Correio da Cidadania

Eles sabiam: a verdadeira conspiração por trás da questão climática

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A rede de computadores anda infestada pelas chamadas “teorias de conspiração”. Muitas delas são apenas histórias sem pé nem cabeça, algumas quase inofensivas, mas outras nem tanto, como é o caso das invencionices do chamado movimento antivacina. Outras são mentiras plantadas com interesses bastante específicos, como o caso de um certo presidente de topete estranho afirmando que “o aquecimento global é uma farsa inventada pelos chineses”.

O problema dessas “teorias” (usado de maneira imprópria, pois nada têm a ver com o uso da palavra nas ciências) é duplo: se as pessoas levam a sério as mentiras, podem ignorar evidências reais ou até militar por causas inexistentes; se dão de ombros para qualquer suposta conspiração, afinal a maior parte é pura invencionice mesmo, podem terminar não dando a devida atenção aos (raríssimos) casos em que uma conspiração (ou algo parecido) realmente exista.

Nestes tempos de vazamento de informações à la Wikileaks e Vaza-Jato, a divulgação de um certo material passou bastante despercebido, mas não deveria. Afinal, ele mostra, como veremos, que a indústria fóssil sabia há muitos anos do risco de caos climático e que o negacionismo climático jamais teve qualquer fundamento em debate científico real; pelo contrário, é uma cria de laboratório dessa mesma indústria, que montou uma enorme fraude - que persiste até hoje - apenas para defender seus interesses. Leiam. Até o fim.

A mudança do clima no radar da indústria fóssil: o Relatório Stanford


Capa do relatório “Fontes, Abundância e Destino de Poluentes Atmosféricos Gasosos”, de 1968. Fonte: https://www.smokeandfumes.org 

A provável relação entre clima e concentração de CO2 é conhecida desde o século 19 e já na década de 1930 surgiram evidências observacionais de que a queima de combustíveis fósseis estaria contribuindo para aquecer o planeta.

Principais responsáveis pela extração, processamento e queima desses combustíveis, a mudança climática já estava no radar das grandes corporações petroquímicas há muito tempo, na verdade muito antes de a Organização das Nações Unidas convocar especialistas para comporem um painel sobre o tema (o IPCC, criado em 1988).

Com efeito, há mais de meio século, em 1968, o American Petroleum Institute (API) encomendou um relatório a ser preparado por pesquisadores do Instituto de Pesquisa Stanford. Ressalte-se que o API é a principal associação comercial da indústria do petróleo e gás dos EUA, reunindo 650 companhias, inclusive a Exxon, a Chevron e os braços estadunidenses da Shell e da BP. O objetivo do relatório era saber, de especialistas, quais os possíveis impactos da extração e queima de combustíveis fósseis sobre o clima, pois isso poderia vir a afetar em algum momento a lucratividade dessas empresas.

Quais as conclusões do relatório Stanford? O mesmo alertava que “a humanidade está realizando um vasto experimento geofísico” e que “mudanças significativas de temperatura quase certamente devem ocorrer em torno do ano 2000, trazendo consigo mudanças climáticas”.

O que a Exxon sabia sobre o risco climático ao final dos anos 1970


Slide apresentado por James Black à direção da Exxon, com resultados de simulação climática, incluindo projeção para o futuro.
Fonte: https://insideclimatenews.org 

A falta de qualquer desdobramento concreto a partir do Relatório Stanford já era um indício de que a indústria petroquímica não havia ficado feliz com as conclusões do mesmo e, nesse contexto, a Exxon resolveu, ela mesma, realizar estudos sobre as possíveis alterações do clima causadas pelas emissões de CO2 resultantes de sua atividade.

Nos anos 1970, ela montou um grupo de pesquisa, com um orçamento não desprezível, para através de gente "de dentro" responder à questão se queimar petróleo traria riscos para a estabilidade climática do planeta ou não. O grupo era liderado por James F. Black, pesquisador sênior do Departamento de Pesquisa e Engenharia da Exxon, ligado à companhia desde a sua antecessora (a Standard Oil), e que gozava da confiança dos seus chefes.


Mesmo com um modelo climático bem menos complexo do que os disponíveis hoje em dia, as simulações apresentadas por Black mostravam resfriamento da estratosfera e aquecimento bem mais acentuado no Ártico do que no resto do planeta.

