O triste futuro de nossas águas
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- Marcelo Pompêo
- 30/09/2016
A eutrofização artificial, o processo de enriquecimento de uma massa de água com nutrientes, normalmente provenientes dos esgotos domésticos e industriais, é um grande, recorrente e persistente problema ambiental brasileiro. Mas a sua existência e persistência só podem ser entendidas à luz das decisões tomadas pelos gestores, em seu conjunto compreendidas como políticas públicas vigentes.
No presente, é possível vislumbrar que no futuro toda massa de água paulista poderá passar pelos mesmos problemas que hoje passam os rios Pinheiros e Tietê e o reservatório Guarapiranga e o braço Rio Grande (Complexo Billings), localizados na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP), todos com água de péssima qualidade.
Os eutrofizados reservatório Guarapiranga e o braço Rio Grande hoje estão em não conformidade ao seu enquadramento (Decreto n. 10.755, 1977), a Classe 1 da Resolução CONAMA n. 357; enquanto que os rios Pinheiros e Tietê estão em conformidade com os seus enquadramentos (Classe 4 da mesma Resolução). Caso houvesse uma quinta classe, com padrões menos restritivos ainda, refletindo em pior qualidade quando comparada com a atual Classe 4, provavelmente os rios Pinheiros e Tietê também estariam em conformidade a essa quinta classe.
Para que as águas dos rios Pinheiros e Tietê e do reservatório Guarapiranga e do braço Rio Grande atingissem os péssimos níveis de qualidade que hoje possuem, foram aplicadas políticas públicas e ações práticas equivocadas definidas dentro de um conjunto de valores que ainda se mantêm praticamente inalterados.
Entre essas políticas, podem ser citadas a injustificável falta de investimento na estrutura de coleta e de tratamento dos esgotos, sempre prometidas, mas nunca concretizadas, representando uma exígua cobertura sanitária em praticamente todos os municípios paulistas, sem dúvida um dos mais expressivos problemas ambientais que alteram a qualidade das águas paulistas e brasileiras, e responsável pelo processo de eutrofização e suas consequências previsíveis, mas remediáveis. Outra política perniciosa é o descontrole no uso e ocupação dos espaços, que também contribui de forma difusa para reduzir a qualidade das águas.
A canalização e cobertura de grande parte dos rios paulistas para a instalação de equipamentos públicos, como ruas e avenidas, particularmente na cidade de São Paulo, fez com que inúmeros rios sumissem da paisagem da cidade, como de muitas outras cidades do Brasil, passando ao cidadão a errônea ideia de que os rios são descartáveis, desnecessários e atrapalham o desenvolvimento urbano. Nesse sentido, há interessante relato sobre o rio que a cidade perdeu, o rio Tietê (Jorge, 2006).
O desaparecimento dos rios do dia a dia da população e a manutenção da péssima qualidade estética daqueles que ainda resistem a céu aberto fazem com que enfraqueçam as ligações cognitivas e afetivas dos seres humanos para com o meio ambiente, uma vez que se constituem na grande força que modela a superfície terrestre através de escolhas, ações e condutas, acompanhadas da atribuição de valores e tomadas de posições (Machado, 1999).
Assim, são necessárias mudanças de percepções, atitudes e valores ambientais por meio de metodologia de ensino-aprendizagem que desenvolva naturalmente a mentalidade conservacionista do cidadão, proporcionada por uma educação para, por meio de e sobre o meio ambiente (Machado, op cit.). Espera-se que com a educação o cidadão deixe de considerar normal e adequado manter por décadas rios e reservatórios na péssima qualidade que hoje se encontram, particularmente daqueles localizados próximos aos grandes centros urbanos, como da RMSP.
Algumas normativas ambientais brasileiras também não favorecem a manutenção de bons padrões de qualidade da água e muitas vezes contribuem para potencializar os inúmeros problemas ambientais observados.
A Resolução CONAMA nº 357, que classifica as massas de água com base no uso preponderante, discorre que toda massa de água não enquadrada passe automaticamente a ser Classe 2, independente de sua qualidade natural; além disso, mesmo para a Classe 4, com padrões menos restritivos, a massa de água pode indefinidamente permanecer nessa classe atribuída pelo gestor.
Não há na CONAMA nº 357 ou em outra normativa brasileira a exigência de alteração da classe ao longo do tempo, isto é, não há normativa que discipline a elevação da classe, de Classe 4 para Classe 3, com padrões de qualidade mais restritivos, por exemplo, após um período de tempo predefinido e, após um novo período de tempo, a passagem da Classe 3 para a Classe 2, ou a classes com padrões mais aceitáveis do que a 3 e 4. Essa alteração de classe é atribuição do gestor, que poderá proporcioná-la ou não, de acordo com conveniências e interesses.
