A crise em Portugal: advertência para nós e para o mundo
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- Arnaldo Mourthé
- 15/12/2012
Nossa primeira surpresa em Portugal, minha e de Marília, quando lá chegamos no dia 23/11/2012, depois da nossa última visita há 25 anos, foi a distância que percorremos no aeroporto antes de chegarmos ao controle de passaportes. Meu deslocamento mais longo a pé em um aeroporto até então fora no México, uma cidade de mais de 20 milhões de habitantes, enquanto Lisboa tem um pouco mais de 2 milhões. Eu não sabia, mas era um indicador das grandes obras que foram implantadas no país no processo de integração de Portugal à Comunidade dos Estados Europeus, depois na União Européia. De fato, Portugal tem hoje uma infraestrutura impecável, para um país de 10,5 milhões de habitantes.
Nosso primeiro contato pessoal foi com o taxista que nos levou ao hotel. Pessoa educada, prestativa, que não me deixou colocar as malas no carro. Ele mesmo o fez, com a maior gentileza. No deslocamento fomos conversando. As pequenas perguntas e respostas de praxe sobre a viagem e de onde éramos. Ele estava interessado em saber mais sobre o Brasil, decantado país “aonde a crise não chegou”, segundo ele e muitos outros com quem conversamos. Sem que falássemos em crise – nossa viagem era de turismo –, ele disse que estava diante de um dilema. Era arquiteto, mas já não conseguia trabalho por conta da crise. O Brasil seria uma opção. Ele teve um convite para Angola, mas não aceitara. A razão que alegara era ficar longe da família. Os contatos se multiplicaram, quase todos levavam ao mesmo assunto, a crise.
Ao darmos um endereço a outro taxista, ele justificou não conhecê-lo por ser novo naquela atividade. Ele é comerciante de móveis, que ficara com a empresa do pai, onde ele trabalha há trinta anos, desde sua fundação. Com a crise os clientes sumiram e ele disse aos familiares que seria obrigado a fechá-la, depois de já ter despedido seus sete empregados. Ficaram apenas ele e sua mulher. Um cunhado seu, taxista, pediu-lhe para não fechar a firma. Para isso conseguiu-lhe aquele taxi de uma empresa com o qual ele complementa seus rendimentos, mantendo a loja aberta. Em Fátima, Marília foi comprar algo em uma loja da rodoviária e ouviu a dona dizer a outra mulher que já completara 65 anos, mas não poderia vender sua loja, pois, se parasse, não poderia manter sua família.
As exceções foram um taxista que nada falou, outro que alegou que as manifestações contra medidas governamentais eram coisa de “comunistas que não queriam trabalhar” e um funcionário do restaurante do hotel que disse não haver crise para ele. Mas esse tinha consciência que essa condição era para ele e outros que trabalhavam na área de turismo, florescente em Portugal, que francamente merece ser visitado, por uma série de razões positivas.
Para mim aquela era a sexta viagem a Portugal. A primeira havia sido em 1979, quando voltávamos para o Brasil depois de quase dez anos de exílio. Daquela feita, tivemos a oportunidade de assistir a comemorações dos cinco anos da Revolução dos Cravos em clima alegre e descontraído, de um povo que soube usufruir da liberdade depois de mais de quarenta anos sob a ditadura salazarista. Ficamos empolgados, já que voltávamos esperançados com a anistia e o próximo fim da ditadura militar no Brasil. Seria esse o clima que o Brasil viveria? Tudo era festa, além, é claro, do trabalho duro, tanto para os portugueses quanto para nós, da construção de uma sociedade que imaginávamos republicana e democrática. Daquela feita, passei em Portugal dois meses, tendo a oportunidade de conhecer muita coisa, sobretudo manter boas relações com muitos portugueses.