Já em 1978, James Black apresentou projeções de aquecimento global que são incrivelmente parecidas com aquelas produzidas pela comunidade do clima muitos anos depois. A hipótese é que, extrapolando o crescimento das emissões, poderíamos duplicar ou até quadruplicar a concentração de CO2 até 2075. A projeção climática correspondente apontava para um aquecimento em torno de 1 ou 2°C após o ano 2000 (em 2016 chegamos a 1,2°C de anomalia de temperatura em relação ao período pré-industrial) e um valor mais provável em torno de 3°C em meados deste século.

O nível de sofisticação da simulação era atestado pela projeção de padrões que começam a ser observados e que passaram a constar das simulações realizadas pela comunidade científica de clima vários anos depois, incluindo:

1) um aquecimento bem mais acelerado no Ártico do que em latitudes mais baixas;

2) o resfriamento da estratosfera, em contraste com o aquecimento da superfície e da troposfera, que consiste em uma das maiores evidências de que o aquecimento global está relacionado à redução da radiação infravermelha que escapa da troposfera em função do aumento da intensidade do efeito estufa e não a um aumento da atividade solar ou algo do gênero e;

3) o reconhecimento de que os impactos sobre a temperatura global perdurariam por milênios mesmo que as emissões fossem interrompidas em algum momento, permitindo que o planeta voltasse a resfriar.


Efeito de um "pulso" de emissão de CO2 na escala de milhares de anos, na simulação de Black, que criou o termo "super-interglacial".

Black também falava em uma janela “de cinco a dez anos” antes de tomar medidas drásticas para mudar o modelo energético. Em outras palavras, nos bastidores da Exxon, tanto o risco de um aquecimento global descontrolado quanto à necessidade de termos iniciado na década de 1980 uma transição energética que nos livrasse dos combustíveis fósseis, já eram conhecidas.

Mas o que a Exxon fez a partir disso? O desenrolar dessa história não chega a ser de todo surpreendente, mas não é por isso que deixa de ser profundamente indignante.

A opção consciente da Exxon pelo desastre climático


Trecho de documento da Exxon, disponibilizado por ClimateFiles. Com uma dose extraordinária de maldade, o documento propõe, como objetivo da campanha de comunicação, fazer com que os defensores do Protocolo de Kyoto parecessem "fora da realidade".

Vindo de dentro, não tinha mais sentido questionar a informação. Era fato: o desastre climático viria mais cedo ou mais tarde, os combustíveis fósseis teriam de virar coisa do passado e - mais do que a fonte de lucro - a própria razão de existir da Exxon estava em xeque. A posição da companhia não poderia ser mais odiosa: a opção consciente pelos negócios, pelo lucro, um enorme f*da-se para a humanidade e para a própria vida no planeta como a conhecemos.

Em 1982, a Exxon encerrou o programa de pesquisas em clima. Tudo que havia sido produzido foi engavetado e a companhia passou a articular-se com grupos de direita e think tanks conservadores a fim de iniciar uma cruzada para esconder a verdade sobre o risco climático. Desde então, a Exxon financiou diversos grupos negacionistas, tendo transferido para eles mais de 30 milhões de dólares.

Não foi algo feito de maneira aleatória. Foi caso pensado, com tática e estratégia. Os documentos internos da Exxon demonstram isso. Havia um "Plano de Comunicação da Ciência do Clima Global", cujo propósito era o de reformatar completamente o debate público sobre a questão climática que então se iniciava, após a criação da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (a UNFCCC) e a realização da Eco-92 e das primeiras Conferências das Partes (COPs), processo que viria a desaguar no (muito tímido) Protocolo de Kyoto.


Estratégias e táticas da coalizão liderada pela Exxon em seus ataques à Ciência do Clima. Documento disponibilizado via ClimateFiles.

Segundo a própria Exxon, esse plano só seria vitorioso quando o "cidadão médio" viesse a questionar o que eles chamavam de "conhecimento convencional", ou seja, a Ciência do Clima, para aderir à narrativa negacionista ou pelo menos viesse a ter dúvidas. Idem para o conjunto do empresariado e para a mídia, que deveria, segundo o plano da coalizão liderada pela Exxon, mostrar os "dois lados", isto é, abrir espaço tanto para a ciência quanto para a sua negação deliberada e arquitetada com fins mesquinhos e espúrios de preservar os lucros da indústria fóssil.

