Europa paga por seus governantes
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- Patrick Cockburn
- 24/03/2016
A captura na semana passada de Salah Abdeslam, que as autoridades acreditavam ter sido o último planejador vivo dos massacres de Paris, significa que a mídia está, novamente, focando sua atenção na ameaça de ataques terroristas praticados pelo Estado Islâmico (EI). Pergunta-se como o homem mais procurado da Europa foi capaz de enganar a polícia por tanto tempo, apesar de ele continuar vivendo em sua casa no distrito de Molenbeek, em Bruxelas. Os canais de televisão e os jornais levantam questões sobre as chances de o EI realizar uma nova atrocidade com o objetivo de dominar os noticiários, mostrando que seus combatentes ainda estão soltos por aí. Esta hipótese concretizou-se na última terça-feira, 22 de março, na capital da Bélgica, com três explosões que mataram 34 pessoas e feriram mais de 120.
A repercussão dos eventos em Bruxelas está de acordo com a que ocorreu após os ataques de janeiro (Charlie Hebdo) e novembro em Paris (Teatro Bataclan), e dos assassinatos nas praias da Tunísia, todos perpetrados pelo EI no ano passado. Durante vários dias, há uma cobertura vasta: a imprensa utiliza seu tempo e espaço muito além do que seria necessário para relatar e desenvolver a história. Porém, o foco de sua cobertura muda, de maneira abrupta, para qualquer outra coisa, como se o EI se tornasse notícia de ontem. O movimento é tratado como se tivesse deixado de existir, ou então perdido sua capacidade de afetar nossas vidas.
Na verdade, não que o EI tenha deixado de matar pessoas em grande escala desde a carnificina em Paris, no último 13 de novembro. Ele só não o fazia na Europa. Estive em Bagdá em 28 de fevereiro, quando dois homens-bomba do Estado Islâmico, utilizando motocicletas, explodiram-se em um mercado de celulares a céu aberto, matando 73 pessoas e ferindo mais de 100, em Sadr City. No mesmo dia, dezenas de combatentes do EI, montados em pick-ups com armamento pesado instalado na traseira, atacaram postos avançados da polícia e do exército em Abu Ghraib, lar da famosa prisão norte-americana, no subúrbio da capital iraquiana. Antes, ocorrera um ataque inicial liderado por pelo menos quatro homens-bombas, um deles lançando seu veículo carregado de explosivos contra um quartel militar. O tiroteio durou várias horas, ao redor de um silo de grãos em chamas.
Fora dali, o mundo quase não se deu conta desses acontecimentos sangrentos, pois eles parecem fazer parte da ordem natural de como funcionam as coisas no Iraque e na Síria. Mas o número total de iraquianos mortos por esses dois ataques – e ainda um outro duplo ataque suicida em uma mesquita xiita no distrito de Shuala, apenas quatro dias antes – é quase o mesmo número dos que morreram em Paris nas mãos do EI, no final do ano passado.
Na mente dos cidadãos do “Velho Continente”, nunca existiu uma conexão entre as guerras no Iraque e na Síria e os ataques terroristas contra europeus. Isso acontece, em parte, por Bagdá e Damasco serem lugares “exóticos” e “perigosos”, onde as imagens de pós-bombardeio, desde a invasão dos EUA em 2003, parecem ser a norma. Mas existe uma razão ainda mais pérfida para os europeus não serem capazes de conectar a ameaça à sua própria segurança com as guerras no Oriente Médio. Separar os dois fatos serve aos interesses dos líderes políticos no Ocidente, pois isso impede que a opinião pública enxergue que suas políticas desastrosas no Iraque, Afeganistão, Líbia, entre outros, criaram as condições para o surgimento do EI e gangues terroristas, tais como a que Salah Abdeslam pertenceu.
A profusão de lutos oficiais que geralmente vêm após essas atrocidades, como a marcha de 40 governantes mundiais pelas ruas de Paris, após os ataques ao Charlie Hebdo, ajuda a neutralizar qualquer pensamento de que os erros políticos destes mesmos líderes possam ter, de certa maneira, alguma responsabilidade pelos atentados. Manifestações de rua são normalmente lideradas por gente sem poder, que quer protestar e desafiar algum tipo de autoridade. Mas nesse caso servem apenas como show de publicidade, com o objetivo de desviar a atenção sobre a própria incapacidade dos governantes em agir para acabar com as guerras no Oriente Médio – onde tiveram participação ativa para provocá-las.
