O Acre contra Chico Mendes
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- Tómas Chiaverini e Thais Lazerri, Repórter Brasil
- 30/11/2017
Imagem destacada: Em Rio Branco, muro pintado com o rosto de Chico Mendes. Ele foi assassinado em 1988 por enfrentar um grileiro na defesa do interesse de comunidade extrativista (Imagens: Fernando Martinho)
Comunidades tradicionais são excluídas pela economia verde dos irmãos Viana. Líder seringueiro defendia modo de vida dos extrativistas como a melhor proteção à natureza.
De calça vermelha e blusa preta, usando um colar indígena, a representante do Banco Alemão de Desenvolvimento KFW, Christiane Ehringhaus, exaltava o pioneirismo do Acre a uma plateia de acrianos no último dia do “Seminário de Avaliação de Resultados do Programa REDD Early Movers no Acre”. O encontro, com direito a pose para foto coletiva, ocorreu em julho no Resort Hotel, em Rio Branco. Na pauta, os resultados do programa-modelo do governo para o que se convencionou chamar de Economia Verde, termo mundialmente usado para atrelar desenvolvimento econômico à preservação ambiental. Alguns poucos indígenas e moradores de comunidades dividiam a sala com uma bancada de parlamentares estaduais e nacionais, entre outros. Um deles era o senador Jorge Viana, atual presidente da Comissão Mista de Mudanças Climáticas do Congresso Nacional, ex-governador do estado e irmão do atual, Tião Viana. Os irmãos Viana são os responsáveis por vender ao mundo o modelo acreano da economia verde.
“Estamos muito animados em poder usar essas lições tão ricas do Acre”, disse Ehringhaus, “e já estamos aproveitando muito dessas lições para construir o programa com outros estados”. O Mato Grosso já aderiu.
O Acre, estado tratado com desdém por tantos brasileiros, quer se tornar um exemplo ambiental para o mundo. Na fronteira com o Peru e a Bolívia, o estado tem pouco mais de 800 mil habitantes e o 25º Produto Interno Bruto da União. “Nós não fazemos questão de vaidade. Agora, se a nossa experiência mostrar pro Brasil e pro mundo que é possível conservar e desenvolver, isso vai ser ótimo”, disse o governador Tião Viana à equipe da Repórter Brasil. Desde que os irmãos petistas chegaram ao poder, em 1999, o plano verde começou a ser gestado.
Em 2010, uma lei regulamentou o Sistema de Incentivos a Serviços Ambientais, um plano prolixo de trinta páginas frente e verso que, além de exaltar um suposto pioneirismo ambiental de décadas do Acre, enumera uma série de novos projetos. O primeiro da lista é a promoção dos serviços ambientais do carbono (redução de emissão de gás carbônico, o CO2, em troca de incentivos). O KFW, banco de fomento do governo alemão, aparece como um dos parceiros no relatório. Em 2012, o governo recebeu 25 milhões de euros do banco alemão, o equivalente a cerca de R$ 90 milhões, para iniciativas que reduzam a emissão do gás.
As primeiras denúncias sobre as “maravilhas da economia verde” chegaram logo, diz Winnie Overbeek, coordenador internacional do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais. Em 2013, diversas organizações, incluindo o Movimento, participaram de uma investigação promovida pela Plataforma Dhesca no Acre e identificaram “uma série de impactos sociopolíticos, econômicos e ambientais negativos, em especial sobre os territórios e as populações tradicionais”.
“Vimos uma série de injustiças ambientais e sociais, provocadas por um plano de governo que quer ser modelo para o mundo”, diz Overbeek. “Pergunte aos povos tradicionais. Essas pessoas não sabem onde o Acre investiu os milhares de euros que recebeu do governo alemão”.
A falta de diálogo com os povos da floresta é uma das críticas que o programa recebe de estudiosos, lideranças locais, comunidades extrativistas e camponesas. Para eles, o plano não colabora com a preservação da floresta. Além de não ajudar, esses grupos denunciam que o programa atrapalha, pois cria novas pressões sobre os habitantes tradicionais, obrigados a alterar seu modo de vida, impedidos de caçar, pescar e utilizar a floresta para o seu sustento.