O documento mostra toda a vilania e escrotidão da coalizão liderada pela Exxon, ao colocar como um dos seus objetivos fazer com que quem defendesse o Protocolo de Kyoto parecesse, perante o público, como "fora da realidade".

Embora não fossem exatamente novas, já que tudo fora inspirado na sabotagem anticiência feita anos antes pela indústria do tabaco, o nível de detalhamento das estratégias e táticas da "coalizão" não deixa margem para dúvidas de como a Exxon e seus comparsas conspiraram contra a comunidade científica, contra o interesse público, contra a humanidade e a biosfera, unicamente para defender seus lucros.

Era necessário recrutar pessoas dentro da academia (em todo lugar sempre tem algum sujeito de caráter duvidoso disponível para vender a alma, não é?). Daí, seria necessário cavar espaço dentro da mídia, via editorias de ciência, cartas e editoriais escritos por esses "cientistas" recrutados, promover palestras de negacionismo junto a universidades, sindicatos, comunidades etc. Imaginem o que não constaria do plano se naquela época já existissem o YouTube, o WhatsApp, o Facebook, o Instagram etc...


Potenciais financiadores e implementadores do projeto da "coalizão" anticiência.

Óbvio, toda essa campanha anticiência sórdida não sairia do lugar sem dinheiro! E no documento, que pode ser checado no site Climate Files, aparece o orçamento detalhado, totalizando dois milhões de dólares à época ou mais de três milhões, corrigindo para os dias de hoje. Isso bancaria não apenas ações na mídia e palestras, mas até como o negacionismo chegaria às escolas. Também é evidente que, em havendo esse orçamento, alguém teria de bancá-lo.

Nenhuma surpresa sobre os financiadores: associações empresariais dos setores de mineração e petróleo, com destaque, mais uma vez, para o API. Quem "tocaria" o barco seriam consultorias e institutos ideologicamente ligados ao ultraconservadorismo como ALEC, Marshall Institute etc.

Breves frases finais sobre a impossível "conspiração de cientistas"

As corporações capitalistas têm um interesse que, para elas, está acima de tudo: o próprio lucro. Às escondidas da opinião pública, à revelia do interesse da maioria das pessoas e por meio de suas associações e com recursos generosos, essas corporações têm todas as condições - e o motivo - para conspirarem na defesa desses interesses. E como mostramos, essa conspiração não apenas aconteceu como deixou-nos um legado maldito: o negacionismo climático, hoje multiplicado e difundido muito mais rapidamente através dos meios digitais.

Por outro lado, falar em "conspiração de cientistas" é um total contrassenso. Primeiro, porque a motivação do trabalho científico em geral não é o dinheiro. Em outras atividades, pessoas com a alta qualificação dos cientistas poderiam ganhar muito mais. Segundo, porque os cientistas são bem mais competitivos entre si do que corporativistas. A ideia de superar o trabalho do colega, ou até desbancar o entendimento científico vigente sobre determinado assunto é atraente. Traz prestígio, publicações em revistas conceituadas (como Science e Nature), citações.

Mas, terceiro e principalmente, porque não é da natureza do fazer científico. Mesmo com as imperfeições e limites individuais e coletivos, a ciência se guia pelas evidências e os pontos de vista são moldados de tal modo que, mais cedo ou mais tarde, essas evidências prevalecem e, se for o caso, até mesmo uma revolução científica se impõe.

Não é que nós, cientistas, sejamos vestais, ou que entre nós reine uma pureza moral e ética que impeça desvios individuais e/ou temporários, alguns deles graves, incluindo fraudes científicas. Mas simplesmente que não faz sentido esperar que sejamos capazes de uma conspiração que efetivamente envolva milhares de cientistas e pesquisadores, estudantes e técnicos, todos imbuídos de um único propósito espúrio, que no fim das contas ninguém consegue dizer direito qual seria: vender bicicletas e painéis solares, atrapalhar a competitividade econômica dos países ricos, conter o desenvolvimento dos países pobres ou sabotar a economia como um todo?

Desculpem, mas - diferentemente da indústria do tabaco e da indústria do petróleo - não temos "competência" para isso. Uma conspiração de cientistas daria errado. A não ser a conspiração de levantar evidências, se aproximar da verdade e melhor entender a realidade que nos cerca.


Alexandre Araujo é cientista do clima.

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