Correio da Cidadania

O desserviço de "Planeta dos Humanos"

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Famigerado site de Fake News da ultradireita dos EUA celebra "Planet of the Humans" porque ele "desmonta as fraudes da energia verde da esquerda". E tem razão em celebrá-lo.

"Planet of the Humans" parece ter chegado com mais força ao radar do ambientalismo brasileiro e isso quase me obriga a vencer a inércia de escrever sobre um filme que considero particularmente ruim. O preocupante é que, com uma ou outra premissa correta e um ou outro discurso aparentemente radical como "simplesmente trocar combustíveis fosseis por renováveis não irá nos salvar; o foco dos capitalistas é lucro", o que é uma platitude, uma obviedade, ele parece ganhar a atenção de alguns ambientalistas e da esquerda. Mas um olhar minimamente crítico sobre o filme mostra que provavelmente mais sentido ainda faça ele ter sido celebrado, vejam só, no ecossistema da direita negacionista como mostra farta evidência. Neste breve artigo, analisaremos o porquê disso.

A isca é aparentemente boa. Tem apelo para capturar setores mais radicais do ambientalismo, que entendem - como todos deveriam, aliás - que o capitalismo é um sistema essencialmente expansionista e, portanto, destrutivo, afinal, denunciar o impacto negativo de projetos de energias renováveis voltados apenas para o lucro é justamente o que se deve fazer, não é?

Tem apelo também para seduzir setores da esquerda que nunca foram de fato simpáticos às renováveis e que sempre relutaram a abandonar o desenvolvimentismo, afinal se tanto renováveis quanto nucleares ou até mesmo fósseis são todas destrutivas, por que se importar em mudar a matriz energética?

Mas é só aparência. A isca está estragada e, dentro dela, o anzol é realmente o que mata.

No filme, nenhum Cientista do Clima é ouvido. Alguns "especialistas" aparecem em determinado momento com afirmações perigosas (voltaremos a eles em breve), mas o tom da narrativa é todo ditado pelas afirmações lançadas ao vento na voz de Jeff Gibbs, alternadamente com a do autor da pérola, Ozzie Zehner.

O filme se caracteriza por uma abordagem anticientífica, deturpada e desonesta sobre as tecnologias de energias renováveis já no começo. Mostra painéis solares velhos para ilustrar a "tragédia" do que deveria ser uma energia limpa. Mente descaradamente sobre as emissões do ciclo de vida de produção, transporte, instalação, operação e descarte de painéis solares e aerogeradores, ao afirmar que "as emissões nesse processo são maiores" do que aquelas que essas energias evitam ao substituírem fontes fósseis.

Isso não é apenas "errado". Para ficar "errado" precisa melhorar muito. É uma barbaridade desprovida de qualquer fundamento. É uma afirmação mentirosa e desonesta. Já seria de fato questionável, desde os idos de 2012, quando Zehner escreveu seu livro "Green Illusions: The Dirty Secrets of Clean Energy and the Future of Environmentalism" (algo como "Ilusões Verdes: os Segredos Sujos da Energia Limpa e o Futuro do Ambientalismo) e que coincidentemente é o ano do artigo científico apresentado no documentário para dar um verniz... mas em 2020, tornou-se um disparate completo.

Uma das afirmações, de que a indústria de renováveis criou "os processos industriais mais tóxicos jamais criados", é aparentemente uma bravata. Até onde sei, nenhum processo é mais tóxico do que o do processamento do ouro, que envolve cianeto, sendo que, embora alguns países tenham banido essa prática, "quase 90% de toda a produção mundial ainda é feita a partir do processo de cianetação do ouro" segundo o ecycle. E o ouro, além das joias, aparece (embora hoje em menor proporção do que antes) em quase todos os eletrônicos que se possa imaginar: computadores, TVs, games, celulares...

Em outros momentos, o documentário retira as coisas de contexto de maneira desonesta, como ao mostrar um conjunto de painéis solares e afirmar: "tudo isso só para fazer funcionar uma torradeira". Segundo este site, uma torradeira pode consumir de 800 a 1800 Watts. De fato, um painel solar típico tem potência nominal (isto é, máxima) de 405 W com eficiência média (considerando as noites em que, por motivos óbvios, não há geração) de 18,3%. Então seriam necessários, em média, 10 a 24 painéis para suprir uma torradeira que ficasse ligada o tempo todo.

