O povo sírio paga o preço dos conflitos estratégicos regionais e internacionais
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- Eman Ahmed Khamas
- 07/06/2013
Intervenção após a exibição do filme "Deixando o cor-de-rosa de lado", no Cine Fórum 2013, realizado em Bilbao entre 27 e 30 de maio.
Estava convidada para falar na quarta-feira de manhã sobre o documentário iraquiano, mas há dois dias os meus amigos e amigos de Biladi me pediram para falar da Síria. No começo eu me desculpei, porque eu acho que as melhores pessoas para falar sobre sua situação são as mulheres sírias. Mas então Biladi me disse que eles só queriam minha opinião sobre o assunto como uma mulher no Oriente Médio, por isso peço a meus irmãos e irmãs sírios presentes que corrijam-me se achar que estou equivocada sobre alguma coisa.
Meu ponto de partida teórico é que as atrocidades que estão ocorrendo na Síria são uma repetição do mesmo cenário criminoso empregado no Iraque e que a destruição de ambos os países, Iraque e Síria, é parte dos conflitos imperialistas, um internacional e outro regional.
Imperialismo global
O internacional é um projeto anglo-americano, ou seja, o Novo Oriente Médio (que foi anunciado em 2006 pela secretária de Estado dos Estados Unidos, Condoleezza Rice quando estava em Tel-Aviv) ou o Grande Oriente Médio, como às vezes é chamado, e até o Melhor Oriente Médio. Este projeto consiste basicamente em retraçar militarmente o mapa do Oriente Médio e dividi-lo por entidades étnicas e religiosas e de acordo com os interesses das potências imperialistas, incluindo Israel, desatando as forças do “caos construtivo” (e digo “retraçar” porque recordo que as atuais fronteiras foram traçadas pelos europeus, pela primeira vez em nome de seu próprio interesse, durante a Primeira Guerra Mundial, no famoso Acordo Sykes-Picot, de 1916). Este projeto do Grande Oriente Médio vem sendo planejado há anos e consiste em criar um arco de instabilidade, caos e violência que se estende desde o Líbano, Palestina, Síria a Iraque, os países do Golfo, Irã e Afeganistão.
A implementação deste projeto começou com a ocupação do Iraque, especialmente o Curdistão, ao norte, e estabelecendo o marco legislativo para a divisão do Iraque por meio da nova Constituição, que referencia os iraquianos não como pessoas, mas como “entidades constituintes”. Sob o nome de federação, divide o Iraque em três zonas étnicas e religiosas.
Tem se apresentado o conceito de retraçar o Oriente Médio como um projeto humanitário, para beneficiar os povos do Oriente Médio em relação a seus direitos à liberdade, ao império da lei e da paz.
Mas a questão é: redesenhar o mapa vai fazer felizes os povos ou os grupos étnicos do Oriente Médio? A resposta é, redondamente, não. Nunca voltaremos a ver a paz porque estas entidades deformadas sempre geraram ódio e violência. Quem decide a quem a terra pertence? Esta é a pergunta a que sempre se tem respondido com matanças e destruição, como está ocorrendo agora no Iraque e na Síria. Segundo o projeto do Grande Oriente Médio, isto é denominado “dor necessária” ou o “caos construtivo” (Condoleezza Rice chamou em sua apresentação de “as dores do parto”) pelos estrategistas norte-americanas que elaboraram a teoria, que é paradoxal, enganosa e falsa, pelas seguintes razões:
Primeiro, porque faz responsáveis da violência os povos da região, que sempre viveram em paz. O fato é que quase todos os principais conflitos no Oriente Médio são consequência do conflito de interesses entre as agendas de Grã Bretanha, Estados Unidos e Israel.
Segundo: o próprio Israel é uma criação de antes do mencionado Acordo Sykes-Picot. Implica isso que o projeto também eliminará o Estado de Israel? Não creio ser necessário responder essa pergunta.
Terceiro: supõe-se que o Grande Oriente Médio vai reconstruir a região de maneira que melhore sua situação econômica, social e política, estabelecendo estruturas democráticas e o império da lei como primeiro passo para garantir os direitos humanos, as liberdades fundamentais e o pluralismo na região, ao dar ênfase na educação universal, na liberdade de expressão e na igualdade de gênero. No âmbito econômico, requer a criação de emprego, reformas e a promoção do comércio inter-regional.
