Correio da Cidadania

A declaração de guerra do capital contra a natureza. Parte III: caos climático

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A civilização humana é filha de um clima estável. Mas está arruinando com ele.

A humanidade é filha de um clima particularmente estável, que emergiu há pouco mais de onze mil anos com o encerramento da última glaciação (ou “era do gelo”). (1) Foi a regularidade da chuva, das estações, o comportamento cíclico de plantas e animais, enfim, a previsibilidade do comportamento da natureza que permitiu a mulheres e homens de nossa espécie se estabelecessem em assentamentos fixos, que promovessem domesticação de espécies vegetais e animais e desenvolvessem a agricultura e a pecuária. Daí, vieram as cidades, as civilizações, as sucessivas revoluções industriais, até chegarmos ao mundo capitalista globalizado de agora.

Esse caminho transformou os indivíduos da espécie homo sapiens de caçadores-coletores que demandavam para viver tão somente as 2.000 kcal (quilocalorias) diárias provenientes dos alimentos em violentos predadores de energia, capazes de “devorar”, em países ricos como os EUA, uma média de quase 200.000 kcal por dia. Isso acontece porque, além de consumirmos alimentos, mantemos um gigantesco aparato de indústrias, máquinas, equipamentos, meios de transporte etc., todos demandando uma quantidade formidável de energia.

Capitalismo fóssil

A mudança na escala de produção de bens e, portanto, na demanda de energia especialmente a partir da Primeira Revolução Industrial e, mais acentuadamente, com a Grande Aceleração, só foi viabilizada graças à abundância e flexibilidade de um tipo particular de fonte de energia: os combustíveis fósseis.

Restos de organismos vivos, geologicamente processados, constituem o carvão, o petróleo e o gás. Mesmo tendo sido usadas em escala gigantesca, a quantidade desses materiais nas jazidas é impressionante. O fácil acesso e uso desses combustíveis parecia representar um milagre. O capitalismo dificilmente teria avançado até o estágio atual se não fosse montado sobre o gigantesco estoque de energia química dos combustíveis fósseis.

Planeta superaquecido e clima de extremos

É um fato estabelecido da ciência que o dióxido de carbono (CO2) principal subproduto da queima do carvão, petróleo e gás, é um gás de efeito estufa, isto é, um gás capaz de absorver o calor irradiado pela superfície da Terra, impedindo que ele vá para o espaço. Uma determinada concentração desse gás contribui para evitar que a Terra seja uma esfera gélida e possivelmente sem vida vagando no cosmos, mas uma quantidade maior pode aquecer perigosamente o planeta.

Hoje a queima de petróleo, carvão e gás, o desmatamento e a emissão de outros gases (como o metano da pecuária e o óxido nitroso) estão promovendo uma alteração extremamente perigosa do delicado equilíbrio energético do planeta. Atualmente, a cada ano, são lançadas quase 40 bilhões de toneladas, só de CO2, na atmosfera da Terra, transformada em lata de lixo do capitalismo fóssil.

Esse gás tem se acumulado a uma taxa muito acelerada e sua concentração já é quase 50% maior do que no período pré-industrial. Nessas condições, o efeito não poderia ser outro senão o aquecimento em escala planetária: o mundo já está cerca de 1°C mais quente do que naquele período.


Filipinas, após a passagem do Supertufão Haiyan, em 2013. Tempestades mais intensas, associadas a temperaturas mais altas, podem ter efeitos devastadores sobre os países mais pobres e populosos durante o século 21.


Mas a alteração no clima está longe de se limitar a um aumento da temperatura média planetária. Todas as evidências científicas apontam para um clima com mais eventos extremos: tempestades severas, ondas de calor mortíferas, secas excepcionais, incêndios florestais devastadores.

Além disso, há um consenso de que a perda das calotas polares, a elevação do nível dos mares, problemas para a produção agrícola e a disponibilidade de água já estão produzindo – e produzirão com bem mais severidade – impactos sobre a sociedade humana. Para não falarmos dos impactos sobre uma biosfera já encurralada pela expansão predatória do capitalismo sobre os habitats da vida silvestre.

Injustiça climática

Esses impactos não se distribuem por igual em nossa sociedade. Enquanto executivos-chefes das corporações petroquímicas contabilizam os bilhões de dólares movimentados por essas empresas, ondas de calor matam principalmente idosos e crianças, além de trabalhadores e trabalhadoras expostas ao calor em suas atividades, como agricultores(as), pescadores(as) etc.

A responsabilidade sobre o atual quadro de emergência climática também está longe de ser por igual. Historicamente, países ricos como EUA, Inglaterra, Alemanha, Japão etc. acumularam riqueza às custas de emissões gigantescas de CO2, enquanto países mais pobres, sem base industrial nem agricultura intensiva, estão pagando o ônus da fúria do clima. Hoje em dia, o fosso permanece: um “estadunidense médio” emite 16,5 toneladas de CO2–equivalente por ano, enquanto um “moçambicano médio” emite 0,3, ou 55 vezes menos! (2)

A multiplicação de refugiados climáticos nos países mais pobres e comunidades mais vulneráveis é quase certa. Enfrentar as causas do aquecimento global e socorrer as pessoas impactadas é a urgência que se impõe, justamente o oposto da perigosa e repugnante mistura de xenofobia/racismo e negacionismo climático que a extrema-direita apregoa.