Mas essa conta não faz sentido no mundo real, pois as torradeiras não ficam o tempo todo ligadas... Pelo contrário, é um dos eletrodomésticos que permanece ligado por menos tempo. Se usarmos a torradeira por 10 min no café da manhã, mesmo o modelo de maior potência vai usar apenas 300 Wh (Watt-hora). Um único painel solar com as características acima produz 405 x 18,3% x 24 = 1779 Wh, portanto, quase 6 vezes mais. Francamente, usar desse tipo de falácia ultrapassa o limite do vergonhoso.


Planet of the Humans mente. A pegada de carbono das renováveis é realmente várias ordens de magnitude menor do que das fósseis.

As informações de que a "eficiência" dos painéis solares é de 8% e sua durabilidade é restrita a 10 anos não conferem com a realidade. O padrão de tempo de vida dos painéis hoje é de até 3 décadas, quase sem necessidade de manutenção. Sua eficiência também é bem maior do que afirmado no lamentável "documentário". É o dobro ou o triplo do que foi afirmado, tipicamente. Isso significa que, durando 3 vezes mais e produzindo até 3 vezes mais energia, painéis solares na verdade produzem 9 vezes mais energia ao longo do seu ciclo de vida do que "Planet of the Humans" afirma, o que por si só já demonstra a farsa de que essa energia seria menor do que aquela necessária para fabricá-los, transportá-los e instalá-los.

Os números, aliás, não mentem. Mesmo com o uso de energias fósseis em sua produção, como atualmente, a pegada de carbono de painéis fotovoltaicos gira em torno de 50 gCO2eq/kWh (gramas de CO2-equivalente por quilowatt-hora), enquanto que o valor para gás ultrapassa 400gCO2eq/kWh e para carvão vai à ordem de 1000gCO2eq/kWh ou mais. Para mais detalhes nas inúmeras distorções sobre renováveis, indicamos o artigo de Robin Whitlock na Renewable Energy Magazine.

Não é à toa que Dana Nuticelli publicou artigo no site Yale Climate Connection em que se refere ao documentário produzido por Michael Moore como uma peça de "negacionismo climático perigoso", que Ketan Josh se refere ao filme como uma mistura requentada de mitos antigos e indolentes, e que ele é um "presente para o Big Oil", como afirma Leah Stokes.

A tortura com os números feita em Planet of the Humans me faz lembrar do malabarismo que foi feito para que Cowspiracy afirmasse que a pecuária era a maior responsável pelo aquecimento global (quando isso obviamente não é verdade, como mostramos na crítica que fizemos ao filme).


O discurso sobre demografia colocado acima do discurso de consumo e de modo de vida é uma porta aberta para ideologias de extermínio, como o ecofascismo. Precisa ser rejeitado de imediato! (Prints do documentário)

A analogia entre os dois filmes, aliás, também aparece no que diz respeito ao tom conspiracionista e aos ataques desproporcionais a organizações ambientalistas. Sim, não é que Greenpeace, 350.org, Sierra Club e outras estejam acima da crítica, mas esse padrão de ataques levianos me causa enorme desconfiança (em particular o ataque a Bill McKibben, tratado como um terrível "queimador de árvores" me pareceu injusto e desonesto e por isso deixo o link para a resposta do ambientalista ao documentário).

Mas diferente de Cowspiracy, que parece apontar, embora com vários argumentos errados, para um propósito correto (o de abandonar, ou pelo menos reduzir radicalmente o consumo de carne, algo realmente necessário e urgente), Planet of the Humans parece atirar-nos muito mais para o imobilismo, o conformismo, a desilusão; para um niilismo com toques malthusianos que chega a deixar até mesmo a porta aberta para o ecofascismo.

Sim, porque quando o filme desata a falar de população, o bicho realmente pega. "Há muitos seres humanos consumindo muito e muito rapidamente", "precisamos começar a lidar com a questão da população", "o crescimento populacional continua a ser o elefante, ou a manada de elefantes na sala". E isso é uma das maiores falácias que se possa imaginar. Um habitante médio de Malawi, da República Democrática do Congo ou de Ruanda emite apenas 0,1 tonelada de CO2-equivalente por ano. Essa pegada de carbono é 165 vezes menor do que a de um habitante médio dos EUA. Mas entre os 10% mais ricos dos estadunidenses, a pegada é 50 toneladas de CO2-equivalente por ano. Isso é 500 vezes maior do que as emissões médias dos habitantes de países da África. E eu não faço ideia de qual seja a pegada de carbono de um único bilionário.

