É possível reconstruir uma esquerda revolucionária depois da ruína do PT ou esta soterrará toda a esquerda?
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- Valério Arcary
- 05/10/2015
As virtudes dos homens são semelhantes ao voo dos pássaros.
A ave que se habitua com a paisagem rasteira, perde o gosto pela altura.
Sabedoria popular indiana
A pergunta veio de um jovem militante da Feira de Santana que assistiu a um debate na Universidade Estadual no primeiro semestre. É ou não possível reconstruir a esquerda depois da ruína do PT? Ou a ruína do PT significará uma avalanche que irá soterrar toda a esquerda, incluindo aquela que é oposição ao governo?
Em outros termos: merece ainda ser seriamente considerada a "maldição" lançada por Zé Dirceu em 1992, quando a Convergência Socialista foi expulsa do PT: "fora do PT estarão condenados ao gueto da marginalidade".
Esse é o argumento mais repetido contra a esquerda revolucionária. Resume-se a uma lamentação: não adianta ter razão nas críticas aos governos do PT, mas não conseguir sair da condição de minoria. Eis a grande dúvida: é possível ou não ir além da condição de minoria e, ao mesmo tempo, ser oposição ao governo Dilma?
Já existe ruptura com o lulismo
A resposta a ela não é difícil: sim, é possível, mas há uma pré-condição. Só poderá acontecer quando se levantar uma grande onda de luta no movimento dos trabalhadores e da juventude. Propostas revolucionárias não ganham influência de massas a não ser em uma situação revolucionária, ou pelo menos transitória.
Por outro lado, uma avalanche já começou. A ruptura com o petismo não é algo para um futuro incerto. São muitos milhões que já romperam. É toda uma enorme parcela da geração mais jovem da classe trabalhadora que já perdeu esperança no lulismo. O que há de velho, de apodrecido, de corrompido no movimento dos trabalhadores e da juventude precisa ser deslocado, para abrir o caminho. Acontece que o ritmo dos dois processos não é o mesmo.
A questão é saber se aqueles que rompem com o lulismo encontrarão ou não, exterior ao PT e em oposição ao governo, um polo de esquerda suficientemente forte que possa ser um ponto de apoio para a defesa dos seus interesses. Todos aqueles que hesitam em romper com o governo atrasam esta dinâmica. Aqueles que se posicionam no meio do caminho não são menos responsáveis, podem ser até mais perigosos.
Preparar-se para esta disputa exige lutar para ocupar posições estratégicas nas organizações dos trabalhadores contra os governistas. Ajudar a vanguarda a educar-se no marxismo.
Defender a democracia no movimento. Construir a frente única para lutar e impulsionar a unidade de ação. Fortalecer o trabalho de organização de base nas empresas, desenvolver campanhas internacionalistas, deslocar as burocracias aonde for possível, e construir novos instrumentos de luta como a CSP/Conlutas, ou a Anel e outras. Tudo isso e muito mais são as tarefas que estão ao nosso alcance.
Compreender que os ritmos da história podem ser cruéis, porque estes treze anos não foram fáceis, sem desmoralizar, sem desesperar. Saber esperar e ter confiança de que o proletariado irá se levantar, novamente, com disposição revolucionária, como já o fez no passado, ou seja, valorizar a firmeza ideológica.
O que coloca uma segunda pergunta (e esta não é fácil responder): quando virá essa grande onda? Ninguém pode responder por antecipação. Não há sismógrafos infalíveis de situações revolucionárias. Mas as condições objetivas amadurecem. Sempre amadurecem mais rapidamente que as subjetivas.
A hora da decisão chegará
A questão, portanto, é ajudarmos a experiência dos setores mais lúcidos, ou mais decididos, de tal maneira que a relação de forças se altere de maneira favorável o mais rapidamente possível. O que, sim, podemos dizer é que o ajuste do governo coloca a exigência de uma mobilização proletária e popular para derrotá-lo. Isso passa nesta semana pela greve bancária, pela greve dos petroleiros. Como passou pela greve dos Correios. E teve um grande momento na manifestação da Paulista em 18 de setembro. Na melhor perspectiva, pode evoluir, na medida em que o impacto do ajuste econômico venha a ficar mais claro, na direção da greve geral.
