Greta e a esquerda
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- Sabrina Fernandes
- 08/10/2019
Greta Thunberg é uma jovem ativista que ganhou bastante destaque em uma luta que já existe há anos. Ela é ativista, não militante no sentido de organizada num horizonte estratégico político, mas ela ajudou a desenvolver uma tática pra chamar atenção à mudança climática em seu contexto.
Eu acredito que fazer greve escolar no contexto dela faz sentido. A juventude no Brasil não deve simplesmente copiar. Temos crianças assassinadas no caminho da escola aqui e professores sem estrutura. Portanto, deve ser balizado sempre com as pautas de educação e direitos humanos.
Não significa que uma pauta é mais urgente que a outra. Sim, a pauta da mudança climática é extremamente urgente e vai afetar primariamente quem já é marginalizado no sistema.
Mas vamos falar sobre Greta especificamente. Greta tem 16 anos e eu com 16 anos achava que a solução pra vida era reciclar, votar em partido de esquerda e fazer voluntariado. Hoje eu avancei muito pra além disso, mas Greta nessa idade já avançou em relação à Sabrina de 16.
Greta está em fase de politização (todos estamos) e pode ser que ela se afirme como uma defensora apenas de medidas liberais para a mudança climática. Mas não sabemos isso ao certo hoje. Seu discurso na ONU foi crítico à acumulação eterna do capitalismo e à oligarquia global.
O discurso de Greta me lembra bastante o de Naomi Klein e até mesmo o Green New Deal. Não é ecossocialismo, mas é aliado porque traz a ciência climática para o centro, combate falsas soluções e denuncia a inefetividade de fantasias tecnológicas ecomodernistas.
Greta é abraçada por grandes figuras liberais e socialdemocratas ecocapitalistas, como o Al Gore, Obama e o próprio conjunto da ONU, cujas negociações climáticas vão lentamente por conta da influência permitida da indústria em seu meio.
Mesmo circulando no meio liberal, Greta se destaca porque não abre mão à crítica ao lucro nas suas falas. Isso já demonstra que ela não visa despolitizar a pauta. Mas com isso ela acaba incomodando a parcela da esquerda que é produtivista e negacionista climática.
Parece estranho, pois pautas de justiça climática se localizam diretamente na esquerda, mas há setores da esquerda que rejeitam com todas as forças por conta de economicismo, corporativismo, um tipo de sindicalismo sem visão de futuro. Isso gera teorias de conspiração.
É sempre mais fácil acreditar numa teoria da conspiração sobre uma pessoa financiada por bilionários do que rever criticamente nossas pautas na esquerda pra entender que não há como defender socialismo sem ecologia. E aí a crítica some, a ciência some do parâmetro.
Eu não sei de tudo. Vai que ela é mesmo financiada por bilionários. Vai que não. Eu sei que eu não sou e estou nessa luta pra mudar o sistema e não o clima há mais de dez anos. Povos indígenas denunciam a destruição da natureza há séculos. Greta não é a única voz, nem quer ser.
Focar em uma conspiração ao redor da Greta ou rejeitá-la só por ser uma menina branca europeia são formas de também negar que povos do Sul repetem isso há tempos. Sua identidade certamente colaborou pra que ela fosse ouvida, mas sua fala contempla movimentos pra além dela.
Não por acaso, você não vê lideranças indígenas que também foram à ONU denunciar a crise ecológica repetir teorias de conspiração sobre Greta. Ao contrário. Falam de movimento de solidariedade global. Falam que alguns vão sentir pior que outros e isso é razão pra se juntar.
Greta tem todas as soluções? Não. Greta é a maior liderança do movimento? Também não. Essa lógica personalista é horrível. Pode ser que ela se prenda a soluções institucionais, mas ela começou desafiando normas locais. Nosso papel é disputar. Não só ela, mas o movimento.
Texto adaptado a partir de série de tweets da autora na sua conta oficial no Twitter.
Sabrina Fernandes é socióloga e autora de Sintomas Mórbidos, a encruzilhada da esquerda brasileira.
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