Não há dúvidas que tanto Portugal quanto o Brasil avançaram depois de superadas as respectivas ditaduras. Mas nem tudo seriam sonhos. Os nossos problemas nós pensamos conhecer. Os portugueses também pensam o mesmo sobre os deles. Mas eles estão muito mais conscientes do que nós. Eles sabem que a crise lhes pegou e estão lutando para superá-la, ou livrarem-se dela, enquanto muitos brasileiros parecem viver alhures, cegos, ou fingindo de cegos, para o que se passa no nosso país, o que nos coloca não apenas na rota do tsunami, mas também despreparados para enfrentá-lo. Porém, isso é questão para outra narrativa ou discussão. Assim, voltemos às observações sobre Portugal.
Dado o longo período que nos separava da última visita ao país, nossa preocupação não era conhecer coisas novas, mas revisitar aquilo que mais apreciamos nas visitas anteriores. A primeira coisa foi ir à Baixa, o que fizemos no dia em que chegamos descendo a Avenida da Liberdade, junto à qual estávamos hospedados. Fomos, no dia seguinte, visitar um amigo que mora em uma aldeia perto de Fátima, que tivemos a oportunidade de conhecer. Numa visita a pé à Cidade Alta, em Lisboa, onde colocamos à prova nosso preparo físico, fomos surpreendidos por uma chuva, que nos obrigou a ficar algum tempo debaixo de um pequeno toldo de um restaurante que ainda não estava aberto ao público. Por um momento a chuva diminuiu e pudemos continuar nossa caminhada, não sem entrar na primeira loja de quinquilharia que vendia guarda-chuvas. A loja estava vazia. Poderia ser por conta da chuva, mas não só. Nossa entrada foi festejada pelo casal, já sexagenário, que ali trabalhava. Disseram que a crise para eles era grave. O senhor, português de boa cepa, que cultiva a honestidade em todo e qualquer tipo de relação, disse-me para substituir o guarda-chuva que peguei por outro. Este não presta, vai acabar logo, disse. Não nos conhecia, mas para ele freguês é freguês, tem que ser bem tratado e não pode ser tapeado, mesmo que não volte mais.
Interessante é a sua maneira de ver a crise. Dizia: o dinheiro sumiu. Parece que ele foi roubado e o esconderam em alguns buracos por aí, que eu ainda não encontrei. Enquanto sua senhora sorria, e nós também, ele se animou e completou. Que roubaram, roubaram, porque ele sumiu! Depois que a Europa adotou a moeda única, os países menos capitalizados e com menos tecnologia, portanto com produtividade menor, tiveram desvantagem na concorrência. As empresas estrangeiras entraram neles e foram dominando a atividade econômica, com imensos recursos. A partir de 2008, com a recessão, os capitais iniciam seu retorno às origens, retirando postos de trabalho e dinheiro da circulação. O lojista tinha razão, o dinheiro sumiu. Só não foi colocado em esconderijos como ele descreveu, mas voltou para casa, mais gordo com os lucros que obteve no hospedeiro. Quando concordei com ele, foi isso que lhe disse.
Mas nossa andança continuou. Fomos descendo a Rua do Arco de S. Mamede, até alcançarmos a Rua São Bento. A chuva havia parado e o sol brilhava, quando observamos que havia uma grande movimentação de pessoas descendo aquela rua. Seguimos na mesma direção. A algumas quadras à frente, notamos a presença de policiais e barreiras para carros. Havia uma manifestação mais abaixo, onde estimei a presença de cerca de vinte mil pessoas, em frente à Assembleia da República. Estava sendo votada a Lei do Orçamento de 2013. Mas por que tanta gente protestando contra uma lei orçamentária? Ela não tratava apenas do orçamento, mas também do corte nos valores da aposentadoria e de outros direitos dos funcionários públicos e de autarquias e do aumento de tributos, para ajustar o orçamento aos ditames da troica, União Européia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional. Ali pudemos ouvir alguns discursos das lideranças corporativas e comentários de pessoas. Marília ouviu uma manifestação indignada de uma senhora aposentada que dizia: ...estou aqui porque os meus filhos, apesar de estarem trabalhando, não estão recebendo e eu preciso ajudá-los. Se cortarem a minha aposentadoria como é que ficamos? Interpretamos que ela se referia a atrasos no pagamento dos salários dos filhos. O problema é que, se reclamam, correm o risco de ficarem desempregados, sem esperança de outro emprego.
