Saneamento: básico para uma sociedade
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- Marcelo Pompêo
- 24/07/2020
Recentemente, com a aprovação do novo marco legal do saneamento no Brasil, surgiram muitas discussões sobre o tema, com acalorados debates contra e a favor.
Em uma dessas matérias (1), em um viés financeiro, deixou claro que há inúmeras empresas públicas na área do saneamento que “não se pagam”, que são consideradas deficitárias. O que isso quer dizer?
O que é ser deficitário no saneamento público brasileiro? É não cobrir os custos, em dinheiro, da operação de todo o sistema de saneamento? Isto é, o dinheiro aplicado para que tudo funcione não é coberto com o que se arrecada com as taxas pagas pelos usuários do sistema? Ou deficitário seria não ter cobertura sanitária adequada para todos e todas?
Claramente fico com a segunda opção, afinal, na realidade brasileira, o principal e mais importante déficit da grande maioria das empresas de saneamento é não proporcionar 100% de cobertura sanitária, com coleta e tratamento de esgotos, em eficientes estações de tratamento de esgotos (ETE) e a oferta de água tratada de qualidade para toda a população, em eficientes estações de tratamento de água (ETA).
Há que levar em consideração que em alguns casos há dificuldades técnicas para implantar 100% de cobertura sanitária com ETE ou ETA, mas há alternativas, não exploradas neste texto. Nesta matéria de opinião, também serão deixados de fora questões relacionadas à coleta de lixo, seu reuso, reciclagem e seu correto descarte, que também entra na conta do saneamento.
Vamos começar do básico. Quem disse que empresa pública deve obrigatoriamente ter lucro? Quem disse que ela deve obrigatoriamente equilibrar os custos operacionais e os investimentos com o quanto ela arrecada em taxas cobradas dos usuários, ou mesmo complementado com aplicações financeiras? O lucro de uma empresa ou órgão público deveria ser a excelência na prestação de serviços e ter como principal meta a qualidade de vida dos cidadãos.
O quanto essa empresa pública capta de recursos financeiros através de taxas cobradas dos usuários, ou de seus malabarismos financeiros legais, não deveria ser a sua principal meta. Os serviços e servidores públicos deveriam atuar em prol do cidadão e não em nome do capital ou dos interesses de acionistas. Quando o foco passa a ser o dinheiro ou os acionistas, isso é desvio de finalidade de uma instituição pública.
O dinheiro que eventualmente falte ao saneamento poderia ser coberto com recursos públicos, seja da própria prefeitura, ou contando com importantes aportes financeiros dos governos estaduais ou federal, também beneficiados com a universalização do saneamento. Tudo é uma questão de articulação política, de definições de prioridades e de tomadas de decisões. Caso hoje uma cidade não possua excelente nível de cobertura de saneamento, foram as decisões políticas do passado que levaram ela ao que hoje possui, seja no saneamento, na saúde ou na educação, por exemplo.
Competências técnicas nessas três áreas o Brasil tem de sobra. Faltam decisões políticas para colocar essas competências em marcha e melhorar os parcos níveis de cobertura de saneamento, mas também na atenção primária na saúde ou nos indicadores educacionais no Brasil.
O cidadão e cidadã, em hipótese alguma, se recusariam a pagar mais pela excelência nos serviços de saneamento, se necessário, como forma de cobrir eventuais déficits financeiros das empresas de saneamento. O questionável Sistema de Bandeiras Tarifárias da ANEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), já cumpre essa função, para a definição dos custos reais da geração de energia elétrica no país.
No entanto, desde que cobrados preços justos e com tarifas reduzidas, visando atender uma parcela da população considerada mais vulnerável. Não nos preocuparíamos com esses valores extras, ou até de uma eventual elevação nos próprios valores das tarifas praticadas mensalmente, mas sem dúvida deveríamos fiscalizar para ter devolvidos esses valores pagos na forma de serviços públicos de qualidade na área do saneamento. Não gostaríamos de ver esse pagamento extra transformado em dividendos aos acionistas, que nada devolvem ao cidadão como serviço público de qualidade, pelo contrário.