O programa seria justamente o oposto da filosofia de Chico Mendes, na avaliação do agrônomo Elder Andrade de Paula, uma das principais vozes contrárias ao ambientalismo dos Viana. A história da liderança é essencial para entender o embate fundiário no Acre até os dias de hoje. Filho de seringueiros, Mendes liderou a criação de sindicato, associação e conselho em defesa dos extrativistas. Ele propunha a defesa do modo de vida do homem integrado à mata como o melhor modo de preservá-la – sempre em oposição à ocupação dos grandes proprietários. Foi assassinado em 1988 na porta de sua casa, em Xapuri. O grileiro Darly Alves da Silva foi condenado como mandante, uma de suas fazendas havia sido desapropriada em benefício dos seringueiros.
Avanço do desmatamento
Na penúltima semana de maio, em Xapuri, lideranças indígenas e extrativistas se reuniram por três dias para denunciar os impactos da economia verde do governo acreano. Segundo carta divulgada ao final do encontro, a política foi imposta “de maneira autoritária e sem consulta prévia das comunidades”. Por se manterem contrárias ao avanço, afirmam sofrer pressão e ameaças dos “donos do poder no Acre”.
Professor e pesquisador do Centro de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Acre, Andrade diz que, ao se colocar como modelo para políticas ambientais, o governo assume uma postura hipócrita, pois mascara velhos problemas da região amazônica. “A economia verde, esse novo termo que substitui o desgastado ‘desenvolvimento sustentável’, é uma desculpa para que se continue fazendo o que sempre foi feito: produzir de forma insustentável no sentido social e ambiental.”
As críticas do pesquisador encontram respaldo nos dados ambientais, que indicam que o Acre está diminuindo o desmatamento num ritmo menor do que o restante da região amazônica, enquanto aumenta a presença do gado.
No ano passado, o Acre foi o segundo que mais desmatou na Amazônia, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais. A derrubada de florestas subiu 47% no estado. Embora tenha crescido, o desmatamento ficou dentro das metas do governo, que é manter o total por ano abaixo dos 434 quilômetros quadrados de floresta.
Em 2016, a Amazônia perdeu quase 8 mil quilômetros quadrados de floresta, o pior índice desde 2008. O aumento fez a Noruega, a principal financiadora de um fundo de conservação da floresta, reduzir quase que pela metade o repasse de verbas ao Brasil. O país é o 15º país produtor de petróleo do mundo – o que contribui para o aquecimento global. Por isso, tornou-se um importante doador para manutenção de florestas, mas sempre a partir de projetos na linha da Economia Verde.
Além do desmatamento, o aumento da ocupação fundiária é outro indicativo de que a economia do Acre não é tão verde assim. Em 2001, o Acre contava mais de 18 mil imóveis rurais cadastrados em 2,9 milhões de hectares. As grandes propriedades (com mais de mil hectares) representavam 2% do cadastro e ocupavam 58% dos hectares. Em 2016, a quantidade de imóveis cadastrados quase dobrou – foi para 37 mil – e a de hectares ocupados quadruplicou – foi para 11,6 milhões de hectares. No novo cenário, a concentração de terras permanece: as grandes propriedades mantiveram proporção de 2% e ocupam 56% da área total. “A concentração vem seguida pelo desmatamento e pela ampliação dos pastos. Ou seja, os latifúndios”, diz o agrônomo Andrade. De acordo com a World Wildlife Fund (WWF), 85% das áreas desmatadas no Acre são ocupadas por pastagens.
A assessoria técnica do governo questionou os dados do Incra apresentados pelo professor para mostrar a concentração fundiária. Disse que não é possível precisar quantas são as propriedades rurais no Estado. Sobre o desmatamento, o governador afirmou que o aumento foi um “repique pontual”, e culpou o pequeno produtor. “Esse aí é quem está forçando ainda o desmatamento”, disse. Viana afirmou que o Acre é um dos estados mais preservados. Mantém 87% da floresta em pé e desde 2002 reduziu o desmatamento em 64%, segundo dados do Instituto de Ciências Espaciais.
Para o governador Tião Viana, a pecuária é compatível com a preservação do ambiente. Ele quer triplicar o rebanho sem aumentar a área de pastagem, criando até dez animais por hectare. Hoje são menos de duas cabeças por hectare.
