Fuga de capitais: riscos e ameaças
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- Fernando D’Angelo
- 14/09/2015
Nada mais simbólico para demonstrar a força do grande capital no governo do que a nomeação de Joaquim Levy para ministro da Fazenda. Infelizmente, o histórico do PT revela que não se trata de um recuo estratégico para posterior avanço. Aas nomeações de Henrique Meirelles para o Banco Central e de Antonio Palocci para ministro da Fazenda, em 2003, também sinalizavam um período de continuidade das reformas neoliberais.
No momento da nomeação de Levy, foi possível encontrar nos jornais parte da explicação. Para o Valor Econômico, a escolha foi uma tentativa de “acalmar os mercados” (1). Outras expressões foram usadas pela grande mídia, como “ceder” ou “fazer as pazes com o mercado”. O que todas elas expuseram foi um movimento objetivando agradar ao grande capital e apontando para a direção que o mercado financeiro esperava, pouco importando se esse movimento desagradou parte da militância que se iludira com o discurso progressista do período eleitoral.
Esse movimento foi feito num momento muito delicado para o governo. Destaco aqui a situação das contas externas brasileiras. De 2008 a 2013, o país apresentou déficit em transações correntes, com os superávits da balança comercial sendo superados pelos déficits em serviços e rendas. Nesse período, portanto, o país ficou refém da entrada de capitais estrangeiros para fechar suas contas do balanço de pagamentos.
Para piorar, em 2014, após 13 anos seguidos de superávits, a balança comercial apresentou déficit, contribuindo assim para o crescimento do déficit em transações correntes e agravando a necessidade de atrair recursos pela conta financeira, por meio de empréstimos em moeda estrangeira ou viabilizando a entrada de capitais externos para aquisição de ativos domésticos, fixos ou financeiros, ampliando o nosso passivo externo.
A manutenção desse elevado patamar de necessidade de financiamento externo é um sério fator de risco e pressão sobre o balanço de pagamentos, pois, nessa situação, ficamos reféns da entrada de capitais estrangeiros para fechar nossas contas externas. Mas este não é o único fator de risco.
Desprendendo-nos da esfera dos fluxos e olhando para os estoques, vemos uma grande massa de capitais, nacionais e estrangeiros, com grande liquidez e mobilidade para deixar o país do dia para a noite. São capitais que podem ser exigidos pelos depositantes sem aviso prévio, mobilizados por eles como meios de pagamento e enviados para o exterior.
Diferentemente do cenário da década de 1980, quando a dependência externa se expressava na necessidade de geração de superávits comerciais suficientes para fazer frente à amortização da dívida externa, ao pagamento de juros e às remessas de lucros, hoje a questão é mais complexa. Isso porque, dos anos 1980 para cá, houve uma mudança qualitativa e quantitativa na forma da dependência financeira. Com a redução das barreiras, a integração dos mercados e o crescimento espetacular da riqueza financeira nas três últimas décadas, a dependência se expressa também na brutal ameaça representada pela elevada mobilidade dos capitais.
Do lado dos capitais estrangeiros, dados do Banco Central do Brasil (2) relativos a dezembro de 2014 indicavam um passivo externo de US$ 1,6 trilhão. Subtraindo desse total as reservas internacionais do Banco Central, chega-se a US$ 1,2 trilhão de Passivo Externo Líquido. Se ainda considerarmos a modalidade “Participação do Capital” do Investimento Estrangeiro Direto como um estoque de passivo mais estável (o que é discutível), e excluindo esse estoque do Passivo Externo Líquido, ainda restariam US$ 645 bilhões de Passivo Externo Financeiro Líquido ( que equivalem a cerca de 28% do PIB), divididos entre estoques de investimentos em ações, títulos de renda fixa, empréstimos intercompanhia e outros (3). Esse elevado estoque de passivo externo financeiro líquido é um indicador de nossa dependência e fragilidade externa, do potencial de desestabilização da economia brasileira que pode ser provocado pelo movimento de capitais estrangeiros.
Defensores do governo destacam a redução da dívida externa pública e a redução do percentual do passivo em moeda estrangeira, ocorridos a partir de 2002, conquistas importantes, mas que jogam luz apenas sobre um lado da questão. Do outro lado está o aumento progressivo da mobilidade dos capitais, nacionais e estrangeiros, impulsionada pelo aprofundamento da abertura financeira (4) e a elevação da participação estrangeira na dívida pública interna (5).
Completa e agrava o quadro a permanência da necessidade de financiamento externo a curto prazo (formado pela soma do déficit em transações correntes e da amortização da dívida externa, que fechou o ano de 2014 em cerca de US$ 150 bilhões).
Nesse cenário, o mercado financeiro recorrentemente ameaça o governo com uma possível e avassaladora retirada de capitais, que pode levar a uma crise do balanço de pagamentos e a uma crise econômica de grandes proporções, vide a constante ameaça de retirada do grau de investimento pelas agências de rating.
O caminho escolhido pelo PT, ao que tudo indica, do pragmatismo imediatista, em nada contribui para mudar a situação de dependência. Pelo contrário, contribui para continuar a reforçar e agravar a dependência da economia brasileira. No que se refere às medidas de curto prazo, nesse cenário de fragilidade externa e elevada dívida interna, a perspectiva é de continuidade da elevação da taxa de juros (SELIC) e de novas rodadas de medidas de ajuste, exigindo dos trabalhadores mais sacrifícios.
Caso a ameaça de aumento dos juros nos EUA se concretize, a elevação da SELIC deve ser ainda maior. No que se refere às medidas de médio e longo prazos, não há nenhum indício de mudança de comportamento, devendo ter continuidade a política de aprofundamento da abertura comercial e financeira.
A expectativa, portanto, é de incerteza, instabilidade no mercado financeiro, oscilações da bolsa de valores e da taxa de câmbio, demonstrações de força do mercado e, por fim, celebração dos investidores. E, de outro lado, o delicado cenário que se desenha – e já se realiza – aponta para uma forte ofensiva do capital sobre as conquistas e direitos dos trabalhadores.
Notas:
http://www.valor.com.br/financas/3789974/nova-equipe-economica-empolga-mercado
2) Dados disponíveis em: http://www.bcb.gov.br/ftp/notaecon/ni201507sep.zip , acesso em 22/08/2015
3) O conceito de Passivo Externo financeiro foi desenvolvido por Gonçalves (2011). Ver http://www.ie.ufrj.br/hpp/intranet/pdfs/texto_nacional_desenvolvimentismo_as_avessas_14_09_11_pdf.pdf
4) Para mais detalhes sobre a abertura financeira no período ver Machado (2011), capítulo II. Disponível em http://www.bibliotecadigital.unicamp.br/document/?code=000857193
5) O estoque da Dívida Pública Federal Mobiliária Interna detida por Não residentes passou de 5% em dezembro de 2007 para 20% em novembro de 2014, segundo o Relatório Mensal da Dívida Pública, publicado pelo Tesouro Nacional e disponível em http://www.tesouro.fazenda.gov.br/relatorio-mensal-da-divida
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Fernando D'Angelo é mestre em economia pelo Instituto de Economia da Unicamp.