Portanto, não! Não somos muitos consumindo muito. É uma minoria que está consumido para muito além do que é razoável. Energia e matéria-prima para suprirem um modo de vida de elevado consumo de bens e serviços, que simplesmente não cabe neste planeta. O impacto ambiental humano não é simplesmente um impacto individual abstrato multiplicado pelo total de pessoas, mas o resultado de um modo de vida e um padrão de consumo específicos, o modo de vida do Sr. Carbono, como mostramos em outro artigo. Brian Khan, no Gizmodo, chega a afirmar que Planet of the Humans chega "bem perto" de entender qual é realmente o problema, mas "termina por virar ecofascismo total". Não serei generoso em afirmar que ele chegou pertinho ("this close") da solução, pois para mim andou longe; embora tampouco ache que a terrível saída ecofascista é a única interpretação possível.

Porque para mim há outra interpretação que pode perfeitamente emergir do filme: o derrotismo, o niilismo, o imobilismo. Na realidade, o filme chega a induzir isso em um dado momento quando abre espaço para um psicólogo criticar que "recusamos a imortalidade". Uma longa citação de "O Mito de Sísifo" de Camus é destacada, no que sugere que abracemos o niilismo.

Mas ao contrário de uma perspectiva niilista mais elaborada de que "fora dessa única fatalidade da morte, tudo, alegria ou felicidade, está liberto", é o abraço do fatalismo que geralmente se vê. Afinal, se todas as energias têm impactos, para que mudar mesmo o sistema energético? Se tudo é mal, deixa as fósseis mesmo... Aliás, para que mudar algo mesmo, se o destino final de todos e cada um já se sabe? Quem aplaude esse fatalismo imobilista e essa impotência autointrojetada é ninguém menos que o conservadorismo.

Não é à toa que o artigo da primeira imagem que mostramos, publicado na Breibart (recusamo-nos, por motivos óbvios, a "linká-lo") afirma: "Planet of the Humans pede à esquerda que analise com atenção sua própria hipocrisia e com que facilidade suas visões utópicas são exploradas por negociantes e oportunistas. E talvez abra um diálogo produtivo com os conservadores também".

Daí, parece haver um grave erro aqui... Não, senhores Ozzie Zehner e Michael Moore! O que recusamos não é a finitude, mas a morte antecipada! Ao buscamos saídas justas, coletivas e sustentáveis para a existência humana o que queremos é negar que nosso destino esteja irremediavelmente amarrado ao de um sistema predatório e destrutivo (que não apenas tem de morrer como tem de morrer logo) e isso não tem nada a ver com uma ilusão de imortalidade! E aí, pensando bem... Talvez até haja, além da porta, uma outra janela aberta para o ecofascismo, afinal quem foi mesmo que disse que a morte era o "destino de todo mundo", banalizando a carnificina produzida pelo coronavírus em Terra Brasilis?

É em virtude de todos esses absurdos que mostramos aqui que mesmo as eventuais críticas justas trazidas no filme - uma delas à mineração e produção de zonas de sacrifício - se tornam não apenas insuficientes, mas perdem o que há de mais importante na crítica: o empoderamento para a ação. A pergunta, como historicamente os movimentos socioambientais têm feito, é: "energia para quê, para quem e como?", ao que acrescentaria "quanta?".

Precisamos, sim, reconhecendo os enormes impactos da mineração e a insustentabilidade da gigantesca demanda energética atual, afirmar que energia para hospitais, escolas, produção de bens de consumo duráveis, compartilháveis e de fato úteis é uma demanda justa; que nesse sentido energia é direito humano (e também não-humano), isto é, é bem comum oferecido por um reator de fusão nuclear localizado a 150 milhões de quilômetros de nós com garantia de funcionamento por vários bilhões de anos à frente; que ela precisa ser distribuída de forma acessível, descentralizada e com mínimo impacto socioambiental, sem perdularismo.

E essa possibilidade é a que sempre defendemos aqui, no ecossistema de ideias ecossistêmicas: Ecossocialismo, Bem-Viver, Decrescimento Justo, Justiça Climática! Planet of the Humans, aplaudido por negacionistas, pela indústria fóssil, pela indústria nuclear e pela Breibart anda longe dessa alternativa e eu jamais o recomendaria como um documentário sério a fim de debater a crise climática e a questão energética.


Alexandre Araujo Costa é cientista do clima.

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