Caso a empresa de saneamento tenha lucro, este deveria ser empregado para a própria melhoria do sistema, com novos investimentos no setor, ou mesmo poderia auxiliar a cobrir outras instâncias do poder público, que eventualmente tenham déficit financeiro. Como disse anteriormente, tudo é uma questão de interesse e de mera vontade política dos tomadores de decisão e agentes públicos.
Investir em saneamento é basilar em qualquer sociedade. Visa garantir a melhoria da qualidade de vida da população, pois sólida cobertura de saneamento permite reduzir doenças diversas e o número de mortes (2 e 3). Só esse efeito benéfico na saúde de toda a população já demonstra a extrema importância do saneamento como promotor de qualidade de vida, e deveria ser suficiente para ampliar o interesse de qualquer administrador público para fortalecer a sua universalização, já que se trata de temática transversal a todas as esferas e a praticamente todas as ações de governo.
Soma-se ainda, que melhores níveis de cobertura no saneamento impactam de modo positivo nos índices educacionais, com melhor aprendizagem e desempenho dos alunos (4, 5, 6 e 7). Sem dúvida, cidadãos melhor instruídos e mais bem formados, também aumentariam a competitividade de nossas empresas, até auxiliando a reduzir custos, sem falar nos benefícios à saúde individual e coletiva, pois melhor compreenderiam sobre como se cuidar.
Além disso, as ETEs, ao tratar o esgoto in natura, permitem lançar águas de melhor qualidade em rios e reservatórios e, com menor carga orgânica e de poluentes diversos, as águas servidas, agora tratadas, deixariam de impactar de modo negativo a qualidade das águas brutas e sedimentos, com muitos exemplos Brasil afora (8, 9 e 10). Caso o saneamento fosse prioridade e universalizado, deixaríamos de ter esgotos a céu aberto, como há décadas de modo quase impassível observamos nos rios Pinheiros (11) e Tietê (12 e 13), em São Paulo, por exemplo, uma brutalidade naturalizada contra o meio ambiente e contra nós mesmos.
E águas brutas de melhor qualidade, também auxiliam a reduzir os custos do tratamento nas ETAs, da água empregada no abastecimento público (14 e 15). No mínimo, haveria menor produção de lodo e com isso, menores gastos em reagentes químicos (16).
Especificamente para a região metropolitana de São Paulo, águas brutas com questionáveis níveis de qualidade, como do braço Rio Grande, na Billings, ou do reservatório Guarapiranga, há cerca de cinquenta anos passam por sólidas aplicações de sulfato de cobre e de peróxido de hidrogênio, a famosa água oxigenada, para o controle do crescimento fitoplanctônico, em especial de cianobactérias (10, 17 e 18). Esses produtos são jogados de barcos na água superficial ao longo do reservatório, em quantidades variáveis, mas anualmente podem atingir valores da ordem de 400 toneladas para o sulfato e de 650 toneladas para o peróxido (10 e 18).
Em estudo recente, apenas para o reservatório Guarapiranga, os custos totais para a compra, transporte e aplicações desses compostos químicos jogados na água bruta, foram estimados em centena de milhões de dólares, e considerados equivalentes à instalação e operação de uma ETE para tratar esgotos de 1 milhão de pessoas, pelo mesmo período, ou seja, quase 50 anos (18).
Mas estas recorrentes aplicações de sulfato de cobre têm consequências. Já impactam os sedimentos do Guarapiranga, pois 25% em massa do sulfato aplicado representam o elemento cobre, que é potencialmente tóxico para a biota que vive nesses reservatórios (10, 18, 19 e 20), na dependência de suas concentrações observadas no sedimento. Mas essa realidade não é única, pois em outros reservatórios paulistas também há controle do crescimento do fitoplâncton através de constantes e consideráveis aplicações de sulfato de cobre ou de peróxido de hidrogênio.
