Se a radiação fosse vermelha...
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- Chico Whitaker
- 23/12/2015
Este artigo foi escrito num momento em que toda a atenção nacional está voltada para o que se passará nas próximas semanas ou meses em Brasília, com o mandato da presidente da República e do presidente da Câmara dos Deputados sendo questionados, além de outros desdobramentos previsíveis da ação do Ministério Público e da Polícia Federal. Neste quadro, não se pode pretender que se dê a devida atenção a temas como o da energia nuclear. Só podemos esperar que enquanto a vida corre não sejamos surpreendidos pelas ameaças criadas pelo uso dessa energia no Brasil.
Ideias fixas podem e devem ser tratadas por psicólogos e psiquiatras, como todo distúrbio mental. Mas há ideias fixas que surgem por preocupações sociais reais. Nesse caso, a persistência na busca de soluções é fundamental. Até que essas soluções sejam encontradas.
Essa busca nos obriga por outro lado a aprofundar o conhecimento do problema, o que aumenta a preocupação. E, com ela, a necessidade de ainda mais persistência.
Os outros começam então a se preocupar conosco e não com o que criou nossa ideia fixa. Chegou-me outro dia, por uma rede social, a mensagem de uma jovem que temia se tornar uma “ecochata”, por ter ficado muito impressionada com o filme de Silvio Tendler, “O veneno está na mesa”.
A impressão passa a ser a de se pregar no deserto ou de falar com surdos. Esquecemos que são muitas as ocupações e preocupações do cotidiano de todos. Ainda mais quando vivemos tempos em que muita coisa vai mal. Como no Brasil de hoje, com diversas crises se sobrepondo. Ou com o que se passa em países não tão longínquos, onde barbáries coletivas mostram que ainda existem e onde parece já ter começado a 3ª Guerra Mundial.
Mas o que de fato mais imobiliza as pessoas que procuramos sensibilizar é o sentimento de impotência. Especialmente quando se trata de enfrentar a máquina do Estado. O exercício do poder facilmente a transforma em Leviatã que tratora quem a incomoda.
O que fazer, ainda que seja um pouco? Um grande número de poucos talvez mudasse o rumo das coisas. É o poder dos sem-poder, como dizia Havel, o falecido dramaturgo e presidente tcheco, nos tempos da Primavera de Praga.
Eu estava absorto nestas elucubrações, a partir das dificuldades de minha própria ideia fixa - os riscos da energia nuclear - quando aconteceu o desastre de Mariana. Um amigo, que ainda atura minha mania e é mais perspicaz do que eu, me perguntou se eu não poderia escrever algo relacionando esse desastre com o que vivo dizendo que pode acontecer em Angra dos Reis.
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Não é a primeira vez que, no Brasil, o descuido com a segurança, em proveito do lucro, provoca graves acidentes: edifícios que desmoronam, viadutos que desabam, museus que queimam. Por isso fala-se muito, diante do que ocorreu em Mariana, da necessidade de prevenir outros desastres como o ocorrido, verificando as condições de segurança de barragens semelhantes espalhadas pelo país. A atividade mineradora que busca extrair da terra, rapidamente e com o menor custo possível, tudo que possa ser transformado em dinheiro, é insaciável.
Já aqui identificamos uma primeira relação entre o desastre de Mariana e o nuclear. Há um tipo de mineração ainda mais perigosa: a do urânio – o mineral radioativo que, depois de tratado, é usado como combustível das usinas. Ela existe no Brasil em Caetité, na Bahia, e há um projeto em desenvolvimento em Santa Quitéria, no Ceará. No caso de rompimento de barragens nessas minerações, o barro já virá carregado de restos de minério radioativo. Mesmo sem rompimento de barragens, a radioatividade já está sendo detectada em águas de poços domésticos de Caetité.
Mas há também semelhanças entre o que está ocorrendo em Mariana e o que acontece em acidentes nucleares como os de Chernobyl e Fukushima, em que há explosão das usinas: mortos, moradores evacuados, alojamentos provisórios por tempo indefinido, perda de bens materiais, da história, do emprego, dos meios de vida, de relações de comunidade e familiares, surgimento de doenças, perspectivas incertas de futuro, calamidade ambiental.
