Correio da Cidadania

Repisando “narrativas” – Alternativas Industriais

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O documento "Mudar para Sair as Crise..." reafirma, com razão, que o “crescimento econômico baseado na indústria de transformação é condição necessária para o desenvolvimento com redistribuição da renda”. Acrescenta, também com razão, que a “experiência internacional ensina que nenhum país se tornou desenvolvido sem uma indústria forte e competitiva”. No entanto, aduz que as “nações industrializadas” são as que “apresentam melhores índices de renda e bem-estar social”. Ou seja, dá a entender que industrialização e melhores índices de renda e bem-estar social estão naturalmente associados, o que não corresponde à experiência histórica.

 

Quando o documento afirma que, “entre 1950 e 1980, o Brasil vivenciou um longo período de crescimento econômico liderado pelo processo de industrialização e diversificação e integração da estrutura industrial brasileira”, ele se vê obrigado a parar por aí. Isto porque a industrialização subordinada e dependente daqueles anos, em especial dos anos ditatoriais, foi acompanhada de uma brutal concentração de renda no polo capitalista, e por um também brutal aumento da pobreza e da miséria no polo popular.

 

Situações idênticas ocorreram nos processos de industrialização da Inglaterra, França, Estados Unidos, Alemanha e Japão, para ficarmos apenas em nações que se transformaram em potências capitalistas. Essas industrializações só começaram a melhorar os índices de renda e bem-estar quando as revoltas proletárias pareceram colocar em risco o domínio burguês. E, também, quando a globalização do domínio colonial capitalista, a partir do final do século 19, permitiu às burguesias transferir parte de seus superlucros da exploração colonial e semicolonial para suas classes trabalhadoras, procurando amaciar a luta de classes em seus países.

 

Mesmo assim, Estados de Bem-Estar social só surgiram após a II Guerra Mundial. A presença e a expansão do socialismo de tipo soviético, tanto na Europa do Leste quanto na Ásia, a emergência da Guerra Fria, e a eclosão de guerras anticoloniais na Ásia e na África, muito mais do que processos de industrialização, estiveram na origem desses Estados.

 

Embora, é bom que se acrescente, a reindustrialização acelerada da Europa, através do Plano Marshall, também jogou papel fundamental para que tais Estados pudessem existir.

 

De qualquer modo, não é um ponto fora da curva que, logo após o colapso do socialismo de tipo soviético, os capitalistas desses Estados venham tentando liquidar todas as conquistas e concessões de renda e de bem-estar. Já antes da crise de 2008, mais de 30 milhões de norte-americanos haviam deixado de participar do “american way of life”, subsistindo com rendas abaixo da linha da pobreza. E mesmo antes que as políticas monetaristas para salvar a zona do Euro houvessem transformado aqueles Estados em terra arrasada para os trabalhadores, muitas das características de bem-estar social já haviam desaparecido.

 

Ou seja, industrializações com “melhores índices de renda e bem-estar social” ocorreram em graus variados. Dependeram da intensidade interna da luta de classes, do grau de exploração externa de povos subordinadas e dependentes, e das tendências internacionais da luta de classes. Assim, a industrialização foi a base que permitiu a proletários e camadas populares, através da luta, e também da solidariedade internacional, obterem mais renda e algum bem-estar. Sem industrialização essas conquistas seriam impensáveis. Mas, sem a luta de classes, nacional e internacional, a melhoria de renda e o bem-estar dificilmente teriam existido.

 

Assim, o documento está certo ao afirmar que a “melhoria das condições de trabalho e renda depende de uma indústria forte e competitiva”. Mas falhou em não completar que tal melhoria, para se efetivar, precisa que a industrialização seja acompanhada de uma luta constante dos trabalhadores, e/ou esteja associado à presença de um Estado disposto a sustentar políticas de redistribuição de renda e bem-estar social.

 

A afirmação do documento, de que “sem a indústria, são remotas as possibilidades de desenvolvimento e da formação de uma sociedade menos desigual” é comprovável historicamente no Brasil, a partir dos anos 1980. A inflexão da trajetória industrialista brasileira desse período ampliou de forma ainda mais perversa o grau de desigualdade, pobreza e miséria legado pelo processo industrialista ditatorial.

 

No período neoliberal a indústria brasileira foi devastada e desnacionalizada. Como diz o documento, “observou-se uma perda relativa de dinamismo...”. Só a partir de 2003, “a despeito da apreciação cambial, houve alguma recuperação da capacidade do Estado de articular e induzir o crescimento”, com “reflexos positivos sobre a indústria”. O que foi verdade. No entanto, o documento deixou outra lacuna ao não explicar por que a indução do crescimento de então não foi suficiente para retomar um processo mais firme de industrialização.

