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Green New Deal, decrescimento e exterminismo: notas para depois de Trump

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Stencil diz: ‘o único crescimento sustentável é o decrescimento’. Créditos: Kamiel Choi/Pixabay

O debate entre decrescimento e Green New Deal mostra a impossibilidade de uma gestão tecnocrática da crise climática. Mas a discussão falha se não leva em conta a opção exterminista, abandeirada por Trump, assim como a possibilidade de pensar uma aliança entre decrescentistas e partidários do Green New Deal.

O debate entre Decrescimento e Green New Deal

Nos últimos cinco anos o debate público sobre ecologia foi animado por uma intensa polêmica entre dois enfoques aparentemente antagônicos sobre a transição ecológica que devemos enfrentar nas próximas décadas.

Simplificando um panorama complexo, de um lado do debate estariam os partidários do decrescimento. Isto é, de uma rápida e planejada redução da esfera material da economia que se antecipe e ajuste ao descenso do consumo energético, que necessariamente vamos experimentar ao ultrapassar os limites planetários. Para atingir isso, proclama-se uma transformação muito profunda de todo o marco civilizatório: imaginários, instituições, relações de produção etc.

Adiante, os partidários do Green New Deal, ou do Pacto Verde, defenderiam a estratégia de impulsionar políticas públicas ambiciosas que desenvolvam reformas estruturais em duas frentes: por um lado a modernização ecológica da economia como centro de gravidade de um novo modelo produtivo, com especial ênfase na descarbonização energética, mas não só (podia incluir também a agroecologia, a economia circular, o urbanismo...); por outro lado, e quase tão importante, um incremento substancial da distribuição de riqueza (ligada por exemplo a projetos como renda básica ou a redução da jornada de trabalho) carregaria, em paralelo, um aumento da regulação política sobre as lógicas de mercado.

Esta segunda parte é essencial para compreender a proposta do Green New Deal, e a diferenciaria da caricatura que tentou se fazer dele como uma nova marca do capitalismo verde. De fato, sem esta importante conotação redistributiva, não se entende que muitos autores se refiram a esta ideia em inglês: Green New Deal é um termo com uma má tradução para outros idiomas.

Nos EUA a proposta do Green New Deal faz referência a uma época histórica com forte conotação política: o New Deal de Roosevelt. Um momento que, além das sombras em termos raciais e de gênero, funciona na memória coletiva estadunidense como uma lembrança de que às vezes os de baixo podem ganhar.

Para situar-nos, Roosevelt impôs um tipo máximo de imposto às rendas altas de 90%. Compare esta conquista com a tímida política fiscal de qualquer governo progressista recente [No original ele usa o exemplo espanhol. Mas também pode servir para o Brasil e outros países de nuestra América].

A transição ecológica como disputa política

O debate Decrescimento – Green New Deal é sociopolítico. Sem dúvida atravessa avanços em meios científicos, como por exemplo que se fala nos limites das energias renováveis para o futuro. Mas é importante diferenciá-los: os debates científicos se dão em outros foros e com outras regras de jogo.

Saber se um mundo 100% renovável nos oferecia um mix energético de quase 47 terawatts [unidade de energia], como Mark Jacobson [professor de engenharia ambiental da Universidade de Stanford] defende de modo extremamente otimista, ou um de 1 terawatt, como analisa de modo muito mais pessimista Carlos de Castro [professor de física da Universidade de Valladollid e decrescentista], é um debate essencial. Dado que nosso atual metabolismo energético global necessita da ordem de 15 terawatts para funcionar e que a verdade científica basculhe em direção a um polo ou outro, vemos implicações políticas de primeira ordem. Marcaria a diferença entre ir além ou tirar o pé do acelerador.

Mas este conhecimento científico se constrói socialmente com uns procedimentos específicos de tipo acadêmico, através de publicações ou de debates polêmicos com mecanismos de revisão, e atendendo a certas precauções epistemológicas e metodológicas, que necessariamente ficam de fora da discussão sociopolítica. Estes funcionam melhor tomando os debates científicos como caixas pretas, parte do amálgama de possibilidades que oferece a ciência. E sobre isso, se disputam choques de interesses, valores, crenças, prioridades, apostas, custos e oportunidades. Assuntos sobre os quais as ciências naturais não têm muito o que nos dizer.

O interessante de constatar esta diferença entre debate científico e político é que nos mostra à perfeição à impossibilidade de uma solução tecnocrática para a emergência climática. A transição ecológica não é uma questão técnica, mas uma batalha política, social e cultural. As mudanças climáticas, ou a hecatombe de biodiversidade, são processos mediados por construções socioculturais. Não integram um sistema puramente biofísico que possa ser lido e controlado em termos cibernéticos a partir de um ponto de mando técnico. É preciso introduzir sempre uma capa de complexidade que remeta tanto à dimensão simbólica e interpretativa como a dimensão do poder.

Porque o aquecimento global ou a sexta extinção em massa se desenvolvem através de conflitos humanos, que enfrentam percepções culturais diversas, estruturas sociais contraditórias e interesses econômicos contrapostos. O faz, ademais, a partir de distribuições de poder historicamente herdadas que marcam profundamente o campo do possível. Se a temperatura global disparar, não te afetará igualmente se você for rico ou pobre, homem ou mulher, de um grupo cultural predominante ou subalterno.