Nesse processo a luta política no interior da esquerda ficará, provavelmente, mais áspera, mais ríspida, mais intensa do que antes. As relações entre organizações políticas rivais não podem ser harmoniosas, fraternas, amenas já que todas as classes são socialmente heterogêneas, incluindo o proletariado, e a disputa pela direção é um processo exasperado. Podem, contudo, ser respeitosas. O respeito se define pela disputa em torno das ideias. Desrespeitosas são quando se afastam da crítica dos argumentos e degeneram em insultos que ofendem as pessoas.
O movimento dos trabalhadores nos últimos cento e cinquenta anos à escala internacional, embora menos heterogêneo que outros movimentos sociais, esteve dividido, grosso modo, em três grandes correntes históricas: a reformista, a centrista e a revolucionária. É inevitável que haja uma luta dura entre estes três campos políticos. Hoje estes três campos estão bem delimitados. Os reformistas estão com o governo e os revolucionários estão contra o governo. Entre estes dois campos se posiciona o centrismo, que não pode apoiar o governo, mas não quer romper com o governo.
Se existe um padrão regular e recorrente na história da esquerda mundial é o que nos ensina que, em situações defensivas, a tendência moderada, portanto, programaticamente reformista, foi sempre esmagadora maioria. Nessas circunstâncias, o centrismo, que oscila no terreno da tática, erraticamente, porque não tem âncora estratégica de programa, nem raízes sociais de classe, permanece em sua órbita de atração, enquanto as posições revolucionárias estão condenadas a ser uma minoria. Só em situações revolucionárias as ideias anticapitalistas podem conquistar maioria, porque somente diante de uma profunda desmoralização burguesa, de divisão da classe média e de disposição revolucionária de luta dos trabalhadores a perspectiva do poder é, politicamente, visível por milhões.
A experiência histórica sugere, também, que acontece uma inversão no descompasso relativo das relações políticas das massas trabalhadoras e suas organizações, quando se abre uma situação revolucionária. Expliquemo-nos: em situações reacionárias, em que as pressões sociais hostis são imensas, as direções dos partidos marxistas-revolucionários estão à "esquerda" das suas bases, estes militantes estão à "esquerda" da vanguarda e a vanguarda está, por sua vez, à "esquerda" das massas. Quando reina o ceticismo, e o senso comum é de não ser possível mudar a sociedade, é preciso ousadia para marchar contra a corrente.
Sabemos como este processo de isolamento pode conduzir involuntária ou até imperceptivelmente a um "exílio social" dos revolucionários. Quando a massa dos trabalhadores perde a confiança em suas próprias forças, resistir às pressões de adaptação política não é fácil, e as aventuras arrivistas de integração são generosamente recompensadas. O afastamento dos grandes fluxos de opinião majoritários entre os trabalhadores favorece pressões doutrinárias e, marginalmente, até "patologias" sectárias. Os "nomadismos" intelectuais e as "diásporas" políticas são uma das consequências das inevitáveis rupturas que se precipitam em série, cisão após cisão.
Estas relações políticas entre representantes e representados se invertem, porém, quando as relações de força começam a mudar a favor dos trabalhadores e do povo. As massas giram abruta e velozmente à "esquerda" e ultrapassam a sua vanguarda, e superam até mesmo as organizações revolucionárias que, pela pressão das forças de inércia política, reagem sempre, tendencialmente, atrasadas à evolução acelerada das relações de força. Se este processo se confirmou como uma recorrência em todas as revoluções urbanas, e atingiu seriamente até o bolchevismo, seria ingênuo ou ligeiro imaginar que não voltaria a se repetir no futuro.