Um dos programas-propaganda da Economia Verde no Acre é o que regula o REDD (Redução de Emissões por Degradação e Desmatamento), um regime internacional de retenção de carbono. Desde 2010, o governo se compromete a desmatar menos e, assim, emitir menos gás carbônico, um dos principais causadores do aquecimento global. Tudo o que ficar abaixo da meta é considerado carbono não emitido e pode ser vendido, por exemplo, a empresas que poluem o meio ambiente, mesmo em outras partes do globo. A medição da quantidade de carbono é feita com base em cálculos matemáticos pré-estabelecidos internacionalmente, e impõe uma série de restrições ao uso da floresta por parte de comunidades que dela dependem para sua sobrevivência. Está em negociação um acordo que permitirá a empresas californianas que estourarem as metas de poluição nos EUA e compensarem até 4% do excesso de emissões comprando créditos do CO2 que o Acre deixou de emitir.
“O comércio de crédito de carbono nada mais é do que a compra do direito de poluir”, disse o agrônomo Andrade. “No caso do acordo com a Califórnia, perde a população de lá, que continua a viver num ambiente poluído, e perdem os povos tradicionais do Acre, que têm seu modo de vida tradicional alterado”.
Mesmo nos casos em que não há derrubada de grandes áreas, há denúncias de degradação florestal devido à retirada seletiva de determinadas espécies de árvores. A degradação não é medida pelo monitoramento por satélite, mas é sentida na pele pelos povos que vivem da floresta. Além do impacto, essas populações são impedidas, pelas regras de sustentabilidade da Economia Verde, de exercer suas atividades de sobrevivência.
Sentada ao lado de Andrade, diante de um lago povoado por capivaras no campus da Universidade Federal do Acre, em Rio Branco, a coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Acre, Darlene Braga, disse que as pressões geradas pela Economia Verde impedem os povos tradicionais de caçar e os obrigam a ingressar num sistema econômico que muitos não entendem. “O que a gente vê são famílias sendo expulsas, com medo de perder o pedaço de chão onde vivem e o direito de uso do território”.
Overbeek concorda: “nossas pesquisas mostram que é assim no mundo inteiro. As regras de sustentabilidade não alcançam o grande fazendeiro nem os empreendimentos privados, mas sim as populações tradicionais. Por quê? Porque elas não têm poder político”.
Extrativismo x Floresta plantada
A fábrica de preservativos Natex fica na entrada de Xapuri, uma cidadezinha tranquila e bem cuidada, com palafitas de madeira colorida dependuradas sobre o barrento rio Acre – onde Chico Mendes nasceu, viveu e foi assassinado. Inaugurada em 2008, a fábrica é da Fundação de Tecnologia do estado do Acre e é motivo de orgulho do governo quando se fala em política para os seringueiros. O empreendimento deveria estimular o sistema de “florestas plantadas” sem acabar de vez com o extrativismo da seringa, do qual muitos seringueiros tradicionais não abrem mão. Mas tem sido alvo de críticas.
“Tem várias maneiras de introduzir essa lógica de economia verde sem que ela apareça como tal”, critica o agrônomo Andrade. A produção da Natex, que alimenta os estoques do Ministério da Saúde na região norte, é baseada em látex local, que tem o preço subsidiado (em parte com dinheiro do acordo com a Alemanha). Andrade diz que, no ano passado, a Natex pagava em torno de R$ 7,80 pelo quilo do látex, sendo R$ 3,80 pelo produto e R$ 4 de subsídio. Mas, para acessar o subsídio, o seringueiro tinha que assinar um contrato com o governo “para cumprir os ritos de mecanismo de controle do território”, diz Andrade, apontando que esse é um dos mecanismos usados pelo governo do estado para institucionalizar a filosofia do programa. Procurada, a Natex informou que a contratação dos seringueiros é feita pela Cooperacre, responsável pelo pagamento. Sobre o contrato, não se manifestou. A cooperativa não retornou o contato da reportagem.