A primeira consequência disso é que sem ciências sociais, sem filosofia e sem história, não vamos compreender nada de um fenômeno como a crise ecológica. A segunda, é que mais além das ciências sociais e humanidades, teremos também que aprender a discutir com olhares ideológicos que, longe de distorcer ou embarrar um diálogo supostamente neutro, são o coração do próprio debate.

O elefante na sala se chama Donald Trump

Esclarecendo a natureza sociopolítica do debate, entende-se melhor que esta é uma espécie de remake verde do velho debate entre revolução e reforma, que se deu (e dá) no movimento operário.

Os decrescentistas seriam os partidários de uma ruptura socioeconômica e política radical que estaria acelerada pelo declive material inevitável do capitalismo ecocida, por conta do seu certo colapso catastrófico. Os defensores do Green New Deal, advertidos da resiliência histórica do capital, poriam em dúvida a inevitabilidade determinista do colapso e centrariam suas apostas em um ‘possibilismo’ transformador mais continuísta. Assumiriam assim as possibilidades de avançar em uma transição ecológica socialmente justa sem uma emenda à totalidade capitalista.

Bem por considerá-la altamente improvável dada a correlação de forças, ou por aceitar a partir de certa humildade política que, após o fracasso revolucionário do século 20, hoje ninguém sabe o que pode ser um pós-capitalismo viável. O Green New Deal se marcaria, portanto, como mais um objetivo, em maior medida, do que uma espécie de horizonte pós-neoliberal ou pós-capitalista.

Tomada em sua dimensão sociopolítica completa, a polêmica entre Decrescimento e Green New Deal planta um debate necessário e interessante, mas adiantado ao seu tempo. E que sofre esse efeito que os anglossaxões chamam de “o elefante na sala”. Isto é, estar diante de uma verdade evidente, mas ignorada. E o elefante na sala deste debate se chama Donald Trump.

Um mês após as eleições estadunidenses [quando este artigo foi publicado originalmente], tudo parecia indicar que a lawfare trumpista não frutificaria e os democratas tomariam o poder presidencial nos EUA sem mais incidências que um último show especialmente histriônico por parte de Trump. Se esta transição de poder se dá sem incidências, e a ala esquerda do partido democrata consegue a influência necessária para que os EUA desenvolvam seu Green New Deal de alcance histórico durante várias legislaturas, o que, por sua vez, teria um importante efeito em todo o mundo.

Portanto, seria possível que o debate entre Decrescimento e Green New Deal se tornasse central. Mas esta sucessão de carambolas está muito longe de ser assegurada. Especialmente porque o trumpismo é um fenômeno que desborda da figura de Trump. E que seguirá influenciando como um ator chave ainda que Trump vire história.

Nesse ponto é necessário que se suponha o auge da extrema-direita no marco da crise ecológica. Trump, ou os Trumps que possam tomar o testemunho, e suas diversas sucursais (Bolsonaro, Órban, Duterte...) são uma realidade política extremamente bem afinada diante da escassez estrutural que introduz a crise ecológica. As forças políticas que hoje negam as mudanças climáticas não estão no fundo negando sua realidade, que é incontestável. Estão apostando por externalizar suas consequências.

Buscam evitar mudanças que mexam em privilégios às custas de carregar o sofrimento nos outros. O grande erro das posições colapsistas, que dão ao colapso ecológico a categoria de fato consumado, é que projetam uma imagem do colapso como um desmoronamento unitário da sociedade industrial.

Como coloca Peter Frase [autor de ‘Quatro Futuros: a vida após o capitalismo”, Autonomia Literária, 2020] “a verdadeira pergunta não é se a civilização humana pode sobreviver às crises ecológicas, mas se todos podemos sobreviver juntos de uma maneira razoavelmente igualitária”.

Isto é, umas partes do mundo podem não colapsar sob o custo do colapso de outras. E esta é uma pergunta para cuja resposta perversa a extrema direita deverá optar pelo negacionismo... Ou não.

Vimos no caso francês, quando Le Pen defendeu que as fronteiras são a melhor ferramenta contra as mudanças climáticas. A mescla de consciência ecológica e aplicação da ‘ética de bote salva-vidas’, pela qual se tem direito a impedir que um náufrago suba ao bote se este corre o risco de virar, é o caldo de cultivo perfeito para o êxito dos discursos excludentes. O silogismo é simples: se não há para todos, nosso “nós” nacional deve ir primeiro.

Em qualquer dos casos, com ou sem aceitação das mudanças climáticas por parte das forças reacionárias, resulta muito pertinente a observação de Peter Frase, que estirando um conceito proposto por Edward Thompson em sua obra ‘Exterminismo e Guerra Fria’, denomina exterminismo a este possível cenário futuro. Um cenário em que, como afirma Jorge Riechmann [poeta, sociólogo e ambientalista espanhol], o ecocídio traria consigo o genocídio.

