“Articular lutas nos próprios territórios como resposta à financeirização da natureza”
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- Ana Rogéria Araújo
- 22/09/2015
Os modelos de financeirização da natureza e comercialização dos bens naturais têm resultado em processos cruéis, sobretudo nas comunidades mais pobres e excluídas, concretizados em regiões consideradas oportunamente pelo capital, com aval de governos, como “atrasadas”.
Entre os dias 24 e 27 de agosto, aconteceu em Belém, estado do Pará, norte do país – onde a violação através de hidrelétricas é crescente – a Conferência Latino-Americana sobre Financeirização da Natureza. O evento foi uma realização da Fundação Heinrich Böll Brasil, em parceria com os escritórios do Cone Sul e México.
Para falar sobre o assunto, a rede Jubileu Sul Brasil conversou com Luis Fernando Novoa Garzon, doutor em Planejamento Urbano e Regional pelo IPPUR/UFRJ e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia. Nesta entrevista, Novoa discorre sobre os prejuízos provocados pela lógica capitalista que se apropria da natureza, o papel que os governos vêm desenvolvendo dentro deste modelo de financeirização, os casos emblemáticos das hidrelétricas e as resistências dos povos.
“Continuo não vendo outra solução que não a de articular as lutas nos próprios territórios sob ataque intensivo dos capitais, territorialidades urbanas incluídas, para recriar situações objetivas de impasse que politizem e ampliem o debate sobre o controle e destinação das chamadas riquezas nacionais ou do continente”, falou. Confira a íntegra a seguir.
Acabamos de ver a conferência que trata sobre a financeirização da natureza. Com que gravidade essa questão vem se desenvolvendo no Brasil?
Luis Fernando Novoa Garzon: O contexto de liquidação permanente das riquezas coletivas é crescente. A crise de sobreacumulação, em suas fases agudas, produz expropriações mais rápidas e profundas. Isso explica porque a natureza e, especialmente, nas regiões e lugares onde a representamos em sua inteireza, tem sido frente prioritária de expansão e apropriação capitalista. Em última instância, movidas por esferas de valorização desmaterializadas, fictícias apenas nesse sentido.
É o que tem se chamado de financeirização da natureza, quando as apropriações capitalistas de territorialidades extramercantis são, em última instância, apropriações financeirizadas, ou seja, computadas, decididas e viabilizadas nas esferas mais centrais dos conglomerados. Assim como são sacrificados orçamentos e bens públicos, os bens naturais são o lastro último para encerrar o futuro e o planeta enquanto mercadorias.
Você tem acompanhado os vários impactos que grandes projetos hidrelétricos têm causado nas comunidades mais pobres e excluídas. Há denúncias, há formas de resistência capazes de reparar esses prejuízos?
Luis Fernando Novoa Garzon: O desastre promovido pelas obras no rio Madeira (em Rondônia, região norte do Brasil) tem sido dissimulado para não comprometer o que chamam de “viabilidade financeira” das concessionárias elétricas em um momento de crise de abastecimento. Em situações de crise, são universalizados os problemas e as soluções particulares das classes dominantes. Por isso não se ouve falar de problemas de fornecimento elétrico nem de tarifaço, seja para a indústria extrativa do alumínio seja para a da celulose, que, aliás, incrementaram sua expansão a partir de 2008 e mantêm o mesmo ritmo nos últimos dois anos.
Portanto, a meta de expansão da geração elétrica foi e continua sendo um instrumento de unificação política das elites e de adesão passiva da classe trabalhadora que se deixa seduzir pela expectativa de aumento de empregos e pela ampliação do acesso à energia elétrica, seja pelo período ou pelo preço que for. Os grandes barramentos hidrelétricos determinam uma apropriação única e homogênea dos rios, inviabilizando a pesca, agricultura de várzea, a silvicultura e o transporte de pequenas embarcações. Por isso, grandes hidrelétricas, ou um conjunto de pequenas hidrelétricas, representam a privatização do próprio rio. A fonte de renda de milhares de famílias ribeirinhas é abruptamente interrompida seja pelo deslocamento compulsório, seja pela inviabilização do ciclo agroextrativista antes existente.