“O extrativismo da seringa morreu e o governo não apresentou, até hoje, uma alternativa de geração de renda que substitua aquilo que o extrativismo da borracha garantia”, disse a líder do movimento seringueiro Dercy Teles Cunha, 62, anos. Cunha é a primeira mulher a presidir o Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Xapuri. Segundo ela, a maior parte do látex comprado pela Natex vem de seringais plantados (o governo nega, e diz que 70% da borracha vêm de seringais nativos). Isso, ela disse, deixa os antigos seringueiros sem ofício e não colabora para a preservação da Amazônia.
A Reserva Extrativista (Resex) Chico Mendes foi fundada em 1990, dois anos depois da morte do seringueiro e sindicalista, e até hoje serve de modelo para o governo federal desse tipo de unidade de conservação. Nela, segundo o ICMBio, vivem 10 mil pessoas em uma área de mais de mais 900 mil hectares que ocupam sete municípios diferentes, reunindo 46 seringais. A Resex surgiu em um momento conturbado de conflito entre seringueiros e o avanço da pecuária, e até hoje enfrenta diversos tipos de pressões e ameaças.
“Floresta é um conjunto de espécies que jamais o homem tem capacidade de reconstruir”, afirmou Cunha, sentada diante de sua casa, numa ruela de terra para rebater a ideia de “floresta plantada”. Os seringueiros e seus filhos continuam usando a floresta para caça, coleta da castanha, entre outras atividades. O impacto mais claro das ameaças sobre a mata, ainda segundo a líder seringueira, é na extração da castanha do Pará. A árvore depende da polinização de um besouro – o mamangá – para sobreviver. Como ele voa distâncias curtas, precisa das árvores mais baixas para ir escalando aos poucos, até chegar nas copas mais altas das castanheiras. Ou seja, sem a floresta, não há castanha.
Dercy diz ter medo de que o campo se torne uma zona deserta. “E aí sobra o que pra quem vive na floresta? Pra gerar renda e atender esse consumo do celular de última geração que a juventude quer? Quem garante isso são os bezerros que, com sete meses, você vende por 700 ou 800 reais”. O avanço da pecuária salta aos olhos de quem visita Xapuri. O pasto compete com a floresta até na Reserva Extrativista Chico Mendes.
Os planos de manejo florestal comunitários, incentivados pelo governo e autorizados por associações no interior da Resex em parceria com o ICMBio, também são alvo de críticas. Segundo o governo, apenas as árvores de maior valor comercial são retiradas, num sistema de rodízio em que, após uma primeira derrubada pontual, as áreas ficam intocadas por 30 anos, para sua “recuperação”. O agrônomo Andrade disse que o cálculo do governo é nebuloso, assim como o processo. “Quem certifica que aquela árvore tem mesmo trinta anos? Quem mede a degradação florestal, que não aparece no mapa do desmatamento?”
No Acre está a Agrocortex, a única madeireira autorizada a explorar mogno no país. A extração e a venda da madeira, avermelhada e resistente, viraram símbolo de devastação florestal nas décadas de 80 e 90 e estavam proibidas até 2011. Naquele ano, a Batisflor Florestal LTDA, proprietária da Fazenda Seringal Novo Macapá, conseguiu liberação do Ibama para o plano de manejo por trinta anos. Em 2014, a Agrocortex passou a ser a executora das atividades, condição que manteve até 2016. Em abril daquele ano, tornou-se detentora do projeto. No momento a Agrocortex é a única empresa autorizada a realizar manejo de mogno no país.
A equipe da Repórter Brasil visitou a sede da empresa no Acre. A Agrocortex, do grupo português Domínio Capital, tem autorização para explorar mogno e outras madeiras em 190 mil hectares distribuídos nos municípios de Manoel Urbano, no Acre, e Boca do Acre e Pauini, no estado do Amazonas.
O mercado estrangeiro é o maior comprador, tanto que o site da empresa está em inglês. O metro cúbico da madeira custa de duas a três vezes o valor de outras árvores nativas com características semelhantes. A missão da Agrocortex, segundo o site da própria empresa, é “ser referência mundial no manejo sustentável de florestas tropicais numa perspectiva de uso múltiplo da floresta”. Todo o mogno extraído pela empresa é certificado pela Forest Stewardship Council (FSC). Questionada sobre rendimentos e o manejo de mogno, a Agrocortex não retornou até o fechamento desta edição.
