Correio da Cidadania

A declaração de guerra do capital contra a natureza: Biosfera encurralada (2)

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"Em menos de cinco décadas, o mundo assistiu à terrível redução de 60% nas populações silvestres de vertebrados, levando incontáveis espécies à ameaça de extinção ou à sua extinção efetivamente."

O capitalismo requer cada vez mais território a fim de suprir a demanda crescente de matéria e energia necessária a sua reprodução ampliada. A ocupação de terras para atividades humanas, seja a mineração, a instalação de cidades, infraestruturas que incluem estradas, barragens etc. ou principalmente áreas para agropecuária, vem encurralando a biosfera terrestre contra a parede.

Globalmente, essa ocupação territorial tem sido responsável por um verdadeiro encolhimento da vida silvestre. Hoje, existem 51 milhões de quilômetros quadrados de terra “domesticada”, contra 39 milhões de quilômetros quadrados de florestas. Para citar o exemplo mais próximo, em menos de cinco décadas, o Brasil perdeu mais de 20% da Amazônia e impressionantes 50% do cerrado (1).

Sim, o mesmo agro, que assassina indígenas e sem-terra, que financia esquemas de corrupção, que se apropria da água para irrigação, que envenena o alimento e ajuda a bancar a radicalização à direita da política do país, é a maior ameaça à biodiversidade, riqueza impossível de se traduzir em dinheiro.

Poluição, mudança climática e outros fatores se somam

Uma das maiores ameaças à vida no planeta, hoje, é a poluição em suas diversas formas. Solo, rios, oceanos e atmosfera têm sido contaminados por uma multiplicidade de substâncias que vão dos agrotóxicos e fertilizantes da agricultura a antibióticos e outros medicamentos usados em seres humanos e outros animais; de gases de enxofre de indústrias e compostos orgânicos voláteis cancerígenos das refinarias; de lixo radioativo a lixo hospitalar.

Nesse contexto, vale certamente mencionar o plástico como poluente presente em praticamente todo lugar. Hoje, a cada cinco toneladas de peixe nos mares, já existe uma tonelada de plástico e as duas quantidades se igualarão já em 2050 se as tendências atuais persistirem (2).

Somam-se a esses fatores a mudança do clima, que atinge em especial certos habitats mais frágeis (como o Ártico), a introdução de espécies invasoras (como é o caso de espécies marinhas trazidas na água de lastro de navios) e outras transformações ambientais (como a acidificação oceânica, que abordaremos no terceiro capítulo desta série).

O cerco à biosfera e sua escravização

Em menos de cinco décadas, o mundo assistiu à terrível redução de 60% nas populações silvestres de vertebrados, levando incontáveis espécies à ameaça de extinção ou à sua extinção efetivamente (3).

O controle violento da biosfera pela humanidade assume colorações dramáticas quando dados científicos revelam que 96% da biomassa de mamíferos é “domesticada” (36% de humanos, 60% de gado e domésticos, restando somente 4% para animais silvestres) e que 70% da biomassa de aves está nos frangos enquanto os 30% que sobram ficam com todas as demais espécies de pássaros (4).

Parte significativa da biosfera foi escravizada. O que resta de vida silvestre está encurralada pela combinação mortífera de destruição e degradação de habitats, caça/pesca predatórias/insustentáveis, introdução de espécies invasoras, mudança climática antrópica, poluição, proliferação de doenças. Na guerra declarada pelo sistema econômico vigente, a biosfera sofre um verdadeiro cerco, tanto territorial quanto químico.

Sexta extinção


Há muito mais biomassa domesticada escravizada de aves e mamíferos do que silvestre. Essa é uma das marcas da chamada "6ª extinção".

A publicação de um relatório científico recente (5) trouxe dados alarmantes sobre o nível de degradação e destruição ambiental planetárias (6). Baseado na estimativa de que há aproximadamente 8,1 milhões de espécies de animais e plantas (7), o relatório conclui que pelo menos 1 milhão de espécies está ameaçada de desaparecer do planeta.

