Correio da Cidadania

Pantanal: “Se a sociedade não entender sua importância, episódios como o do ano passado se repetirão”

0
0
0
s2sdefault

Em setembro do ano passado entrevistamos Neiva Guedes, especialista em conservação ambiental e presidente do Instituto Arara Azul, sobre os cerca de 16 mil focos de incêndio registrados pelo INPE no Pantanal. O fogo queimou cerca de 15% da área total do bioma e gerou imagens de animais e planícies inteiras ardendo, que chocaram todo o planeta pouco meses após o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, insinuar a “passagem da boiada” na política ambiental. Dessa vez, às vésperas de uma nova estação seca na região, voltamos a falar com a pesquisadora para ouvi-la a respeito dos riscos de a região sofrer com novos e devastadores incêndios.

Sobre os efeitos dos incêndios de 2020, ela explica: “as relações entre as espécies, mesmo que não tenham sido tão afetadas num primeiro momento como no caso das araras azuis [objeto de pesquisa da entrevistada], acaba afetada no longo prazo. No Mato Grosso, onde elas usavam um grande dormitório, oito meses depois, dois terços ainda não voltaram pra lá. E esse dormitório não pegou fogo, os incêndios foram no entorno dele. Além disso, observamos que nessa recuperação há o domínio de algumas espécies sobre outras, ou seja, alterou-se a relação entre as espécies. Algumas espécies se beneficiam do fogo e outras não, e muito provavelmente estão morrendo e se perdendo. Há outras ainda que dependem de cooperação interespécies e também podem estar se perdendo”.

Neiva, que também é professora da Uniderp (Universidade para o Desenvolvimento do Estado e da Região do Pantanal), entre outros assuntos, também falou sobre as péssimas perspectivas para esse ano e lamentou que a ação humana não tenha passado por qualquer reflexão ou mudança, o que, segundo sua avaliação, pode ter consequências terríveis não apenas para a fauna e flora pantaneiras, mas sobretudo para a vida humana.

“Temos esse ano previsões de poucas chuvas, teremos um inverno seco. Do pouco que tenho visto andando pelo campo, como em fevereiro quando estive no Mato Grosso, estava extremamente seco num momento que deveria estar alagado. A vegetação que estava crescendo não era exatamente a que se esperava, vemos algumas espécies dominando o ambiente – e isso é muito preocupante. Não sabemos se haverá um banco de sementes para árvores que se perderam, principalmente de espécies que são frutíferas e alimentam a fauna. Infelizmente, temos pouca gente estudando isso. O prognóstico não é bom pra ninguém. Portanto, se não pensarmos de maneira diferente nossa relação com o meio ambiente, poderemos estar caminhando para um fim mais rápido do que se espera”.

Leia a entrevista na íntegra a seguir.

Correio da Cidadania: Em nossa última entrevista*, você falou a respeito a amplitude dos incêndios florestais e dos seus impactos na vida animal e vegetal da região. Como está a situação do pantanal cerca de oito meses após aquele pico de incêndios?

Neiva Guedes: O Refúgio Ecológico Caiman, onde trabalhamos, no pantanal sul, está aberto. Continua recebendo turistas, seguindo todos os protocolos para quem consegue uma autorização de viagem, que são muito rígidos a fim de evitar a covid-19. Assim, estamos trabalhando e temos gente vindo tanto de fora como de dentro do Brasil. Outros refúgios também estão operando.

O Coronel Angelo Rabelo, do IHP [Instituto Homem Pantaneiro], publicou em suas redes no início de abril sobre alguns pontos de calor no Pantanal. Já estão começando esses pontos de calor. Ele tem uma equipe que monitora isso, nós não temos tal monitoramento e vamos acompanhando o que eles publicam. Tentamos agir nas áreas em que atuamos com as araras-azuis minimizando os impactos. Ele monitora, faz o acompanhamento dos focos, principalmente na região da Serra do Amolar [próxima a Corumbá-MS], onde tem a rede de proteção da Serra do Amolar - uma faixa importante de terras sob seus cuidados e conservação.

Na região do Refúgio Caiman, onde teve um grande incêndio em 2019, olhando a paisagem por cima, você nem percebe que pegou fogo. Vemos grandes mamíferos, répteis, anfíbios e aves em grande quantidade. Porém, o que eu destaco é que talvez micro-organismos ou mesmo as relações entre as espécies tenham sido alteradas e isso só poderá ser melhor dimensionado com estudos de longo prazo.

No caso das araras-azuis, que são nosso foco de trabalho, pois estamos há mais de 30 anos no Pantanal estudando-as, o fogo impactou cerca de 50% dos casais que estavam reproduzindo naquele momento. Assim que o incêndio foi controlado, fizemos uma avaliação e chegamos a esse número. E além desses 50% afetados diretamente pelo fogo, todo o restante da população de araras foi afetada pelos efeitos dos incêndios a médio e longo prazo.

A fauna que sobrou, com a escassez de alimentos que houve após o fogo acabou apresentando uma significativa perda de filhotes e a diminuição da imunidade de alguns indivíduos, ocasionando doenças e mortes. Isso ainda no primeiro ano após os grandes incêndios de 2019. Apesar disso, as araras são extremamente resilientes, parece que uma falou pra outra: “vamos botar nossos ovos de novo”. Mesmo nos casos em que houve perda do ninho, dos ovos ou dos filhotes, elas refizeram tudo, numa quantidade até três vezes maior do que tínhamos visto anteriormente. Para se ter uma ideia, vimos de duas a três novas posturas [de ovos], ou seja, casais de araras que perderam ovos ou filhotes e voltaram a reproduzir ainda no mesmo ano. E nós lá fazendo manejo, colocando caixas, recuperando ninhos, ajudando filhotes que estavam feridos e tentando amenizar os problemas. Conseguimos assim dar uma recuperada e a estação reprodutiva de 2019 para 2020 acabou sendo melhor do que a anterior – que, por sua vez, havia sido a pior dos últimos 29 anos.

