Correio da Cidadania

Depois de 14 de agosto, que muçulmano voltará a acreditar nas urnas?

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O ensaio egípcio foi destruído. A unidade do Egito, esse aglutinamento inclusivo, patriótico e essencial que havia impedido a nação de desmoronar desde a derrubada da monarquia, em 1952, e o mandato de Nasser, se dissolveu entre matanças, tiroteios e a fúria desta quarta-feira na repressão à Irmandade Muçulmana. Cem mortos, 200, 300, chegando a 600 mártires. O saldo não implica nenhuma diferença: para milhões de egípcios, o caminho da democracia foi destruído entre o fogo e a brutalidade. Que muçulmano que busque um Estado baseado em sua religião voltará a confiar nas urnas?

 

Essa é a verdadeira história do atual banho de sangue. A quem surpreende que os simpatizantes da Irmandade Muçulmana carregassem Kalashnikovs nas ruas do Cairo? Ou que quem apoia o exército e seu governo interino nas regiões de classe média da capital tenham tomado suas armas e respondido aos tiros? Isso não é a Irmandade Muçulmana contra o exército, mas com tal hipocrisia os governantes ocidentais tratarão de descrever a tragédia.

 

A violência desta quarta-feira criou uma cruel divisão na sociedade egípcia que tardará anos para ser sanada: entre esquerdistas e laicos, cristão coptas e muçulmanos sunitas dos povoados, entre povo e polícia, entre a Irmandade. As igrejas incendiadas eram o inevitável corolário desta terrível explosão.

 

Na Argélia em 1992, e no Cairo, em 2013, e quem sabe o que acontecerá em Túnis nas semanas ou meses seguintes. Os muçulmanos que chegaram ao poder de maneira justa e democrática, graças ao voto do povo, foram apeados deste poder.

 

E quem pode esquecer o maléfico bloqueio a Gaza quando os palestinos votaram democraticamente para que o Hamas os governasse? Não importa quantos erros cometeu a Irmandade no Egito, nem quão promíscuo ou arrogante foi o seu mandato; o presidente democraticamente eleito, Mohamed Mursi, foi derrubado pelo exército. Tratou-se de um golpe de Estado, como bem descreveu John McCain em seu momento.

 

Obviamente, a Irmandade Muçulmana, há tempos, teve de moderar seu amor próprio e manter-se dentro dos limites da pseudo-democracia permitidos pelo exército egípcio, não porque isso fosse justo ou aceitável, mas porque a outra alternativa era voltar à clandestinidade, às prisões à meia noite, à tortura e ao martírio. Esse foi o papel histórico da Irmandade, com períodos de vergonhosa colaboração com as forças britânicas que ocuparam o Egito e com as ditaduras militares que governaram o país.

 

A volta à obscuridade que já se anuncia tem só dois resultados possíveis: que a Irmandade seja extinta no meio de uma violência atroz ou que vença, em um futuro distante. Que o céu guarde o Egito de um destino que o transforme em uma autocracia islamita.

 

As chamas já faziam seu venenoso trabalho nesta quarta antes de que o primeiro cadáver fosse sepultado. O Egito pode evitar uma guerra civil? Poderá o leal exercito egípcio fazer desaparecer a terrorista Irmandade Muçulmana? O que há sobre aqueles que se manifestavam antes da deposição de Mursi? Tony Blair foi só um dos que falaram do iminente caos, ao expressar seu apoio ao general Abdul Fattah Al Sisi. Cada incidente violento no Sinai, cada pistola nas mãos da Irmandade Muçulmana, será usada pra convencer o mundo de que a organização, longe de ser pobremente armada, mas muito bem organizada como movimento islamita, é o braço direito da Al Qaeda.

 

A história poderá adotar outra versão. Certamente será difícil explicar como que vários milhares, talvez milhões, de egípcios liberais e educados continuaram dando seu total e mais profundo apoio a um general que dedicou muito do tempo que se seguiu à deposição de Mursi justificando que o exército praticou provas de virgindade às mulheres que protestavam na praça Tahrir. Al Sisi será colocado sob muita pressão nos próximos dias. Sempre se lhe considerou amistoso com a Irmandade, ainda que tal ideia possa muito bem ser um mito provocado pelo fato de que sua esposa sempre leva um véu negro que só deixa os olhos a descoberto.

 

Muitos intelectuais de classe média que respaldaram o exército terão que enfiar suas consciências numa garrafa para justificar os atos que ocorrerão no futuro.

 

Esperemos, também, o tradicional roteiro de perguntas, tais como: isso significa o fim do Islã político? Neste momento, é assim. A Irmandade não está com ânimo de fazer mais experiências com a democracia, o que põe o Egito em um perigo imediato, pois a falta de liberdade provoca violência.

 

O Egito será uma nova Síria? Isso é pouco provável. O Egito não é um Estado sectário e nunca foi, nem sequer com seus 10% de população cristã, e tampouco é inerentemente violento. Nunca provou selvagens levantes, como os dos argelinos contra os franceses, nem insurgências como a síria, libanesa e palestina contra os mandatos britânicos e francês.

 

Muitos fantasmas estarão cabisbaixos e envergonhados neste dia, como no dia que participaram da grande revolta dos advogados, em 1919, pra dar um exemplo, ou o fantasma de Saad Zaghloul e do general Muhammad Neguib, cujas exigências revolucionárias de 1952 são similares às das pessoas que se reuniram na praça Tahrir em 2011.

 

Sim, algo morreu no Egito nesta quarta-feira. Não a revolução, porque em todo o mundo árabe os povos conservam a noção íntegra, ainda que ensanguentada, de que seus países pertencem ao povo, e não a seus líderes. Morreu a inocência, como ocorre em toda revolução? Não. O que expirou neste dia foi a ideia de que o Egito é a mãe eterna da nação árabe, o ideal nacionalista, a pureza com que o Egito se considerava a mãe de seu povo. Porque as vítimas pertencentes à Irmandade, assim como para a polícia e os simpatizantes do governo, também eram filhos do Egito, mas ninguém os considerou assim. Se transformaram em terroristas, os inimigos do povo. E essa é a nova herança do Egito.

 

Robert Fisk é jornalista e escreve no diário inglês The Independent.

 

Tradução para o castelhano de Gabriela Fonseca, do La Jornada, e para o português de Gabriel Brito, do Correio da Cidadania.

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