São essas, novamente, as mentiras estadunidenses. Vimos os verdadeiros quadros do Iraque, do Afeganistão e agora da Síria. Quando os Estados Unidos falam do projeto do Grande Oriente Próximo, argumenta a necessidade de mais direitos humanos, democracia, liberalismo, direitos da mulher e desenvolvimento econômico; mesmo assim, as políticas estadunidenses no Oriente Médio se baseavam em três objetivos completamente diferentes: primeiro, a troca de dirigentes; segundo, a troca de regimes; terceiro, troca de fronteiras. Os Estados Unidos pensavam que podiam trocar facilmente os dirigentes, depois os regimes e por último as fronteiras.
Imperialismo regional
Chegamos agora às ambições imperialistas regionais do Irã e seu papel na eliminação do levante sírio: o Irã, que em princípio estaria lutando junto a Bashar Al-Assad e animou o Hizbollah a participar da supressão do povo sírio, aparentemente motivado por uma doutrina sectária, se implicou em levar o Iraque à desintegração e divisão sob bases sectárias, e seu objetivo é o estabelecimento de um Estado sectário xiita no sul do Iraque, para servir como plataforma de avanço rumo aos Estados árabes.
Não é nenhum segredo que o Irã, que justifica a intervenção militar e o apoio financeiro e político ao regime de Bashar Al-Assad com o pretexto de defender o santuário de Sayeda Zeinab, filha de Ali bin Abi Talib, considera o regime sírio um aliado dos planos e aspirações de expansão na região e, consequentemente, desde o início tratou a crise síria como se fosse uma batalha iraniana. Isso é o que disseram, muitas vezes, Ali Khamenei, Ahmadinejad e outras altas patentes iranianas, civis e militares.
Por isso é tão importante se dar conta da gravidade de tudo o que está ocorrendo no Iraque e na Síria para seus povos e seus direitos, não só agora como também para as gerações futuras.
O problema não é um conflito passageiro entre a oposição que busca controlar o poder e um tirano que se aferra a ele. É uma confrontação regional e internacional. Seu objetivo é traçar um novo mapa político da região e o estabelecimento de sistemas alternativos. Ironicamente, nisso concordam os interesses estadunidenses e iranianos, ainda que superficialmente pareçam contraditórios. Certeza é que não se trata de um conflito pelo interesse dos povos sírio e iraquiano.
A situação da mulher
Vejamos agora a situação da mulher, já que os direitos das mulheres são parte da motivação. Historicamente, a rainha síria Zenobia foi uma das rainhas mais importantes de toda a humanidade, libertou seu país dos romanos no século 3 e estabeleceu um dos impérios orientais mais antigos, o Império de Palmira. Foi feita prisioneira de guerra e assassinada em Roma. Tenho muitas amigas sírias e, independentemente de sua ideologia, são mulheres inteligentes e comprometidas politicamente. Tradicionalmente, no Iraque temos a imagem da mulher síria como muito bonita, muito meticulosa com a higiene enquanto esposa e mãe, e de personalidade muito forte; de fato, muitas famílias iraquianas costumavam dar a suas filhas o nome de ‘Suriyah’, que significa Síria. Parece que essa imagem tradicional das mulheres sírias se transformou em maldição para elas, porque segundo informes internacionais, as refugiadas sírias estão virando vítimas de um fenômeno repugnante, chamado ‘sexo de sobrevivência’: as meninas refugiadas são objeto de casamentos precoces, geralmente com homens ricos com ao menos o triplo da idade delas.
Também se transformou em um fenômeno em situações como as da Síria e Iraque os meios de comunicação se centrarem na difícil situação das mulheres, em especial em seu aspecto de escravas sexuais. Além disso, vi todo tipo de anúncios sobre mulheres.
