Correio da Cidadania

A "prosperidade" como inimiga do Clima

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Senhor Carbono tem uma casa grande, climatizada, com espaço para aquele churrascão com uísque. Carrão na garagem, trocado com frequência (três anos é carro velho, certo?). Férias todo ano na Disney ou na Europa ou em algum destino "exótico". Roupas usadas quase nunca, sapatos "para cada ocasião", celular novo, computador novo. Compra o que vê pela frente, usa uma vez e encosta, quebra e descarta, compra de novo, mais e mais rápido. É um padrão de vida alcançado apenas por alguns, mas almejado por muitos.

Esse sonho de ascensão social virou um pesadelo para o planeta. E neste texto, mostraremos por que.

Cresce a urgência de conter emissões

 
Emissão de CO₂ nos cenários que mantêm a mudança de temperatura global menos de 1,5°C acima dos níveis pré-industriais. Remoção de carbono da atmosfera é necessária em todos os cenários e aqueles sem "overshooting" reduzem as emissões pela metade já em 2030.

Há poucas semanas foi lançado, pelo Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima, o IPCC, um documento importantíssimo: o SR15, o Relatório Especial sobre Aquecimento Global de 1,5°C (cujo sumário está disponível neste link).

O relatório conclui que estamos em rota para ultrapassar 1,5°C de aquecimento global com rapidez, a não ser que sejam tomadas medidas radicais. A década de 2006-2015 já teve temperaturas 0,87°C acima do período de 1850 a 1900 e o planeta segue aquecendo a uma taxa de 0,2°C por década. Também evidencia que qualquer política razoável de adaptação requer que os números do Acordo de Paris, isto é, aquecimento limitado a 2°C e preferencialmente a 1,5°C, sejam obedecidos.

Mas o que chama mesmo atenção são os cenários que mantêm a temperatura do planeta dentro do limite de 1,5°C. Todos eles demandam redução muito significativa das emissões ao longo da próxima década, com uma queda desde o patamar de emissões anuais de 40 GtonCO₂ (bilhões de toneladas de dióxido de carbono) para 20 GtonCO₂ já em 2030!

Além disso, requer emissões líquidas em torno de zero já pouco depois de 2050. O relatório também destaca que emissões de metano, fuligem e óxido nitroso também precisam diminuir acentuadamente (cortes de pelo menos 35% nas emissões de metano até 2050 sendo necessários).

Mudanças climáticas têm tudo a ver com desigualdade

Segundo um relatório da Oxfam, intitulado "Extreme Carbon Inequality", as mudanças climáticas são caracterizadas por uma profunda desigualdade não apenas nos impactos, mas começando nas emissões de gases de efeito estufa por ricos e pobres. Os dados mostram que os 10% mais ricos do mundo respondem por 49% das emissões, enquanto os 10% mais pobres emitem apenas 1% dos gases de efeito estufa (em CO2-equivalente). Mas é ainda mais espantoso saber que as emissões per capita do 1% mais ricos são 175 vezes maiores que as emissões per capita dos 10% mais pobres.

Essa desigualdade é também patente quando analisamos a situação de diferentes países, conforme dados fornecidos pelo próprio Banco Mundial. As emissões globais per capita estão em torno de 4,97 toneladas/pessoa/ano.

Considerando as recomendações do SR15 do IPCC, elas precisam cair pela metade até 2030. Mas esse valor reduzido (cerca de 2,5 tons/pessoa/ano) ainda seria quase 10 vezes as emissões médias no grupo de países conhecido como HIPC (Países pobres altamente endividados). Os HIPC são pouco mais de 30 países, a maioria na África e  - vejam só - as emissões médias de CO2-equivalente per capita nesses países ficam em 0,27 tons/pessoa/ano.

Em seis países desse grupo, as emissões na verdade ficam abaixo de 0,10 tons/pessoa/ano (Burundi, Chade, República Democrática do Congo, República Centro-Africana, Ruanda e Mali).

Já no lado oposto, nos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), as emissões chegam a 9,51 tons/pessoa/ano, incluindo grandes países com valores elevados per capita, como os EUA, o Canadá e a Austrália (respectivamente 16,49, 15,12 e 15,37 tons/pessoa/ano) etc. É outro planeta, em que cada habitante dos EUA emite o equivalente a 412 habitantes de Burundi!

Não é à toa que Kevin Anderson, cientista do Centro Tyndall de pesquisa em mudanças climáticas, aponta em entrevista que, mantidas inalteradas as emissões dos restantes 90%, se os 10% mais ricos da humanidade tiverem suas emissões reduzidas ao equivalente à média do habitante da Europa (o que não representa um padrão de vida "baixo"), as emissões globais já cairiam em aproximadamente 1/3. Ou seja, não há caminho mais fácil e imediato para cortar as emissões globais de gases de efeito estufa que não seja incidindo sobre o andar de cima.

Ou o "American Way of Life" ou o Clima, Senhor Carbono! Não se pode ter os dois!

Se olharmos para a diferença entre as pessoas dentro de um país, especialmente num país desigual como o nosso, a coisa fica ainda mais gritante. Nem vou me dar ao trabalho de mencionar o quão insustentável é o estilo de vida dos multimilionários e bilionários com seus jatinhos, iates e mansões, mas vou retornar aqui à figura do Sr. Carbono.

Senhor Carbono é um privilegiado em nossa sociedade e embora seja certamente parte de uma minoria (algo mais para o 1% do "topo da pirâmide") está muito distante do punhado de bilionários que existe no planeta (pouco mais de 1500 indivíduos). Mas é exatamente porque há uma quantidade razoável de Senhores Carbono, o impacto dos mesmos termina sendo significativo.