Quem mais interage com o rio e seus sistemas lacustres e de várzeas é quem mais sofre os efeitos das hidrelétricas. Em troca disso, quando muito, recebem indenizações ínfimas e que não garantem seu reassentamento em condições equivalentes, muito menos garantem sua transição segura para a condição urbana, o que envolveria muito mais que recursos financeiros.
As denúncias das comunidades locais deslocadas e afetadas por hidrelétricas têm sido registradas e motivado ações judiciais que, na maioria das vezes, são barradas na primeira instância ou filtradas na segunda instância. O reconhecimento das comunidades ribeirinhas como povos tradicionais (o que requereria consultas prévias e informadas) e uma política nacional de salvaguardas para o deslocamento de comunidades por grandes projetos podem ser, ao mesmo tempo, instrumentos de resistência e de desestímulo desses negócios baseados na expropriação de comunidades e de bens públicos.
Em geral, estas grandes obras são feitas sob o argumento do desenvolvimento, do crescimento, o que, óbvio, não justifica que afetem diretamente a estas populações. Por que isto acontece?
Luis Fernando Novoa Garzon: A chamada chantagem locacional é muito mais eficiente e perversa em regiões construídas e concebidas como atrasadas, em falta, portanto, com o que seriam os requisitos do “desenvolvimento” tais como empregos formais e poder de consumo.
Por isso, nas bordas depredadas e devastadas da Amazônia ou em áreas consideradas estagnadas, aumenta o poder de sedução do cenário de “salto adiante” oferecido pelos grandes projetos. A fronteira de acumulação assim se consolida com custos de fronteira em outros termos, com a precarização do mercado de trabalho e relaxamento da legislação ambiental.
O pior é que até mesmo a retenção e divulgação da experiência dessas apropriações devastadoras vêm sendo dificultada por uma política deliberada de blindagem jurídica e técnica, como se faz nítido no caso do desastre social e ambiental pelo qual passou a região de Porto Velho após a construção das hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau (ambas no rio Madeira).
Nesse processo de financeirização que responsabilidades têm os governos ao abrirem tanto para os consórcios?
Luis Fernando Novoa Garzon: Os governos abriram e limparam o terreno com suas estatais e bancos públicos. Adequaram as regras setoriais aos arranjos empresariais mais articulados e agora tratam de bonificá-los com subsídios, indenizações por eventuais perdas de lucratividade potencial, entre outros benefícios obscenos. Máxima ação no suporte dos conglomerados privados, mínima na regulação pública.
O resultado disso é a conversão dos bens naturais e setores de infraestrutura, antes considerados estratégicos, em mercados altamente rentáveis no curto prazo, sujeitos, portanto, a movimentos especulativos, práticas combinadas de fusões e aquisições com antecipações financeiras, em suma, artifícios de toda ordem para gerar máximo retorno e liquidez. Tudo na contramão do planejamento público da expansão e qualificação desses serviços.
Com este panorama qual o maior desafio dos movimentos sociais e dos que têm essa visão mais ampla deste tipo de comercialização de bens naturais?
Luis Fernando Novoa Garzon: Clamar por soberania ou renacionalização desses bens não basta ou talvez até mesmo seja um expediente de ilusionismo e apassivamento social. Depois das rebeliões populares na Argentina, Bolívia e Equador, entre 2000 e 2004, por exemplo, governos autodeclarados progressistas se tornaram instâncias intermediadoras da continuidade da transferência de águas, florestas e subsolo aos capitais oligopolistas, de forma gradual e negocial.
O esvaziamento do projeto bolivariano nos marcos de enclaves de suprimento especializados fica evidenciado no apoio dado por esses governos a projetos da IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana) e demais projetos assemelhados, além das concessões e outras formas de privatização seguirem em passo firme.
Continuo, por isso, não vendo outra solução que não a de articular as lutas nos próprios territórios, sob ataque intensivo dos capitais, territorialidades urbanas incluídas, para recriar situações objetivas de impasse que politizem e ampliem o debate sobre o controle e a destinação das chamadas riquezas nacionais ou do continente.
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Ana Rogéria Araújo é jornalista. Entrevista publicada originalmente pela Rede Jubileu Sul.