O levante sírio se tornou cada vez mais sangrento em 2012 enquanto a ofensiva do governo contra os protestos evoluía até um encarniçado conflito armado. As forças governamentais e as milícias favoráveis ao governo, conhecidas como shabbeeha, seguem torturando as pessoas detidas e cometendo assassinatos extra-judiciais nas regiões sob seu controle. Algumas das forças de oposição também levaram a cabo violações de direitos humanos, como sequestros, torturas e execuções extra-judiciais. Segundo fontes da oposição, foram assassinadas aproximadamente 35.000 (trinta e cinco mil) pessoas. A extensão e intensificação dos combates levaram a uma situação humanitária atroz. Segundo as Nações Unidas, atualmente há 1.100.000 (um milhão e cem mil) refugiados e refugiadas sírias nos países vizinhos.
Violência ilimitada de lado a lado
As forças de segurança e as milícias levaram adiante várias operações militares de grande escala em povoados e cidades descontentes de todo o país, o que teve como conseqüência assassinatos massivos em Baba Amr de Homs, em Idlib, Aleppo, Houla, Dara e Moadamiya. O governo também contou mais frequentemente com ataques aéreos, que no fim das contas disparam de forma indiscriminada sobre regiões densamente povoadas como Aleppo, com o que se mata e fere gravemente, de forma deliberada, uma grande quantidade de civis que estão fazendo fila pra comprar pão. As forças armadas sírias utilizaram bombas de fragmentação em trinta e cinco ataques em Aleppo, Idlib, Deir Al-Zor, Homs, Latakia e Damasco.
As forças de segurança submetem milhares de pessoas a detenções arbitrárias, encarceramento ilegal, desaparições forçadas, maus tratos e tortura. A maioria das pessoas presas é formada por homens jovens, mas também há crianças, mulheres e pessoas mais idosas.
Entre essas pessoas presas há tanto manifestantes e ativistas pacíficos que participaram da organização dos protestos, gravando-os e dando informações, como jornalistas, membros da ajuda humanitária e médicos. Em algumas ocasiões, os ativistas informaram que as forças de segurança tinham detido membros de suas famílias, incluindo filhos pequenos, para pressioná-los a se entregarem.
Entre os métodos de tortura se incluem golpes prolongados, em geral com porretes e cabos, manutenção de presos em posturas dolorosas durante largos períodos de tempo, eletrodos, ataques e humilhações sexuais, retirada de unhas, simulações de execução e diferentes formas de tratos humilhantes, como obrigar-lhes a beijar seus sapatos (eu tiraria essa frase: sabe-se muito bem em que consiste a tortura). Informou-se que as condições da prisão são muito duras, em celas superlotadas nas quais só se pode dormir em turnos.
Vários presos morreram por conta das torturas. Segundo ativistas locais, em 2012 ao menos 865 morreram nos cárceres. Os corpos tinham marcas de tortura, hematomas, cortes e queimaduras. Na vasta maioria dos casos de encarceramento, as famílias não conseguiam informações sobre a sorte ou lugar em que estavam seus parentes presos. As forças do governo utilizaram a violência sexual pra torturar homens e mulheres, além de jovens menores. Os soldados e milícias armadas de apoio ao governo estupraram mulheres e até meninas de 12 anos durante os registros de casa e pentes-finos militares nos bairros residenciais. Durante o ano passado, o exército e os agentes de segurança prenderam crianças em condições desumanas e as torturaram impunemente. As forças do governo também dispararam contra crianças em suas casas e ruas. Tanto o governo como as forças da oposição utilizaram crianças em postos de franco-atiradores, prendendo e batendo em crianças e professores nas escolas. Os grupos armados de oposição cometeram graves violações de direitos humanos, incluindo sequestros, prisões arbitrárias, maus tratos e torturas, e praticaram execuções extra-judiciais ou sumárias de membros das forças de segurança, pessoas que apoiavam o governo e pessoas identificadas como shabbeeha.
Intervenção de Eman Khamas na 5ª edição Cine Fórum 2013, Mulheres, Oriente Médio e resistência civil, organizado pela Associação Biladi em Bilbao, de 27 a 30 de maio. Intervenção realizada em 28 de maio, após a projeção do filme Deixando o rosa de lado, produzido em 2009; direção: Soudade Kaadan. Duração: 75 minutos.
Eman Khamas é jornalista iraquiana e ex-diretora do Observatório dos Direitos Humanos de Bagdá.
Traduzido do inglês por Beatriz Morales Bastos e do espanhol por Daniela Mouro, do Correio da Cidadania.
Retirado de Rebelión.
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