Sem dúvida a administração Trump foi uma prova política onde se ensaiou alguns traços desta tendência ao exterminismo. Em seu caso, ademais, adereçado com um negacionismo climático militante e convencido, absolutamente vanguardista, que em parte se explica porque os EUA possuem em seu território combustíveis fosseis não convencionais que qualquer tentativa de mitigar as mudanças climáticas impediria explodir. Como afirma o filósofo francês Bruno Latour, com Trump saindo dos Acordos de Paris em 2017, o ecocídio adquiriu a categoria de projeto geopolítico explícito.

E ainda que hoje pareça que Trump possa passar à história com um asterisco, o certo é que durante estes últimos quatro anos o debate entre decrescimento e Green New Deal se deu como se o mainstream geopolítico que domina o mundo fosse o capitalismo verde. Mas isto não é verdade. Nem sequer o mainstream geopolítico foi o do business as usual capitalista convencional, o que nos entornos ecologistas é chamado de BAU, senão um tipo de HIPERBAU criminoso que tentou transformar o negacionismo climático na ideologia oficial da primeira potencia militar do mundo.

Enquanto o fantasma de Trump sobrevoa nossas eleições, e suas diferentes franquias podem ganhar ou influenciar na conformação de governos pelo mundo, a disjuntiva que a realidade impõe não é entre decrescimento ou Green New Deal, mas algo muito mais básico e muito mais triste: transição ecológica sim, ou não.

Contra o exterminismo e para o decrescimento, Green New Deal

Salvo que alguém queira apostar por vias de tipo eco-leninista, com a tomada armada do poder e a intenção de aplicar posteriormente uma ditadura ecológica como a que defendeu Harich [filósofo e jornalista alemão, desertou o exército nazista durante a II Guerra Mundial para juntar-se ao Partido Comunista], a transição ecológica será disputada em marcos democráticos pluralistas existentes nos quais podem ganhar eleições as forças políticas exterministas que, ainda, têm a seu favor o vento de uma antropologia neoliberal consolidada durante mais de 40 anos de revolução cultural exitosa. Que Trump seja finalmente um presidente de um só mandato, supõe uma primeira derrota da agenda exterminista e negacionista diante das mudanças climáticas.

Mas como poderemos consolidar esta tendência nos próximos anos?

Para esta tarefa urgente e perigosa, a confrontação entre Green New Deal e decrescimento pode resultar mais estéril do que frutífera. É evidente que uma economia pós-crescimento é um imperativo em um planeta finito em si, mas queremos que a sustentabilidade seja justa.

Também é obvio que o decrescimento não pode ser todavia um programa que articule uma política de maiorias. Essencialmente, porque é ainda uma ideia altamente especulativa sem ancoragem prática. Porque segue sendo culturalmente pouco desejável. E porque o crescimento econômico é uma lógica estrutural com fortes inércias, e não uma decisão política pura e simplesmente. Para intervir sobre isto, faz falta fazê-lo de modo colateral. Não existe nenhum freio de emergência benjaminiano que possa tirar da cartola um milagroso “governo decrescentista” e alçá-lo ao poder.

Sem minimizar os importantes choques entre ambas propostas, que vão dar em temas espinhosos e complexos como a mineração, neste momento de perigo exterminista cabe pensar em uma simbiose proveitosa para ambas propostas: o Green New Deal como mapa para a frente institucional, tanto quanto narrativa e programa que pode permitir conquistar e revalidar governos implicados em avanços úteis em termos de transição ecológica socialmente justa; o decrescimento como bússola de experimentação para a sociedade civil, que pode incidir ali onde o consenso produtivista é mais débil e pareça mais fácil transformar os imaginários.

Isto é, pondo em dúvida a correlação entre aumento do PIB e a vida boa. Viver com menos pode ser uma oportunidade para viver melhor. Difundir esse slogan, e sobretudo demonstrá-lo, é uma missão crucial que só o ativismo decrescentista (nos movimentos sociais, mas também na criação cultural, no empreendimento econômico, nos hábitos cotidianos) pode conseguir.

Toda vitória política é sempre precedida por vitórias culturais. O Green New Deal tem a seu favor várias conquistas culturais já muito consolidadas: que as mudanças climáticas são reais, que existe tecnologia que possa nos ajudar a mitigá-las, e que o protagonismo do Estado é fundamental para que um país seja também uma sociedade e não um mercado selvagem onde o mais forte come o mais fraco.

O programa do decrescimento tem ainda que conquistar evidências mais sólidas no imaginário coletivo. Sem dúvida pode fazê-lo. Minha aposta é que o marco mais favorável para isso consiste em ganhar posições nos interstícios de um Green New Deal que, entre outras reformas, também legisle para criar pequenas ilhas decrescentistas em um oceano produtivista, do mesmo modo que uma biblioteca ou um hospital públicos são pequenas ilhas de socialismo dentro de um oceano de capitalismo.


Emilio Santiago Muíño é professor de filosofia da Universidade de Zaragoza (Espanha).
Artigo publicado em espanhol no jornal El Salto Diario em 01/12/2020.
Traduzido e adaptado por Raphael Sanz, para o Correio da Cidadania.

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