 

Seria e é necessário apontar claramente que políticas de indução do consumo nem sempre oferecem as condições para que a indústria atinja o porte que se espera delas para permitir a distribuição da renda e do bem-estar. Ao não tratar dessa questão, o documento prefere constatar que “a crise financeira internacional de 2008, e seus efeitos que incidem na competição capitalista, voltaram a afetar negativamente o setor industrial”.

 

Teria havido uma “reação defensiva da indústria brasileira” que, por sua vez, teria engendrado “transformações que deram origem a um novo padrão de organização e acumulação”. Esse “novo padrão” seria caracterizado “por reconfigurações estruturais na indústria em direção à especialização regressiva e à desindustrialização, em paralelo ao surgimento de estratégias que garantem a acumulação do capital investido na esfera industrial”.

 

Nessa reconfiguração, “reduziu-se o conteúdo local em favor da importação de produtos finais e componentes”. Em consequência, a “perda de elos das cadeias produtivas é o fator que tem conduzido ao processo de desindustrialização”. No entanto, é necessário reconhecer que esse tipo de configuração é mais antigo. A Zona Franca de Manaus, ao invés de ser um polo de disputa do mercado internacional, desde muito aplica o sistema de importação de produtos intermediários e componentes, para montar produtos finais destinados ao mercado interno brasileiro. A indústria automobilística há muito usa e abusa desse expediente. Com um câmbio valorizado, a massa da pequena e da média indústria se sentiu em condições de seguir o exemplo dos monopólios e oligopólios para ganhar algum grau de competitividade.

 

Portanto, falar em “reação defensiva da indústria brasileira” não esclarece a atual estrutura monopolizada e oligopolizada de tal indústria, nem as condições em que seus setores pequenos e médios sobrevivem. E falar em “recuperação do protagonismo da indústria nacional – em um contexto de divisão internacional do trabalho moldada pela ascensão asiática na produção manufatureira e de reordenamento global das cadeias de valor...” torna-se uma generalidade. De que “indústria nacional” estamos falando? Da indústria automobilística, que não possui qualquer marca nacional?

 

Sem esclarecer a atual estrutura patrimonial da indústria existente no Brasil corre-se o risco de tentar “dar sustentabilidade a um crescimento econômico” que pouco tem de “nacional”. E, apesar de criar mais “oportunidades para a incorporação da força de trabalho em postos de trabalho de produtividade mais elevada, e, portanto, de melhor qualidade”, ou por isso mesmo, podemos restringir a absorção da força de trabalho existente no Brasil, e ampliar os desempregos estrutural e conjuntural.

 

De qualquer modo, o documento "Mudar para sair da Crise...” tem razão em reivindicar uma “política econômica” que mobilize “um processo de desenvolvimento industrial e produtivo para o qual concorrem, entre outros: uma política cambial que proteja a indústria tecnologicamente competitiva; a redução dos juros; a criação de mecanismos privados de financiamento de longo prazo; o apoio e estímulo ao desenvolvimento de inovações no campo da ciência e da tecnologia para agregar valor a processos produtivos”.

 

Porém, não tem razão ao esquecer que, nas atuais condições do Brasil, os principais objetivos do desenvolvimento industrial e produtivo devem ser a geração de empregos e o crescimento não só da renda bruta, mas também da renda nacional. O que exige uma política econômica ainda mais qualificada do que a lista de itens acima.

 

Talvez a política econômica que o Brasil necessite, tendo por base um processo de desenvolvimento industrial e produtivo gerador de empregos e de renda nacional, deva incluir outros itens importantes, e exemplo de:

 

a) uma política de transformação de todas as estatais, além da Petrobras, em orientadoras do processo industrialista;

 

b) a quebra dos sistemas industriais, comerciais e de serviços monopólicos e oligopólios, e sua transformação em sistemas concorrenciais;

 

c) apoio especial aos sistemas industriais, comerciais e de serviços, constituídos de micros, pequenas e médias empresas, com baixas tecnologias, mas alta densidade de emprego de forças de trabalho;

 

d) a regulamentação do sistema de atração de investimentos externos, impedindo investimentos de curto prazo e estimulando os investimentos de médio e longo prazo que adensem as cadeias produtivas estratégicas;

 

e) uma política agrícola que eleve a produção de alimentos para o mercado interno como objetivo estratégico, inclusive na luta contra a inflação.

 

É verdade que vários desses itens são tratados ao longo do documento. Mas, além de não haverem sido incorporados àquela lista de itens de “política econômica” que mobilize “um processo de desenvolvimento industrial e produtivo”, vários deles apresentam lacunas que nos obrigam a tentar esclarecê-las melhor em comentários posteriores.

 

 

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Wladimir Pomar é escritor e analista político.

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