Cabe lembrar que as cianobactérias são organismos que compõem o fitoplâncton e naturalmente são encontrados nos reservatórios. Mas devido ao seu potencial em produzir compostos tóxicos, as cianotoxinas, devem ser constantemente monitoradas, para evitar e controlar crescimentos explosivos desse grupo, o que poderia comprometer a qualidade da água bruta, mas também da água tratada (21).
Um triste caso no Brasil, com intoxicação e mortes, ocorreu na cidade de Caruaru (PE), quando dezenas de pessoas de uma clínica de hemodiálise foram intoxicadas e morreram em decorrência do contato com uma cianotoxina (22).
Com base no exposto acima, é possível concluir que universalizar a coleta e o tratamento de esgotos, afastando da população as águas servidas e tratando-as em ETEs, não é necessariamente caro. Os incomensuráveis benefícios nas várias frentes de ações do poder público municipal, mas também sob responsabilidades dos governos estaduais e federal, como do SUS (Sistema Único de Saúde) e na educação, por exemplo, mais do que justificam esses investimentos públicos.
E quem mais ganha com a universalização do saneamento é a população. Com as instalações e operações de eficientes ETEs e ETAs, a população teria ao seu dispor água tratada de boa qualidade, para inúmeros usos, mas também um meio ambiente mais seguro, menos poluído, com baixo potencial tóxico à biota e com menores preocupações a muitos usos que o homem faz dos reservatórios, como o contato primário ou a pesca. O impacto positivo no sistema de saúde seria de tal ordem que está estimado em uma economia na casa de bilhões (23), que poderiam ser revertidos ao próprio sistema de saneamento.
Segundo estimativas do Banco Mundial, nos países em desenvolvimento os gastos correntes com saneamento estão na ordem de aproximadamente 28 bilhões de dólares por ano, mas quando esse montante não é aplicado, os demais custos são reais e ocultos, e representam cerca de três vezes esse valor, só em termos de saúde e doenças (24).
Portanto, em uma sociedade moderna e democrática como a brasileira, com recursos financeiros, sólidas estruturas de pesquisa e pesquisadores bem formados, não há por que negligenciar o saneamento básico. Nossos políticos e tomadores de decisões não podem mais se fazer de cegos funcionais, ainda acreditando que obra enterrada não dá votos, frente a tantos benefícios que o saneamento universalizado traz à qualidade de vida e ao bem estar coletivo, para falar pouco.
Também em hipótese alguma, os recursos financeiros aplicados ao saneamento, poderão ser considerados despesas, mas sim importantíssimos investimentos públicos à coletividade, à saúde e ao bem estar de todos. Sobre o triste cenário do esgotamento sanitário no Brasil em 5.570 cidades, maiores informações podem ser obtidas no Atlas Esgotos (25).
Fontes
2 http://www.tratabrasil.org.br/blog/2018/08/07/doencas-saneamento-basico-previne/
3 http://www.funasa.gov.br/saneamento-para-promocao-da-saude
6 https://www.fundacred.org.br/site/2020/03/02/saneamento-afeta-educacao-e-rendimento/
7 http://www.repec.eae.fea.usp.br/documentos/Scriptore_Azzoni_MenezesFilho_28WP.pdf
8 https://vejasp.abril.com.br/cidades/represa-guarapiranga-problemas-ambientais/
9 https://www.unifesp.br/eventos-anteriores/item/1974-mudanca-de-parametros
10 http://ecologia.ib.usp.br/portal/publicacoes/
13 https://www.bbc.com/portuguese/brasil-45609153
14 http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/gestao_ambiental/article/view/5600
15 http://www.fec.unicamp.br/~bdta/custo.htm
16 https://www.tratamentodeagua.com.br/artigo/lodo-gerado-estacao-tratamento-agua-bruta/
18 https://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0048969717317990
21 http://www.epsjv.fiocruz.br/noticias/reportagem/geosmina-a-ponta-do-iceberg
24 https://pt.slideshare.net/JoanaGomes5/a-etica-do-uso-da-agua-doce
25 http://atlasesgotos.ana.gov.br/
Marcelo Pompêo é professor do Departamento de Ecologia da USP.