O descuido com a segurança está presente em ambos os casos. Em Mariana, na irresponsabilidade da empresa que construiu a barragem e dos governos que deveriam fiscalizar. Numa usina nuclear acidentada não se previu tudo que pode acontecer.
E há igualmente diferenças importantes.
Uma barragem pode ser reforçada, pode-se colocar limites ao peso da massa líquida que ela retém e esvaziá-la se necessário, pode-se identificar vazamentos e segurá-los. No folclore da Holanda há a estória do menino que tapou com seu dedinho um pequeno furo que descobriu na barragem que mantém nesse país grandes extensões de terra abaixo do nível do mar. Com isso ele impediu que o furo aumentasse e a barragem fosse destruída, fazendo sua cidade desaparecer sob a água.
Segurar um vazamento não é assim tão simples. Mas o que acontece em acidentes nucleares é ainda muito mais complexo, como é extremamente complexa a operação das usinas. Falhas humanas, de material, de projeto, interferências externas podem inesperadamente se combinar. E isto pode se dar muito rapidamente. Passa-se logo dos incidentes - como são chamados os problemas menos graves, que acontecem muito mais frequentemente do que somos informados - ao acidente. Em segundos aumenta muito a temperatura, a pressão escapa do controle e se chega à explosão.
Em 1979 ocorreu em Three Miles Island, nos Estados Unidos, um primeiro acidente grave de um tipo novo: o coração do reator derreteu - algo até então considerado impossível. A usina não chegou a explodir, mas foi um enorme sinal de alerta.
Foi interrompido o funcionamento de todas as usinas nucleares norte-americanas para uma revisão da sua segurança. Identificou-se então o que mudar para não se repetir a chamada “falha múltipla” ocorrida na usina acidentada. E se agregou um novo tipo de abordagem da questão dos acidentes: como é impossível evitá-los – nenhuma obra humana é 100% segura – é preciso mitigar seus efeitos. Como por exemplo reforçar o edifício do reator para que o meio ambiente não seja afetado pela explosão.
Outros acidentes, em diferentes países do mundo, por pura sorte também não chegaram à explosão. Mas na década seguinte e em 2011 o derretimento do núcleo do reator provocou a explosão das usinas de Chernobyl e Fukushima. Foi seguramente a tomada de consciência desses riscos que levou Naoto Kan - primeiro-ministro do Japão à época do acidente de Fukushima - a afirmar, depois, que a melhor maneira de não se ter acidentes nessas usinas é não ter as usinas...
Mas há outra diferença significativa entre acidentes com barragens e com a explosão de usinas nucleares: na forma como as pessoas são vitimadas.
Em Mariana um barro vermelho avançou, violenta e visivelmente, com um ruído surdo, empurrando e matando os moradores da área por ele invadida. Em explosões de usinas o ar, a água, a terra, as plantas, os animais do seu entorno são imediatamente contaminados por partículas radioativas, em quantidade muito maior do que o barro que estava retido pela barragem, mas não são detectadas por nenhum dos nossos cinco sentidos. Embora espalhadas pela explosão e pelo vento a grandes distâncias, só aparelhos especiais identificam sua presença. Os seres humanos nem percebem quando são por elas contaminados. E, depois, diferentes tipos de câncer e outras doenças os matam, lentamente.
Em Mariana, as 400 famílias desalojadas não podiam escolher entre deixar ou não deixar suas casas. O barro as arrastava. Num acidente nuclear o número de pessoas obrigadas a deixar a área se contam em muitos milhares, e é o governo que se vê obrigado a fazê-lo, para protegê-las das radiações.
Depois de acidentes nucleares com explosões, grandes territórios no entorno das usinas são imediatamente interditados à presença humana e à atividade econômica: a radioatividade que neles se ocultou perdurará por muito tempo. Diferentemente, portanto, também de Mariana, os desalojados por uma explosão nuclear nunca mais poderão reconstruir suas vidas no pedaço de terra de que foram expulsos.