Mas também não há instrumentos que exijam ações para manter a massa de água na classe do enquadramento, mesmo após inúmeras avaliações decorrentes do monitoramento da qualidade da água demonstrarem que a massa de água se encontra em não conformidade à classe do enquadramento, portanto, fora dos padrões de qualidade para o uso pretendido, com valores efetivamente medidos bem menos restritivos do que os padrões teóricos do enquadramento.
Atualmente, também há a Resolução CONAMA nº 467, que dispõe sobre critérios para a autorização de uso de produtos ou de agentes de processos físicos, químicos ou biológicos para o controle de organismos ou contaminantes em corpos hídricos superficiais e dá outras providências. Portanto, define como meta o eventual controle de qualquer organismo que cresce em dado reservatório, por exemplo, decorrente do processo de eutrofização.
A CONAMA nº 467 abre a possibilidade de ampliar para o Brasil inteiro a aplicação de compostos químicos nos corpos d’água, como já empregado rotineiramente há cerca de 43 anos com sulfato de cobre pentahidratado e nos últimos 23 anos também pelo uso do peróxido de hidrogênio 50%, particularmente em reservatórios paulistas. Esses compostos são empregados como algicidas no controle do crescimento de algas potencialmente tóxicas, as cianobactérias. Para se ter ideia do que essas rotineiras aplicações representam, é possível calcular o estoque de cobre no sedimento do reservatório Guarapiranga, estimado em 1040 toneladas do elemento cobre, representando cerca de 4088 toneladas de sulfato de cobre pentahidratado aplicados.
Com base nesses valores também é possível estimar em R$ 60 milhões os recursos financeiros empregados na compra, transporte e aplicações do sulfato durante esses 43 anos de uso. Além disso, decorrente dessas constantes aplicações e acúmulo de cobre no sedimento, cerca de 80% da área que representa o fundo do reservatório apresenta-se potencialmente tóxico à biota. Esse estudo relacionado ao estoque de cobre, ainda não publicado, foi desenvolvido pelo grupo de pesquisa que coordeno.
Segundo Otomo et al. (2015), apesar das políticas urbanas, ambientais e hídricas brasileiras fazerem com que a legislação nacional apresente muitos instrumentos, de modo geral considerados avançados, falta decisão política e maior rigor na aplicação das políticas públicas para que estas sejam tão eficientes tanto na prática quanto na teoria. Isto fica claro ao tomarmos como exemplo os mesmos reservatórios Guarapiranga e Rio Grande, localizados na RMSP, pois há décadas seguem com inúmeros problemas ambientais, em particular o processo de eutrofização, causando o recorrente crescimento indesejado de fitoplâncton e de macrófitas aquáticas.
Para controlar esse crescimento, particularmente das algas, são efetuadas regulares e substanciais aplicações de algicidas (sulfato de cobre e peróxido de hidrogênio), apesar de todos os problemas de qualidade e toxicidade potencial que esses compostos causam, em particular por causa do cobre presente no sulfato, além do elevado custo financeiro nas suas compras e aplicações, já comentados.
Essa redução na qualidade das águas, os intensos crescimentos de organismos e as constantes aplicações de algicidas não aconteceriam ou seriam menos recorrentes caso todo o esgoto gerado fosse coletado e tratado em eficientes estações de tratamento de efluentes, antes que os lançamentos in natura atingissem seus tributários e o reservatório (Pompêo; Moschini-Carlos, 2012).
Ao observarmos os próprios rios que cruzam a cidade de São Paulo, entre eles o Tietê, Pinheiros, Tamanduateí, Ipiranga, Pirajuçara e muitos outros, temos clareza de que as ações práticas executadas pelos gestores são ineficientes para a manutenção de bons padrões de qualidade de nossas águas e da qualidade de vida da população. Tais rios se encontram mortos, malcheirosos, sem a luxuriante vida que tiveram no passado, além de retificados, cobertos ou com suas calhas rebaixadas.
No mais, não apresentam qualidade nem para fins paisagísticos ou de uso para a navegação, como definido para a Classe 4 da CONAMA nº 357, o que dirá para outros usos mais nobres como esportes náuticos ou pesca, por exemplo, o que já ocorreu num passado não tão distante. Deste modo, as políticas públicas aplicadas no passado são as responsáveis pelas péssimas qualidades das águas que hoje temos, nada que nos orgulhará num futuro breve. O triste é observar que o padrão de valores e de decisões do passado se repete no presente, indicando que nossas águas continuarão a ser tratadas do mesmo modo, ter a sua qualidade piorada ou ao menos mantida no atual grau de grave comprometimento de sua qualidade.