Um aspecto estranho nestes conflitos é que os líderes ocidentais nunca tiveram qualquer prejuízo político por seus papéis em iniciar ou executar políticas que fizeram eclodir a violência. O EI é um poder em ascensão na Líbia, algo que nunca teria acontecido se o primeiro-ministro britânico David Cameron e o presidente francês Nicolas Sarkozy não tivessem ajudado a destruir o Estado líbio ao destituir Kadafi em 2011. A Al-Qaeda está se expandindo no Iêmen, onde os líderes ocidentais deram passe livre para a Arábia Saudita lançar uma campanha de bombardeio que destruiu o país.
Após o massacre em Paris, no ano passado, houve uma torrente de solidariedade à França e quase nenhuma crítica às políticas francesas na Síria e na Líbia – exatamente as que favoreceram o EI e outros movimentos salafistas-jihadistas desde 2011.
Vale a pena citar o que disse Fabrice Balanche, cartógrafo francês e especialista em Síria que trabalha agora para o Instituto de Washington para Política no Oriente Médio, sobre a visão equivocada na França – apesar de esta também se aplicar a outros países. Respondendo a Aron Lund, do Centro Carneggie de Doação para a Paz Internacional, ele escreveu: “para a imprensa, a guerra síria só pode ser vista como continuação das revoluções na Tunísia e no Egito, à época em que a Primavera Árabe despertava entusiasmo. Os jornalistas não compreenderam, ou não quiseram compreender, as sutilezas sectárias na Síria. Fui censurado por diversas vezes (ao tentar explicá-las)”.
“Os intelectuais sírios na oposição, muitos deles exilados por décadas, tinham um discurso similar ao da oposição iraquiana durante a invasão dos EUA, em 2003. Alguns deles confundiram, de maneira idealista, suas próprias esperanças em uma sociedade não-sectária com a realidade. Mas outros – como a Irmandade Muçulmana – tentaram ofuscar essa realidade a fim de ganharem o apoio de países ocidentais”.
“Em 2011-12, sofremos uma espécie de macarthismo intelectual na questão síria: se você dissesse que Assad não iria cair em três meses, suspeitavam que estivesse sendo pago pelo regime sírio. E quando o ministro das Relações Exteriores da França tomou o lado da oposição síria, tornou-se de mau gosto contradizer seus comunicados oficiais”.
Ao tomar o lado das oposições na Síria e na Líbia, além de destruir ambos os países, a França e o Reino Unido abriram a porteira para o Estado Islâmico. Deveriam também ser considerados culpados pela ascensão do EI e pelo terrorismo na Europa. Ao se recusarem a admitir isso, ou ao menos aprender com seus erros, os europeus ocidentais fizeram muito pouco para ajudar no “fim das hostilidades” na Síria. Surpreendentemente bem sucedido, é uma conquista quase apenas dos EUA e da Rússia.
A França e o Reino Unido mantiveram-se próximos da Arábia Saudita e das monarquias absolutas do Golfo Pérsico, em relação à política externa para com a Síria. Perguntei o porquê a um ex-diplomata envolvido nas negociações. Ele respondeu seco: “dinheiro. Eles queriam os contratos com os sauditas”.
Após a captura de Salah Abdeslam, há uma certa discussão sobre as falhas da segurança que permitiram que ele evitasse a prisão por tanto tempo. Mas isso é pouco relevante: os ataques terroristas irão continuar enquanto o EI tiver poder. Novamente, uma cobertura midiática caolha está permitindo que os governos ocidentais deixem de ser responsabilizados por uma falha ainda pior de segurança: suas políticas desastrosas.
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Patrick Cockburn é jornalista e autor do livro “A origem do Estado Islâmico”, publicado no Brasil pela Autonomia Literária.
Traduzido por Vinícius Gomes Melo, do Outras Palavras
Publicado originalmente em Independent, jornal em que o autor escreve.