Essa estimativa pode inclusive ser conservadora (8), pois não há informação suficiente sobre o risco de extinção de espécies de insetos, grupo vivo mais numeroso. Mas mesmo em relação a estes, a situação não parece ser nada confortável. Concordando com relatos de que há menos insetos colidindo com os para-brisas dos carros nas estradas ou menos insetos procurando a luminosidade de lâmpadas, TVs e computadores, há observações científicas daquilo que se começa a chamar como o “apocalipse dos insetos”: a redução substancial (em alguns casos acima de 70%) em sua biomassa.

Não chega a ser surpreendente quando se sabe que os agrotóxicos têm colocado em risco a existência das abelhas e outros polinizadores tão fundamentais. Não custa lembrar: no Brasil do desgoverno Bolsonaro, quase 200 agrotóxicos foram liberados, incluindo alguns banidos na Europa por estarem diretamente associados à mortandade de abelhas (9).

A redução da diversidade genética das populações colocou as taxas de desaparecimento de espécies num patamar centenas a milhares de vezes acima daquilo que seria considerado “natural”. Isso já configura aquilo que passou a ser conhecido como a 6ª grande extinção, um evento com impacto, sobre a biosfera terrestre, de magnitude comparável ao choque da Terra com um asteroide há 66 milhões de anos, eliminando a maior parte dos dinossauros e outras formas de vida de então.

A vida acima do lucro: lutar para seguir sonhando


De acordo com a organização alemã Deutscher Tierschutzbund, 2,5 bilhões de pintinhos são mortos por ano. Em vários casos, os animais são moídos vivos.

Uma publicação recente em um conceituado periódico científico apontou semelhanças marcantes entre os padrões cerebrais, durante o sono, em determinados répteis, aves e mamíferos (10). Foram encontrados, em uma variedade de outras espécies, justamente os padrões que correspondem à fase do sono mais profunda, em que sonhamos. A inferência – inevitável – é que possivelmente vivemos em um planeta não apenas repleto de vida, mas também povoado de sonhos! Um planeta com talvez um trilhão de seres... que sonham!

A devastação ambiental, que se acentuou marcadamente nas últimas décadas, é, não apenas um duro golpe contra a biosfera e a diversidade do viver, mas também contra essa “morfeosfera” e a diversidade do sonhar. A luta em defesa da biodiversidade é também uma luta para que o planeta continue sonhando e, em especial no século 21, a luta pela libertação de mulheres e homens de toda a forma de exploração e opressão andará junto do combate para libertar a natureza à qual pertencemos do domínio aniquilador do capital. É uma luta entre classes e uma guerra entre mundos.


Notas:

1 – Vide https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46026334  
2 – https://www.ellenmacarthurfoundation.org/our-work/activities/new-plastics-economy/2016-report  
3 – Vide o “Índice do Planeta Vivo” ou “Living Planet Index”: http://livingplanetindex.org  
4 – Vide https://www.pnas.org/content/115/25/6506  
5 – Publicado Intergovernmental Science-Policy Platform on Biodiversity and Ecosystem Services, ou “Plataforma Internacional de Políticas Científicas sobre Biodiversidade e Serviços Ecossistêmicos”), ligada ao PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio-Ambiente)
6 – O relatório, composto de vários documentos específicos, está disponível no link: https://www.ipbes.net/assessment-reports 
7 – MORA et al. (2011): How Many Species Are There on Earth and in the Ocean? Plos Biology, 9(8): e 1001127 DOI: doi.org/10.1371/journal.pbio.1001127 
8 – Vide https://www.ipbes.net/how-did-ipbes-estimate-1-million-species-risk-extinction-globalassessment-report  
9 – Vide https://www.oeco.org.br/reportagens/governo-registra-mais-tres-agrotoxicos-associados-a-mortandade-de-abelhas/  
10 – LIBOUREL et al. (2018): Partial homologies between sleep states in lizards, mammals, and birds suggest a complex evolution of sleep states in amniotes, PLoS Biol 16(10): e2005982. https://doi.org/10.1371/journal.pbio.2005982 

Parte 1

Alexandre Araújo Costa é cientista do clima.

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