O carro do Sr. Carbono é uma picape, digamos uma picape Amarok, que, segundo o site do INMETRO, emite até 245 gramas de CO₂ por quilômetro rodado. Pode parecer pouco. Acontece que o Sr. Carbono vai diariamente ao trabalho no seu carrão (sozinho, é claro), contribuindo com o engarrafamento (que ele, óbvio, atribui aos outros) e viaja com ele nos fins de semana, para desfrutar das serras e praias.

Vamos supor que o Sr. Carbono rode 20.000 km por ano em seu emissor particular. Neste caso, lá se vão, todo ano, 4,9 toneladas de CO₂ na atmosfera. E mesmo que não fizesse mais nada a não ser rodar no carrão, o Sr. Carbono já emitiria mais que o argentino médio (e suas 4,75 tons/ano) e quase tanto quanto o espanhol médio (5,03 tons/ano).

Acontece que o trabalho do Sr. Carbono demanda dele uma viagem por mês ("nada demais", não é?) de Porto Alegre para Brasília. Isso já é suficiente para somar 3,09 toneladas de CO₂ às emissões (segundo a calculadora da pegada de carbono). Claro, uma viagem de férias internacional por ano é o mínimo para aliviar todo o stress da vida corrida do Sr. Carbono, e ele ainda vai de classe econômica!

Que mal um mísero pulinho a Nova Iorque pode fazer além de deixar 1,01 toneladas de CO₂ no ar, não é mesmo? Pois é, o simples fato de voar (bem menos do que alguns políticos, empresários e até do que alguns artistas e cientistas, não é?) acrescenta mais 4,10 (3,09+1,01) toneladas à pegada de carbono do Senhor Carbono, que a essa altura já chega a 9,13 tons/ano, acima do alemão médio e suas 8,89 toneladas anuais...

A dieta do Sr. Carbono não é excepcionalmente elaborada, mas ele curte uma carninha... Aliás, não dispensa uma picanha e em média consome 203g de carne bovina por dia. Puxa, um bifinho! Acontece que a pegada de carbono varia muito entre diferentes alimentos e a carne de ruminantes tem disparadamente mais impacto climático do que outras fontes de proteína. A cada quilo de carne bovina, por exemplo, são emitidos gases de efeito estufa (principalmente metano, da fermentação entérica), cujo impacto equivale a 27 kg de CO₂.

Ao final do ano, isso resulta em 2 toneladas de CO₂-equivalente. (Para nós, que já debatemos em textos anteriores essa temática, nenhuma surpresa: aquela churrascada com os amigos com 12 kg de carne são piores do que uma viagem de ida-e-volta daqui de Fortaleza ao Rio de Janeiro). O restante da dieta do Sr. Carbono não inclui nada de muito estranho (massas, grãos e, claro, leite e derivados, como aquele queijinho metido que vai bem com um vinho ou uma cerveja mais elaborada) e acrescenta 1,5 tonelada à pegada de carbono. A alimentação do Sr. Carbono termina totalizando 3,5 tons/ano (o grosso por conta da carne de ruminantes) e a pegada total já vai para 12,63 tons/ano. Mais um pouco, ele se torna um canadense honorário...

A eletricidade e o uso de gás de cozinha também se somam e mesmo o Brasil tendo um perfil de baixa pegada de carbono na geração elétrica ela não é nula. Por exemplo, a estimativa é que no Nordeste Brasileiro, que tem um perfil intermediário em nosso país, sejam emitidos 123g de CO₂-equivalente na produção de cada kWh.

Como o Sr. Carbono tem um consumo certamente acima da média da população brasileira, assumir 500 kWh/mês não é tão distante da realidade. Isso nos dá 0,74 tons ao final do ano pela eletricidade, graças ao fato de que hidrelétricas apoiadas por eólicas constituem grande parte da matriz de geração em nosso país (caso o Sr. Carbono morasse nos EUA, é possível que esse valor fosse quatro vezes maior ou até mais!).

Não perca as contas, pois agora temos 13,37 tons emitidas pelo Sr. Carbono.
 

Fiz uma simulação de consumo no site da calculadora de pegada de carbono e a conclusão não pode ser outra: vivemos - e pior, desejamos viver - de forma insustentável!


E agora vem um item fundamental: o consumo. A calculadora da pegada de carbono nos permite fazer essa conta e devemos estimar o quanto é gasto anualmente com cada classe de itens de consumo, incluindo a troca do carro, a compra frenética de novos equipamentos eletrônicos e itens de vestuário etc. Fiz uma estimativa em que o Sr. Carbono gastava 30 mil dólares por ano (cerca de 112 mil reais) nos itens de consumo diversos. E o consumismo do Sr. Carbono, vejam só, acrescentam nada menos que 16,34 toneladas de CO₂ à sua pegada anual. Com 29,71 toneladas emitidas ao final do ano, ele emite quase 6 vezes a média global, quase o dobro do norte-americano médio e mais de 10 vezes o que se espera da média per capita para 2030.

Viver como o Sr. Carbono é o sonho incentivado por toda a propaganda, todo o apelo de consumo, toda a ideologia de consumismo e individualismo e até mesmo por uma certa "teologia da prosperidade". Mas além de questionável sob vários pontos de vista, do econômico ao moral, o fato matematicamente verificado é que esse estilo de vida não cabe no planeta. É básico.

O que é vendido como o paraíso aqui na Terra, esse "american way of life" (que é até fichinha para os bilionários), mas que milhões de pessoas perseguem, é incompatível com um clima estável. Outro modo de viver, outro modo de se relacionar com a natureza, outras fontes de satisfação social deixaram de ser um "papo hippie". Tornaram-se uma necessidade incontornável para evitar uma completa calamidade global.


Alexandre Araújo Costa é cientista do clima.

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