Correio da Cidadania

Snowden revela apenas que os EUA são antidemocráticos

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O governo dos EUA tem demonstrado em várias ocasiões que está sempre pronto para quebrar a lei, nacional e internacional, a fim de esconder seus próprios crimes. Mas agora a Casa Branca entrou em um frenesi sem precedentes, que ameaça não só os seus rivais, mas também seus aliados, ignorando todas as normas legais e diplomáticas, porque o caso Snowden desvela algo ainda mais grave: os Estados Unidos estão regidos por um sistema autoritário subterrâneo, que impõe leis secretas antidemocráticas.

Como se chama um regime assim? Ditadura, claro. E, como todos os regimes ditatoriais, proclamam incansavelmente ser realmente o mais correto e justo de todos os governos. Embora poucos governos tenham, ao mesmo tempo de alardear do que carecem os demais, dando lições de moral a todos os outros, se lançado a impor ao resto do mundo, a sangue e fogo, o seu modelo de democracia.

 

O conservador semanário The Economist magistralmente expôs há poucos dias (no artigo Governo Secreto - América contra a democracia) que, graças ao ex-técnico da CIA Edward Snowden, descobrimos muito mais do que o fato de que a Agência de Segurança Nacional (NSA) está espiando um milhão de pessoas nos EUA e ao redor do mundo, incluindo governos, personalidades, amigos e aliados, em violação das próprias disposições constitucionais dos Estados Unidos. O que aprendemos é que, sob o pretexto de combater o terrorismo, Washington estabeleceu um sistema de "tribunais secretos para aplicar em segredo as suas próprias interpretações secretas sobre as medidas precipitadas de segurança e emergência", aprovadas sem debate democrático. Um regime decidido a "perseguir com toda a força violenta da mais poderosa potência do mundo todo aquele que se atreva a dar uma olhada por trás do véu" que esconde essas atividades antidemocráticas.

O fundamento para essa alegação pode ser lido em um uma extensa crônica do The New York Times, que explica como os onze juízes que compõem o Tribunal de Vigilância de Inteligência Estrangeira (conhecido como Corte FISA) “foi convertido sigilosamente em algo como um Tribunal Supremo paralelo”, que está sentando jurisprudência e doutrina constitucional através de opiniões reservadas, escondidos da opinião pública. Esses onze juízes – todos nomeados por uma única pessoa: o presidente do Supremo, John Roberts, que tampouco foi eleito – autorizaram a espionagem maciça da NSA, ao retorcer a interpretação jurídica da Quarta Emenda da Constituição, que protege os cidadãos contra buscas e detenções arbitrárias. Além disso, a FISA toma todas as decisões ouvindo somente uma das partes, o governo, e não rejeita quaisquer operações de espionagem quando consultada (quase 1.800 no ano passado).

 

Um terceiro artigo (por outro meio de comunicação ainda menos suspeito de esquerdismo: o Wall Street Journal) esclarece que "a capacidade da NSA para coletar os dados telefônicos de milhões de norte-americanos baseia-se na redefinição secreta da palavra relevante". É isso mesmo: a FISA emitiu, desde meados dos anos 2000, numerosas autorizações classificadas que ampliaram o significado do termo e permitiram a coleta de "informação relevante" para uma investigação completa, que incluiria enormes bancos de dados com milhões de registros de cidadãos inocentes.

 

Os diferentes juristas consultados por esses meios de comunicação coincidem a respeito do gravíssimo perigo que pressupõe tal reinterpretação da doutrina constitucional, que visa estabelecer que "relevante" para uma investigação é equivalente a "todos". Assim como a arbitrariedade que supõe sentar jurisprudência segundo a qual o princípio legal de "necessidades especiais" (o que permite que nos registrem em um aeroporto, para impedir atentados, ou nos submetam ao teste de alcoolemia, para evitar acidentes) pode ser aplicado em todas as circunstâncias, quando os policiais argumentam risco à segurança nacional... Coisa que pela sua própria essência estão isentos de explicar ou justificar.

 

Ou seja, a Casa Branca (primeiro sob George W. Bush, mas agora até com Barack Obama) inventou uma rede jurídico-policial que dita decisões e implementa medidas de emergência por mecanismos confidenciais inteiramente fora do controle de organismos democrático eleitos, e escondidos do público e seus representantes decorrentes das urnas. Além disso, como a revelação do funcionamento deste regime autoritário subterrâneo colocaria (supostamente) em risco a própria segurança do Estado, cuja defesa é alegada por seus líderes, qualquer um que denuncie esse sistema injusto e ilegal deve ser perseguido como o pior terrorista. Como está sendo feito com Snowden.

 

Mas esta terrível ameaça não é apenas dirigida aos whistleblowers (aqueles que fazem soar o apito, em termo inglês para definir os que alertam o abuso de poder e as injustiças escondidos) como Snowden, Bradley Manning ou Julian Assange. O artigo do jornal cita dois senadores da Comissão de Inteligência do Senado (Ron Wyden e Mark Udall) que protestam há tempos por se estar fazendo uma "interpretação secreta" do Patriot Act (lei antiterrorismo aprovada após o 11 de setembro e que permitiu a Bush cometer as atrocidades da sua "guerra ao terror"), mas até agora não tinham se atrevido a apontar qual era essa jurisprudência oculta.

 

Agora, os escritórios destes senadores finalmente admitiram ao Wall Street Journal que se referiam precisamente à nova interpretação do termo "relevante", que permitiu a monstruosa operação de espionagem ilegal da NSA. Algo tão importante para a Casa Branca que está ficando evidente seu poder imperial e autoritário somente por seu desejo de vingança a qualquer preço, finalmente caindo a máscara. Como eles não vão aterrorizar aqueles que se atrevem a denunciar o mal, se até mesmo os mais proeminentes senadores norte-americanos têm medo de revelá-lo?!

O que é incontestável é que a única lei respeitada por Washington é a do silêncio. Será que o mesmo acontece com todos os governos que se dizem democráticos?

 

É difícil saber, quando todo cidadão que trata de descobri-lo é perseguido implacavelmente, com os governos mais poderosos do mundo dispostos a violar qualquer lei ou princípio para manter oculta esta realidade.

 

Carlos Enrique Bayo é editor do Diário Público, onde este artigo foi originalmente publicado.

Traduzido por Daniela Mouro, do Correio da Cidadania.

 

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