O destino da esquerda petista, da Consulta Popular ou do PCdoB parece, portanto, mais perturbador que o da esquerda revolucionária. É sobre eles que a avalanche da ruína do petismo poderá desabar, porque não estão de acordo com o governo, mas se recusam a romper com o governo. Não estão de acordo com a política econômica do governo Dilma, opõem-se às metas do superávit primário de Levy, à elevação dos juros, aos cortes no orçamento para a educação e saúde, à liberação do fluxo de dólares que desvalorizam o real, que são, como é óbvio, a principal orientação do Planalto para confortar os "investidores", o novo eufemismo para burguesia.
Mas, atenção, não estão satisfeitos, também, com a reforma ministerial que fortaleceu o PMDB, nem com o retorno da CPMF. Nunca foram entusiastas do Bolsa Família ou das outras políticas compensatórias. Já perderam as ilusões na política do Itamaraty, depois da presença das tropas no Haiti, da recusa de oferecer asilo para Snowden, da impotência diante da crise dos refugiados no Mediterrâneo.
Em resumo, é preciso procurar com muito boa vontade, minuciosamente, para encontrar alguma política do governo Lula que estas organizações apoiem. Estas posições são fáceis de entender. No entanto, insistem em permanecer no governo, o que, admitamos, é mais do que estranho. Depois de treze anos, é bizarro.
História ensina
Alguns explicariam esta insistência tática com um argumento politicista, portanto, estritamente eleitoral: a maioria dos dirigentes da esquerda petista e do PCdoB teria que se resignar a um cálculo ‘realista’ de possibilidades de renovação de mandatos, considerando que a sobrevivência eleitoral exterior ao PT seria muito difícil nas condições impostas pelo coeficiente eleitoral.
É um argumento muito simples, mas poderoso. Organizações políticas desenvolvem aparatos, e aparatos criam interesses próprios. Esta teimosia estratégica que desafia o bom senso exige, todavia, uma explicação marxista mais complexa, portanto, uma explicação que deve condicionar os enfoques da análise política às pressões de classe.
As pressões que despedaçam a esquerda brasileira, treze anos depois da posse do governo de coalizão liderado pelo PT de Lula e Dilma, antecipam questões estratégicas que se colocarão à escala internacional para todas as forças que se reivindicam anticapitalistas. Nessa dimensão, embora resguardadas as inúmeras desproporções, vale a pena tentar aprender com a história.
Um desafio semelhante esteve colocada, há cem anos atrás, em 1915, tanto na Alemanha - para Rosa Luxemburgo e a esquerda do SPD - quanto na Rússia - para Lênin e os bolcheviques - quando o desafio a ser resolvido pela corrente internacionalista, dentro da Segunda Internacional foi, primeiro, a separação e disputa de influência com o reformismo e, depois, a atitude face aos governos Kerensky em Petrogrado em 1917 e Ebert/Scheidemann em Berlim, em 1918.
Ainda quando mantiveram diferenças sobre o momento da ruptura não hesitaram em escolher o campo de uma irreconciliável oposição de esquerda. Mas, tanto na esquerda alemã quanto no bolchevismo, a relocalização não foi indolor. Exigiu uma intensa luta política interna. As questões colocadas pelas rupturas não foram nem simples nem ligeiras. Rosa Luxemburgo não só foi pioneira na polêmica com Bernstein, mas chegou antes, também, à conclusão do caráter irreversível da adaptação da corrente de Kautsky e Bebel no SPD alemão. Foi Lênin, no entanto, quem se convenceu primeiro de que a divisão, pelo menos na Rússia, era incontornável. Somente depois de 1912, contudo, conseguiu uma maioria entre os bolcheviques para uma construção delimitada, portanto, independente.
Em ambos os países, as circunstâncias da luta contra a esquerda reformista quase aniquilaram as alas revolucionárias. Nem lembrar que, na maioria dos outros países, uma ínfima minoria de marxistas permaneceu internacionalista. Parece sugestiva, portanto, uma comparação histórica que remete ao terremoto que destruiu a esquerda alemã quando da I Grande Guerra Mundial porque, em ambas as circunstâncias, as hesitações determinaram os atrasos na reorganização da esquerda revolucionária.
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Valerio Arcary é professor aposentado do IFSP.
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