O plano de manejo acreano, um dos pilares da Economia Verde, foi investigado por Overbeek, do Movimento Mundial pelas Florestas Tropicais. “Não é uma prática sustentável no sentido de não danificar a floresta, nem beneficia as comunidades. Quem se beneficia são as grandes madeireiras”, diz.
O manejo fica a cargo das empresas madeireiras, com restrições ao uso da floresta pelas comunidades. Foi o que aconteceu na região da Resex onde o filho de seringueiros João Zacarias de Souza mora. Por lá, a coisa não saiu a contento para o seringueiro Souza e de seus vizinhos. Eles contam que a empresa cobrava pelo serviço de retirada e transporte da madeira e, no final, pouca coisa voltava para os habitantes tradicionais da terra. Quem lucrava, dizem, eram as madeireiras, que ainda levavam o slogan “sustentável”. Os seringueiros afirmam que, por permitir o manejo em 40 hectares, uma família recebia cerca de R$ 6 mil em um ano. “Depois não pode tirar um pé de árvore nem um pau pra fazer cabo de enxada”, disse Souza.
Os moradores da terra dizem ganhar R$ 60 por metro cúbico de madeira, enquanto esse mesmo metro cúbico é comercializado por R$ 1.000. Parece uma diferença gritante, mas o governo justifica a conta. Segundo o secretário adjunto do estado do Meio Ambiente João Paulo Mastrangelo, o valor pago pela madeira em pé varia de R$ 30 a R$ 70, enquanto a madeira serrada de menor valor comercial é vendida por cerca de R$ 500. Ele, contudo, faz a ressalva de que a empresa arca com os custos de produção e de que apenas 20% a 55% de cada tora é de fato aproveitado. Isso, ainda segundo Mastrangelo, resultaria num lucro de 10% para a empresa que explora o plano de manejo.
Apesar do retorno baixo, muitos toparam. O governo ofereceu, como estímulo, 40 horas de escavadeiras para a construção de açudes. A ideia era fazer da região um polo de produção de peixes. Mas isso também não foi adiante. As máquinas trabalharam menos do que o prometido e os açudes ficaram rasos demais. “No governo, os cabra vêm aqui e acham que tá tudo normal. Esses açudes, eles pensam que deu certo”, disse João Zacarias de Souza.
Questionado, o governador Tião Viana disse que o caso da Resex teve a ver com um mal entendido com os moradores. “O plano era de parceria. Ganhava 40 horas, mas ele tinha de por o óleo. Mas aí ele não tinha o recurso do óleo”, disse Viana, que tem no fomento à piscicultura uma de suas bandeiras de governo.
Sai o seringueiro, entra o gado
Cerca de 400 quilômetros separam a cidade de Xapuri de Manoel Urbano, maior parte deles percorrida pela BR-364. Na principal estrada do Acre, uma pista única de asfalto quase sem curvas, crateras se abrem de repente, prontas a mastigar pneus de caminhões ou tragar carros populares de um gole só. No trecho que separa as duas cidades, quase não se vê floresta, apenas capim verde-claro, pontilhados de gado para corte. Em Manoel Urbano, um povoado com ruas esburacadas e terrenos cobertos de mato e terra revirada, vive-se quase que exclusivamente do funcionalismo público e pouca gente ouviu falar da Economia Verde.
Mas ali perto, uma hora de barco rio acima, está um dos mais controversos exemplos do ambientalismo acriano: o projeto Purus, uma inciativa privada de REDD em 35 mil hectares. O projeto não tem ligação direta com o governo do estado, mas é anunciado como um símbolo da economia verde. Foi criado pelo ex-prefeito de Sena Madureira, Normando Sales, então no ex-DEM. O programa é certificado por empresas estrangeiras, e o carbono não emitido é comprado por empreendimentos diversos. Uma parte dos créditos adquiridos pela FIFA para neutralizar a Copa do Mundo do Rio, por exemplo, veio de lá.
