Jogos ocultos em torno do governo Dilma
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- Guilherme C. Delgado
- 14/09/2015
Dois fatos muito significativos, oriundos do campo agrário, com enorme repercussão na vida urbana, merecem comunicação e esclarecimento, até para que a opinião pública perceba o jogo real de poder, ofuscado pelas campanhas sistemáticas e monotemáticas em torno de uma seletiva corrupção no serviço público.
O primeiro destes fatos nos dá notícia o Ministro do Desenvolvimento Agrário, Patrus Ananias, com seu excelente artigo “Para Fazer Valer a Lei Áurea” (Jornal O Globo de 09-09-2015). Neste artigo, o ministro Patrus implicitamente denuncia uma orquestração para não cumprir uma Instrução Normativa do INCRA – IN de número 83/2015, cujo ponto central de contestação (intragovernamental), que por razões óbvias o ministro não pode indicar, é a parte desta IN, que indica as áreas rurais verificadas pela fiscalização do Ministério do Trabalho em parceria com a Polícia Federal, como de prática do trabalho escravo, para serem mapeadas como suscetíveis à desapropriação para efeitos de reforma agrária.
A fundamentação ética e jurídica dessa Instrução Normativa é muito sólida, corroborada até em 2014 pela Emenda Constitucional n. 81/2014, que prevê não somente a benigna desapropriação por interesse social (Art. 186 da Constituição Federal), mas a expropriação dos imóveis onde ocorram tais práticas ilícitas. Lembrar ao leitor que a nódoa do trabalho ‘similar à escravidão’ é também um fenômeno urbano, que afeta principalmente neste espaço os trabalhadores imigrantes, enquanto no espaço rural são os migrantes internos as grandes vítimas.
Desgraçadamente, o trânsito político dessa iniciativa do MDA, que o ministro Patrus, por razões óbvias não revela, mereceu ostensivo veto do ‘lobby’ ruralista, com curiosa participação de familiar de ministra de Estado, prontamente atendido pelo ministro-chefe da Casa Civil, Aluízio Mercadante, expedito em ordenar à Advocacia Geral da União a não efetivação da referida norma administrativa do INCRA-MDA.
O segundo fato significativo, também ofuscado ao debate público, é a iniciativa pública da ministra de Agricultura e Pecuária – Katia Abreu (“Globo Rural”, atualização na internet em 08/09), no sentido de levar publicamente a presidente Dilma um proposta de retirada da competência da ANVISA o registro e fiscalização dos produtos agrotóxicos e veterinários utilizados pela agropecuária, remetendo-os à competência específica do ministério da Agricultura e Pecuária, autodeclarado “Ministério do Agronegócio”. Até o momento, o governo Dilma ainda não se manifestou sobre a proposta pública da Ministra Katia Abreu.
O leitor não precisa ser especialista para entender que os alimentos, a água, o ar e a biodiversidade ambiental são claramente assuntos de saúde pública, cujo poder de regulamentação está conferido ao Ministério da Saúde e sua agência fiscalizadora, a ANVISA. Subtrair tal competência em nome dos interesses da economia do agronegócio é algo altamente suspeito, de partida, sem embargo de que a população se sinta cada vez mais refém da indústria do agrotóxico, mesmo na situação atual.
Esses dois fatos públicos, relacionadas ao direito social do trabalho livre e do acesso a alimentos saudáveis e seguros, conquanto fortemente apoiados em argumentos éticos, técnicos e jurídicos, não passam pelo crivo político da base ruralista do governo. Aparentemente, o Ministério da Saúde pode sofrer os mesmos bloqueios normativos, a exemplo do revelado no caso citado do INCRA-MDA, porque de orçamento já sofrem de longa data. O governo Dilma revela-se totalmente refém neste, como em inúmeros outros casos da sua (in)governabilidade.
Mas além de prisioneiro dos interesses ultraconservadores, o governo Dilma é considerado a essa altura descartável pelo recrudescimento ostensivo da campanha pelo ‘impeachment’. E curiosamente vivemos um momento dramático, como de certa forma vivido em outras épocas, a exemplo do cerco a Getúlio Vargas pela “República do Galeão”. Cair com honra ou cair com desonra foi a disjuntiva trágica a que se viu compelido o presidente Vargas.
Os tempos mudam, os personagens idem e as ameaças se repetem na história. E mudando o que precisa ser mudado, a exemplo do corajoso testemunho do ministro Patrus, é preciso considerar que mesmo na hipótese de queda iminente, fartamente orquestrada por muitos ‘lobbies’, é preciso manter a honra.
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Guilherme Costa Delgado é doutor em economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.