Era sobre aquele evento e outros anteriores que um dos taxistas com quem conversamos se referia, ao dizer que eram comunistas que não queriam trabalhar. Eu lhe observei que a manifestação era de cerca de vinte mil pessoas. Se fossem todas comunistas, os comunistas estariam muito fortes. Ele não comentou. De fato, eram funcionários que defendiam a manutenção de seus direitos, que estão sendo usurpados não apenas em Portugal. Lá estavam comunistas, socialistas, verdes e muitos outros com ou sem militância política. Na Espanha e na Grécia, o problema social é muito mais grave. Pudemos constatar que o desemprego em Portugal é de 16,3%, sendo que para os jovens esse percentual já ultrapassa 31%. Na Espanha, a taxa geral é de 26,2%, sendo que, para a juventude, de mais de 50%; e na Grécia, a taxa geral é de 25,4%. Portugal perdeu mais de 700 mil postos de trabalho desde a crise de 2008. Espanha e a Grécia têm taxas de desemprego correspondentes à dos Estados Unidos durante a crise de 1929, que foi de 27%, com 15 milhões de desempregados. A tragédia foi maior nos Estados Unidos porque, praticamente, lá não havia leis trabalhistas para proteger os trabalhadores, ao contrário da Europa do pós-guerra.
Voltando à questão portuguesa, pudemos perceber que a votação da lei orçamentária para 2013, aprovada pela maioria governamental da Assembleia da República, com apenas uma defecção, e rejeitada pela unanimidade da oposição, mostra que o estamento político de Portugal está fortemente polarizado. Os governistas buscam justificar as barbaridades que estão cometendo com um argumento ridículo: para afastar um mal maior. Já a oposição trabalha para levar a decisão a julgamento por inconstitucionalidade junto ao Tribunal Constitucional. Membros influentes do Partido Socialista veem a necessidade de derrubar o governo do primeiro-ministro Pedro Passos Coelho, antes que ele degrade ainda mais as condições sociais de Portugal, levando o país para o caminho já percorrido pela Grécia e pela Espanha. O Partido Comunista Português assume a mesma postura. A dificuldade está na composição de uma oposição unitária, já que na cúpula comunista há sérias restrições a uma aliança com os socialistas. Mas isso são sequelas de enfrentamentos anteriores, que a gravidade da situação social se encarregará de minimizar.
Essa condição de polarização reflete o estado de espírito da sociedade, mas também influi nela, polarizando-a ainda mais, na medida em que oferece uma oportunidade aos prejudicados de se manifestarem e lutar por seus direitos, enquanto uma elite ganha dinheiro como nunca e cultua “o bom viver” da grande burguesia internacional. Em Lisboa estão presentes, se não todas, mais de 90% das grifes europeias de luxo. A tendência é o acirramento do confronto, mesmo porque, a permanecer a atual política econômica do governo português, a situação social será tão grave que poderá produzir revolta geral.
Mas qual a natureza desse confronto? No que pudemos assimilar do que vimos e ouvimos, há duas visões que sintetizam as duas partes polarizadas. A de que a economia deve servir às pessoas e à evolução da humanidade, e a de que são as pessoas que servem à economia e ao lucro, mesmo que isso conduza à tragédia social.
Nota do autor: Este artigo é apenas o primeiro de uma série que submeteremos à discussão sobre as contradições e extravagâncias que dominam a sociedade chamada moderna, que caminha a passos largos para o impasse. Cabe-nos encontrar um caminho para o reordenamento desse mundo de fantasias e mentiras que se esfacela à semelhança de um circo que pega fogo, enquanto o palhaço tenta distrair as pessoas para que elas não percebam a tragédia que se aproxima.
Arnaldo Mourthé é historiador e autor do livro História e Colapso da Civilização.
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