, direitos sociais etc.) são vistos como bens adquiridos e direitos do cidadão e, em meio a esta mentalidade incuta na cultura européia, políticas econômicas de austeridade têm de ser bem pensadas para que eleições continuem a ser ganhas e não haja revoltas populares.
O modelo Reagan-Thatcher conseguiu, sem dúvida, superar crises globais nos últimos 30 anos de uma forma muito eficaz para o crescimento de suas economias. Não é à toa que a Europa continental, assim como o resto do mundo, começou a achar que a financeirização parecia valer a pena. Por outro lado, o preço a ser pago pela financeirização do Reino Unido foi o desmantelamento sistemático e contínuo do estado-social, do bem-estar social, da qualidade de vida e de todos os serviços públicos que a estes contribuíam.
Em 30 anos, o Reino Unido passou de modelo de Welfare State ao posto de país mais desigual (economicamente) da Europa, o “pior país para se criar uma criança” na Europa (por questões de saúde, educação, acesso a necessidades básicas etc.), um país onde, pela primeira vez na história, a nova geração tem uma expectativa de vida menor do que a anterior, onde serviços como o NHS (National Health Service – serviço nacional de saúde), correios, transportes ferroviários e outros, outrora modelos de excelência para o mundo, são hoje problemáticos, ineficazes e uma vergonha nacional. Em “troca”, os britânicos ganharam o crédito (hoje, de longe, a maior dívida privada per capita da Europa), os fundos de pensão, ações e uma das mais importantes bolsas de valores do mundo, a “City” de Londres, responsável atualmente pela maior parte do PIB do Reino Unido e do seu mercado de trabalho, fazendo do país seu total dependente.
Do outro lado do Canal da Mancha, o modelo continental entrou nas privatizações e na financeirização, mas nunca abandonou o modelo produtivo-comercial totalmente e não teve coragem de desmantelar o Welfare State na velocidade e na medida com que fez o Reino Unido. Desconfiada da extrema financeirização, a Europa continental continuou apostando em modelos empresariais, diversificou seus serviços e criou o Euro como moeda única para se defender da especulação financeira. Enquanto o Reino Unido guardou a Libra para poder flutuá-la de acordo com as necessidades do capital financeiro, o continente criou o Banco Central Europeu como entidade totalmente independente dos países e de seus governos, com a única tarefa de estabilizar o Euro e conter a inflação.
Em 2008, as palavras de Marx ecoaram novamente nos quatro cantos do mundo: “todas as crises do capitalismo se resumem a uma só palavra: liquidez”! Assim, a nova crise trouxe às primeiras páginas dos jornais a insanidade do setor financeiro e sua total falta de liquidez, exibindo aos olhos do povo a problemática da autonomia e liberdade concedida à financeirização extrema, suas especulações, seus “derivados”, seu crédito desenfreado, seus fundos de pensão, seus interesses intrínsecos. E eis a brecha que a Europa continental esperava para dar seu basta ao modelo anglo-saxão. Renasce, assim, no continente uma vontade de voltar a Keynes da forma mais ingênua possível, descartando todos os impasses e impossibilidades, crises e estagnações que seu sistema revelou durante sua aplicação e fazendo-o reviver exclusivamente como volta do poder político (e sua importância esquecida) como regulador da economia em contraponto ao poder “descontrolado” do mundo financeiro.
O problema, porém, é que, com medo de perder sua soberania nacional, ao adotar o Euro, os países envolvidos criaram uma moeda única sem nunca unificar políticas econômicas e fiscais, contornando esta problemática através de “pactos”, como o de Maastricht, Lisboa e outros, nos quais todos os países integrantes se propunham a seguir “diretivas européias” para sustentar a moeda única e as políticas comuns. Sobrou assim uma Europa necessitada de uma união mais aprofundada, mas temerosa da perda de suas respectivas autonomias nacionais. Tentativas foram feitas de criar uma maior integração através de uma “Constituição Européia” que, votada por referendo popular, foi rapidamente rejeitada. Muito do medo de uma unificação mais abrangente vinha da perda da soberania nacional em prol de uma entidade supranacional que iria dar ainda mais poder aos já poderosos parceiros Alemanha e França, que usariam então o resto da Europa como quintal das suas necessidades empresariais, financeiras e econômicas de forma ainda mais abusiva do que já faziam.
Hoje, no entanto, em meio às crises da Grécia, Portugal, Irlanda, alastrando-se para a Espanha e a Itália, o cenário da catástrofe está posto e, como “em toda tragédia, existe uma oportunidade”, a Alemanha e a França aproveitam a situação e criam sua “terapia de choque”, e anunciam que, a partir de agora, no momento mais desesperado dos países da Zona Euro, será criada uma união fiscal e quem não quiser que saia do Euro!
Junto a esta união econômica, Alemanha e França propõem a criação de taxas para as transações financeiras, marcando definitivamente a sua divergência do modelo anglo-saxão e descartando assim o Reino Unido como parceiro de políticas econômicas comuns. Em conjunto com a proposta, Alemanha e França pretendem ainda cooptar o Banco Central Europeu para que este tenha novos papéis no cenário econômico europeu e, é claro, para que os países tenham mais poder sobre suas decisões.
E aí está, a Europa a caminho de ser mais “unida” e mais separada ao mesmo tempo, mais coesa e menos democrática. Seriam estes passos em direção a um tipo de “neo-neo-keynesianismo”, uma mistura de ditadura capitalista chinesa, Keynes e social-democracia européia? Estaria surgindo uma “nova” União Européia aonde o poder político passa a ter maior influência sobre a economia, mas, ao mesmo tempo, não apenas segue os interesses das grandes empresas como também passa a ser um tipo de ditadura supranacional, na qual os políticos eleitos da maioria dos países pouco poder terão frente à vontade dos mais fortes?
Do outro lado do Canal da Mancha, britânicos rezam para que tudo isto não funcione, pois seria um bloco coeso que os enterraria ainda mais economicamente, para além dos problemas sociais aos quais eles não têm solução e já vão explodindo em todo o país. Do outro lado do Atlântico, o Brasil, visto por aqui como símbolo de uma possível implementação (lenta que seja) do Estado social aliado a um grande crescimento econômico, parece querer entrar cada vez mais na financeirização, no crédito e nos fundos de pensão, o modelo que, aparentemente, mais afunda pelo mundo atualmente.
Tempos interessantes... Veremos o que acontece.
Alex Alves Tolkmitt é músico brasileiro residente em Bruxelas
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