Impressiona a todos o valor da multa que está sendo aplicada à empresa que geria a barragem, para cobrir os custos do desastre: um bilhão de reais, que levará a empresa responsável à falência. Mas o custo de um acidente nuclear é incomensuravelmente maior. Nenhuma empresa privada pode fazer frente a ele e os governos são obrigados assumi-lo. Mas mesmo os governos não o conseguem. O da Ucrânia apelou para o G20 para terminar a construção do segundo “sarcófago” necessário para segurar os vazamentos de radioatividade do primeiro, com que se tentou cobrir as ruinas de Chernobyl. Os especialistas nesses assuntos propõem que sejam constituídos Fundos Especiais, geridos pelas Nações Unidas, para socorrer os governos de países onde catástrofes nucleares aconteçam.
O inacreditável acontece com o que alguns governos fazem diante dos gastos a que se veem obrigados, para fornecer alojamentos, tratamentos médicos e psicológicos, emprego ou seguro-desemprego às vítimas dos acidentes, por longo tempo. Como não poderiam evacuar e dar essa assistência a todos que teriam que sair dos territórios que deveriam ser interditados, eles optam por permitir que moradores que o desejem, mal informados dos riscos, permaneçam em áreas menos fortemente contaminados (como ocorre em Chernobyl) ou os empurram de volta para essas áreas (como ocorre em Fukushima). E não têm nenhum pejo em lançar programas de “treinamento” para que convivam – enquanto sobreviverem – com a radioatividade...
Toda a sociedade está impressionada com o fato de terem se tornado barrentas, no sentido próprio e figurado, as águas do Rio Doce e a costa do Espírito Santo. E ainda não temos uma exata noção de todos os males que pode provocar, durante muito tempo, o despejo, no leito do rio e no mar, de uma enorme quantidade de matérias prejudiciais à natureza e à saúde dos seres humanos.
Mas no Brasil não se tem nenhuma ideia da dimensão dos problemas criados pela explosão de uma usina. Só os que tem a oportunidade de visitar o local dessas catástrofes tomam consciência do que se passou e se passa. Monique Sené, física francesa autoridade no assunto, diz que o acidente de Chernobyl, de 30 anos atrás, ainda não terminou. E nós continuamos recebendo, pela mídia, umas poucas notícias do que continua se passando em Fukushima.
Por todas essas razões tal tipo de acidente é chamado de catástrofe. Por mais que a propaganda da indústria nuclear difunda notícias amenizando os efeitos dos acidentes ocorridos no Japão e na União Soviética. Ela se aplica com esmero à sua tarefa básica, e a de todos os “relações públicas” do lobby nuclear: não deixar que o medo tome conta das pessoas. Menos ainda o pânico.
Mas juntando todos os dados só podemos concluir que estamos diante de uma total insensatez. Só interesses econômicos muito fortes conseguem manter a opção de usar a energia nuclear para produzir eletricidade. Só com muito dinheiro se consegue manter iludidos tantos técnicos que emprestam sua inteligência para, depois de a humanidade ter conseguido impedir quase totalmente os testes com bombas atômicas, criar essa nova ameaça de tornar radioativos grandes territórios, em todos os países que se deixam “convencer” pelas vantagens da energia nuclear.
Ainda bem que estamos podendo nos regozijar com o fato dos negociadores da COP 21 terem resistido à pressão dos que se apoiam no mito da energia nuclear limpa para afirmar que ela pode ajudar a diminuir o aquecimento global.
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Muitos no entanto dirão: mas não é longínqua a hipótese dessa catástrofe ocorrer no Brasil, em alguma de nossas duas bonitas usinas, de Angra 1 e Angra 2? Terremotos e tsunamis como os de Fukushima parecem improváveis por aqui. E, com certeza, depois do que aconteceu em Chernobyl é de se esperar que nenhum operador brasileiro ouse fazer uma mudança experimental nos protocolos de controle do funcionamento das usinas de Angra...
Infelizmente, no entanto, temos que considerar que Angra 1 e Angra 2 logo chegarão ao limite do seu tempo de vida. E este tempo lhes é atribuído porque materiais se desgastam, naturalmente, ou seja, se tornam mais frágeis...