E para mostrar que existe uma ligação intrínseca não somente entre a exploração capitalista do trabalho e da natureza e o colapso ecológico, mas também entre este e todas as formas de opressão, vale lembrar que existe desigualdade nos impactos não apenas por classe ou nacionalidade, mas também por grupo étnico-racial e gênero.

Um oceano morto e azedo

Além de alterar correntes marinhas e ter o potencial de gerar enormes desequilíbrios e extinções, o aquecimento dos oceanos, que ocorre a partir de cima, dificulta a oxigenação das águas mais profundas. Fora isso, um tema bem menos comentado do que o aquecimento global, mas também consequência do excedente de dióxido de carbono na atmosfera, é a mudança do nível de acidez dos mares.

Tal acidificação ocorre justamente porque o CO2 em excesso é capturado pelos oceanos, gerando ácido carbônico. Como resultado os oceanos já estão quase 30% mais ácidos do que no período pré-industrial. A trajetória atual traz um prognóstico sombrio para os oceanos do planeta: contaminados por plásticos e um coquetel de substâncias tóxicas, acidificado e com menos oxigênio.

Ecossocialismo ou barbárie

Há fortes indícios de que a indústria petroquímica sabia de todo o estrago planetário que promovia há várias décadas. Especialmente nos EUA, o Instituto Americano de Petróleo e a Exxon optaram conscientemente pelo caos planetário para não sacrificar o lucro. (3)

Não chega a ser surpresa que os setores mais duros do capital (representados em figuras torpes como Trump e Bolsonaro) apostem no ataque violento à ciência, na sabotagem dos acordos climáticos e no negacionismo.

Tampouco não há saída possível do tipo “capitalismo verde”. A economia capitalista e o modo de vida a ela associado são simplesmente viciados nos combustíveis fósseis e nas consequentes emissões de CO2.

Não é à toa que, apesar da expansão das energias renováveis (4), o crescimento econômico capitalista levou as emissões a crescerem em nada menos que 2,7% no último ano (5). Além disso, mecanismos de mercado, como os “créditos de carbono” foram tragados pelas fraudes, pela especulação e pelo imediatismo do capital financeiro em busca de retorno a seus investimentos.

Contra a barbárie capitalista e o caos climático, outro paradigma de sociedade precisa emergir. Nós o chamamos de ECOSSOCIALISMO. Mas o termo em si é uma questão menor diante da essência: uma nova sociedade de mulheres e homens livres e em harmonia com a natureza seus fluxos e ciclos.

As mudanças no sistema produtivo-destrutivo capitalista precisam ser operadas com rapidez, preservando as massas trabalhadoras ligadas ao setores mais devastadores (mineração, petróleo, indústria do plástico, agrotóxicos etc.) na mudança de atividade laboral. O ônus precisa recair sobre as corporações, mediante a cobrança da dívida climática (6) sobre as corporações e os países e indivíduos ricos.

Dado o nível de degradação e destruição ambiental – legado já inevitável do império do capital – provavelmente não será um “reino da abundância”, mas derrotadas as forças da ganância, do lucro e da exploração, certamente ainda poderá ser um reino – partilhado de compartilhado – da “suficiência”.

NOTAS

1 – Essa época geológica, iniciada há 11.700 anos, denomina-se Holoceno. Os cientistas indicam que, em virtude das profundas alterações promovidas pela humanidade no ambiente especialmente a partir de meados do século 20, o Holoceno deu lugar a uma nova época geológica denominada Antropoceno.

2 – Trata-se do termo usado quando é feita a equivalência do impacto de outros gases para o aquecimento global, tomando o CO2 como referência. Mais detalhes, por exemplo, em https://pt.wikipedia.org/wiki/Equival%C3%AAncia_em_di%C3%B3xido_de_carbono 

3 – Como denunciei em entrevista ao IHU (vide http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/565659-a-fabrica-de-ilusoes-que-leva-ao-colapso-civilizacional-entrevista-especial-com-alexandre-costa) 

4 – A capacidade eólica instalada triplicou de 2009 a 2016. A solar cresce ainda mais rápido: triplicou num período ainda mais curto (de 2012 a 2016).
5 – https://www.theguardian.com/environment/2018/dec/05/brutal-news-global-carbon-emissions-jump-to-all-time-high-in-2018 

6 – O conceito de dívida climática aparece em http://correiocidadania.com.br/meio-ambiente/13709-mocambique-o-nome-nao-e-ajuda-humanitaria-e-divida-climatica 

Parte 1

Parte 2

Alexandre Araujo Costa é cientista do clima.

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