A primeira controvérsia tem a ver com a terra em que ele se instalou: três antigos seringais onde 24 famílias dependem da agricultura e da floresta para subsistência. Com a chegada do projeto, alguns desses habitantes tradicionais dizem estar sofrendo pressões para deixar de plantar, de caçar e de abrir áreas de roçado. Ele diz que o projeto não levou em consideração as práticas da comunidade
“Nós somos caboclos da mata, mas não é por isso que vai vir o povo da cidade enganar a gente”, disse o ex-seringueiro Antônio Leite Cardeal, 69, na varanda de sua casa, com vista para a terra que recebe o nome de Seringal Itatinga. Cardeal, que chegou ali em 1964 ainda adolescente, diz que há cerca de dez anos advogados do projeto o procuraram para tentar um acordo. A proposta, que não levou em consideração as práticas da comunidade, era desmembrar cem hectares e doar aos posseiros que tradicionalmente ocupam a região.
Mas estariam de fora dessa conta os filhos adultos que já fixaram moradia na área, o que, na visão dos ex-seringueiros, torna a oferta desfavorável. Para obter o crédito de carbono, eles não poderiam criar nem plantar nas terras. “Não ia poder brocar para fazer roça, não ia poder caçar, não ia poder acender um cigarro”, disse. Com a recusa, vieram propostas de benfeitorias e de um “salário” de R$ 300 para sua esposa, com quem teve 11 filhos. O valor é menor do que um terço do salário mínimo nacional, hoje R$ 937.
Diante da resistência, os fundadores do projeto teriam, ainda segundo o ex-seringueiro, feito denúncias de uso de fogo para abertura de roçados ao Instituto de Meio Ambiente do Acre, que geraram uma multa de mais de R$ 13 mil. “Nós temos uma cultura aqui”, disse Cardeal. “Agora me diz se é justo multar a gente por fazer roçado, enquanto tá cheio de boi na sede do projeto?” Além disso, diz Leite e outros seringueiros, o projeto avançou sem a anuência dos moradores locais, que era uma pré-condição para o projeto ser certificado. Em julho deste ano, houve uma audiência entre os moradores e os “donos” do Purus. Leite diz que Sales, do Purus, afirmou aos promotores que eles já tinham entrado em consenso. “Isso nunca aconteceu”, diz Leite, que, junto dos demais moradores, aprenderam sobre a discussão da venda do crédito de carbono para resistir.
No dia em que a equipe da Repórter Brasil esteve na sede, um comerciante, que se identificou apenas como Agostinho, estava no local avaliando 46 cabeças de boi, soltas no pasto que se abria no coração da floresta mantida para capturar carbono. Era a segunda vez que ele visitava o local. Na primeira, seis meses antes, disse ter avaliado cem animais. Mas não deu negócio. “Foi realmente um erro ter gado ali”, disse Normando Sales três dias depois, em seu escritório em Rio Branco. Não disse quanto ganha com os créditos vendidos nem quais empresas os compram.
A equipe da Repórter Brasil flagrou cabeças de gado dentro do Projeto Purus. Na imagem, o comerciante que avaliou as cabeças – e não levou
Para além do gado, moradores locais afirmam que o site do projeto utiliza fotos forjadas de atendimentos de saúde feitas na sede do projeto, além de escolas que, na verdade, são do município e não atendem à população local. Em resposta, Sales disse que em nenhum momento afirmou que as atividades retratadas no site estavam diretamente ligadas com a população local.
“Vamos dar uma olhada nessa história do Purus”, disse o governador Tião Viana a um assessor, na presença da equipe da Repórter Brasil, depois de ser informado sobre a existência de gado na sede. Apesar de não ter ligação direta com o estado, o projeto é anunciado como um símbolo, e suas falhas são mais uma mancha na Economia Verde.
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Matéria originalmente publicada em Repórter Brasil.
Ver original (com imagens e animações gráficas)
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Sentada ao lado de Andrade, diante de um lago povoado por capivaras no campus da Universidade Federal do Acre, em Rio Branco, a coordenadora da Comissão Pastoral da Terra (CPT) do Acre, Darlene Braga, disse que as pressões geradas pela Economia Verde impedem os povos tradicionais de caçar e os obrigam a ingressar num sistema econômico que muitos não entendem. “O que a gente vê são famílias sendo expulsas, com medo de perder o pedaço de chão onde vivem e o direito de uso do território”.
Overbeek concorda: “nossas pesquisas mostram que é assim no mundo inteiro. As regras de sustentabilidade não alcançam o grande fazendeiro nem os empreendimentos privados, mas sim as populações tradicionais. Por quê? Porque elas não têm poder político”.
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