Além disso, o simples funcionamento dessas usinas já criou outro problema de difícil solução: grande quantidade do combustível usado das usinas - material extremamente radioativo - está estocado provisoriamente dentro de uma piscina especial, cuja capacidade, aliás, está se esgotando. Esses rejeitos podem também explodir e, para que isso não aconteça, precisam ser mantidos permanentemente refrigerados pela água da piscina. Deus queira que nossos responsáveis por essa função não se cansem de segurar esse rabo de foguete...
O problema de colocar material perigosíssimo num esconderijo definitivo, que deverá ficar fora do alcance dos seres humanos por centenas de milhares de anos – ou pela eternidade, como dizem - não foi ainda resolvido em nenhum lugar do mundo. Mas os técnicos e políticos brasileiros parecem nem se preocupar demasiadamente...
Mas há coisa muito pior. O personagem Hamlet, da peça de Shakespeare, diz, aí pelas tantas, que há algo podre no seu país, o reino da Dinamarca. O que ele diria sobre o que hoje ocorre no Brasil, com a corrupção que a Operação Lava Jato está escancarando?
A terceira de nossas usinas, em construção - Angra 3 - teve sua segurança inteiramente prejudicada por interferência desse tipo de podridão. Na pressa de iniciar logo a obra para manter o recebimento de propinas, que já se iniciara, seus responsáveis levaram o organismo encarregado de licenciá-la a ignorar totalmente a absoluta necessidade, levantada por alguns de seus próprios funcionários, de rever seu projeto. Elaborado nos anos 70, esse projeto se tornara obsoleto já no final daquela década, depois do acidente em Three Miles Island (e é o mesmo com que se construiu Angra 2...).
E foi esse acidente e os de Chernobyl e Fukushima que levaram os governos da Alemanha, da Itália e da Áustria a decidirem fechar suas usinas nucleares ou não permitir que entrem na matriz energética de seus países. Sorte dos seus povos e dos povos de outros países que estão pouco a pouco seguindo esse exemplo; pena para nós, brasileiros.
Infelizmente, teremos de pressionar ainda muito para que o governo brasileiro tome uma decisão tão radical. Em nosso país o poder do lobby nuclear internacional está firmemente assentado (a empresa russa Rosatom, que vende e mesmo monta reatores, instalou há pouco um escritório no Rio de Janeiro para atender adequadamente os seus clientes da América Latina).
Esse lobby dispõe de muitos recursos para sua publicidade enganosa e para mobilizar a seu favor os grandes meios de comunicação de massa. E pode contar com a atuação fiel de burocratas governamentais desinformados ou “interessados”, de grande número de técnicos satisfeitos incrustrados no poder do Estado, de políticos despreparados, irresponsáveis ou mesmo venais.
Mas a dificuldade não pode nos imobilizar. Teríamos que pelo menos exigir que as obras de Angra 3 só sejam retomadas depois de uma revisão de seu projeto, segundo as normas de segurança definidas a partir dos anos 80 pela Agência Internacional de Energia Atômica. Assim como sejam submetidos a uma avaliação cuidadosa os equipamentos comprados a partir das especificações do projeto, que ficaram 30 anos estocados... Seria o mínimo de responsabilidade que se esperaria dos que cuidam de nossas usinas nucleares ou as constroem.
Mas enquanto isso, precisamos mostrar ao Ministério Público, aos nossos juízes, aos nossos legisladores e à nossa imprensa que a corrupção agrava o crime do roubo de recursos públicos. Se punições visam evitar que os crimes se repitam, elas têm de ser proporcionais à sua gravidade.
Em Angra 3, a corrupção levou a que a construção dessa usina se tornasse um atentado anunciado contra a Vida. Tudo se faça para que não ocorra. Mas se tivermos essa infelicidade ele será bem mais violento que o desmoronamento da barragem de Mariana.
Mas em nosso país – e no mundo de hoje – será que a Vida tem mais valor que o dinheiro?
Chico Whitaker, arquiteto, é membro da Comissão Brasileira de Justiça e Paz e milita na Coalizão por um Brasil Livre de Usinas Nucleares.