Neste ponto, é muito preocupante a forte redução de investimentos financeiros na coleta e tratamento dos esgotos anunciada pela Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (SABESP) em 2015 e 2016 (G1 São Paulo, 2015; Lobel, 2016).
Quais seriam as percepções, atitudes e valores ambientais (Machado, op cit.) da população e principalmente dos gestores se hoje na RMSP tivéssemos 100% dos esgotos coletados e tratados e os rios Tietê e Pinheiros, para falar só desses dois rios, e além disso também tivessem ao menos 100m de ambas as margens meândricas protegidas com parques lineares em toda a sua extensão urbana e nelas instalados inúmeros equipamentos públicos, como praças, museus, quadras esportivas, matas secundárias, entre outras possibilidades de usos naturais ou antrópicos? Qual seria a nossa percepção se, em dias de calor, pudéssemos sentar às margens desses rios, nele molhar os nossos pés e de nossos filhos, e observar sua luxuriante fauna e flora aquáticas? Caso isso fosse verdade, o que esperar da cidade como um todo? Seria igual ao que temos hoje? Duvido.
Para outras reflexões, vale a pena assistir ao excelente documentário sobre a urbanização de São Paulo, o vídeo “Entre Rios” (https://www.youtube.com/watch?v=Fwh-cZfWNIc), e ver as fotos disponibilizadas em http://arquivososriosdobrasil.blogspot.com.br/2012/01/os-rios-de-sao-paulo-em-fotos.html ou mesmo consultar o site Rios & Ruas (https://rioseruas.com/).
Referências
DECRETO N. 10.755, de 22 de novembro de 1977, http://www.al.sp.gov.br/repositorio/legislacao/decreto/1977/decreto-10755-22.11.1977.html). Acesso em: setembro de 2016.
G1 São Paulo, Sabesp vai reduzir pela metade investimentos em esgoto em 2015, 01/04/2015 13h22. http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/04/sabesp-vai-reduzir-pela-metade-investimentos-em-esgoto-em-2015.html. Acesso em: setembro de 2016.
JORGE, J. Tietê: o rio que a cidade perdeu. São Paulo: Alameda, 2006.
LOBEL, F. Mesmo 'sem crise', Sabesp deve cortar 45% dos investimentos em esgoto, http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2016/03/1755145-mesmo-sem-crise-sabesp-deve-cortar-pela-metade-investimentos-em-esgoto.shtml. Acesso em: setembro de 2016.
MACHADO, L. M. A percepção do meio ambiente como suporte para a educação ambiental. In: POMPÊO, M. (Org.). Perspectivas da limnologia no Brasil. São Luís: Gráfica e Editora União, 1999. 191 p.
OTOMO, J. I.; CARDOSO-SILVA, S.; SANTOS, W. D. S.; JARDIM, E. A. M.; POMPÊO, M. Avaliação de políticas para preservação e recuperação de mananciais de abastecimento público da Região Metropolitana de São Paulo. In: POMPÊO, M.; MOSCHINI-CARLOS, V.; NISHIMURA, P. H.; CARDOSO-SILVA, S.; LÓPEZ-DOVAL, J. C. (Orgs.). Ecologia de reservatórios e interfaces. São Paulo: Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB/USP), 2015.
POMPÊO, M.; MOSCHINI-CARLOS, V. O abastecimento de água e o esgotamento sanitário: propostas para minimizar os problemas no Brasil. In: ROSA, A. H.; FRACETO, L. F.; MOSCHINI-CARLOS, V. (Org.). Meio ambiente e sustentabilidade. Porto Alegre: Bookman Companhia, 2012.
RESOLUÇÃO No 357, de 17 de março de 2005, publicada no DOU nº 053, de 18/03/2005, págs. 58-6, http://www.mma.gov.br/port/conama/legiabre.cfm?codlegi=459. Acesso em: setembro de 2016.
RESOLUÇÃO Nº 467, de 16 de julho de 2015, publicada no DOU nº 135, de 17 de julho de 2015, seção 1, pag. 70 a 71, http://www.mma.gov.br/port/conama/res/res15/Resol467.pdf, Acesso em: setembro de 2016.
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Marcelo Pompêo é professor do departamento de Ecologia da USP.