Correio da Cidadania: Que outras consequências vocês já podem relacionar com segurança aos incêndios de 2020?\

Neiva Guedes: No ano passado (de 2020 para 2021) as araras não fizeram aquela mesma postura de ovos como no ano anterior, e os efeitos dos incêndios sobre os ovos e filhotes foram muito mais drásticos, por conta de uma somatória de fatores: alterações climáticas, mudanças bruscas de temperatura, excesso de chuva em pouco intervalo de tempo, mortes e predação de filhotes. Tivemos até uma grande quantidade de ovos, mas o sucesso com o voo dos filhotes foi pequeno, bem menor que o esperado, mais ou menos no mesmo patamar da temporada anterior (2019 para 2020), que só foi melhor que em 2018 para 2019.

Os efeitos se prolongaram para além dos incêndios em si. Fomos monitorar ninhos um mês após os incêndios do ano passado em uma área no Mato Grosso, com mais de mil indivíduos que se agregam ali para dormir, e encontramos apenas 33% dos ninhos ativos, em relação aos anos anteriores. Ou seja, o fogo impactou muito mais lá, no norte do pantanal, do que aqui no MS no Refúgio Caiman.

As araras, num primeiro momento, nos sete meses após os incêndios, conseguiram se manter na fazenda, cerca de 700 [de 1000 que geralmente dormiam no local] araras ficaram lá até janeiro deste ano. Mas quando começou a faltar comida elas começaram a dispersar para outras áreas, pois a maioria das palmeiras de acuri, principal alimento delas, foi queimada. Além disso, o aumento das chuvas, alagando o campo e diminuindo a possibilidade de elas encontrarem os frutos no chão, foi outro motivo para dispersar. Muitas estão usando uma árvore distante 1,5km do dormitório original para dormir. Dois terços do grupo já estão dispersos e não sabemos para onde foram. E o que sobrou, cerca de um terço, não conseguirá se manter naquela área por falta de comida, o que as leva, por um instinto natural, a sair à procura. Se não tiverem problemas de doenças ou de baixa resistência, é possível que no futuro voltem. Esperamos que pelo menos um grupo pequeno permaneça, estamos inclusive tentando suplementar a alimentação com frutos da natureza, que é o que elas comem, para manter um grupo lá.

Resumindo, as relações entre as espécies, mesmo que não tenham sido tão afetadas num primeiro momento como no caso das araras azuis, acaba afetada no longo prazo. No Mato Grosso, onde elas usavam um grande dormitório, oito meses depois, dois terços ainda não voltaram pra lá. E esse dormitório não pegou fogo, os incêndios foram no entorno dele. Além disso, observamos que nessa recuperação, em que vemos a vida retornando, há o domínio de algumas espécies sobre outras, ou seja, alterou-se a relação entre as espécies. Algumas espécies se beneficiam do fogo e outras não, e muito provavelmente estão morrendo e se perdendo. Há outras ainda que dependem de cooperação interespécies e também podem estar se perdendo.

Correio da Cidadania: Qual a perspectivas para a temporada de queimadas que vem dentro de semanas? Como isso afetará o já agredido Pantanal?

Neiva Guedes: Quando falamos de incêndios provocados, é importante deixar claro que não são todas as fazendas que fazem isso. Sabemos que há alguns locais que fazem, alguns proprietários, e o que vemos de uma forma geral, independentemente da área, se é uma propriedade rural, uma terra indígena, uma comunidade ribeirinha etc., é que todos sem exceção sofrem com os incêndios. E indistintamente da espécie, se é vegetal, se é da fauna ou humano, todos sofremos com os incêndios e suas consequências.

Isso, somado à pandemia, gera uma condição muito triste. E se as pessoas, os seres pensantes na história, não mudarem de atitude, não vejo grandes perspectivas. Se não mudar, é a proximidade do fim, entende?

Temos previsões de poucas chuvas, de um inverno seco. Do pouco que tenho visto andando pelo campo, como em fevereiro quando estive no Mato Grosso, estava extremamente seco num momento que deveria estar alagado. Havia áreas com água, mas era pouca água. E a vegetação que estava se recuperando não era exatamente a que se esperava, vemos algumas espécies dominando a rebrota e o ambiente – e isso é muito preocupante. Não sabemos se haverá um banco de sementes para árvores que se perderam, para espécies que são frutíferas e alimentam a fauna. Infelizmente temos pouca gente estudando isso. Precisamos de mais estudos para entender essa questão.

O prognóstico não é bom pra ninguém. Portanto, se não pensarmos de maneira diferente nossa relação com o meio ambiente, poderemos estar caminhando para um fim mais rápido do que se espera.

Correio da Cidadania: O que deveria ser feito para evitar uma nova temporada histórica de queimadas e esse virtual colapso do ecossistema?

Neiva Guedes: Há um conjunto de medidas que vem sendo colocadas por ONGs e instituições, como o ICMBio, a Embrapa e algumas universidades que estão trabalhando juntos tentando elaborar essas medidas que podem evitar ou minimizar esses impactos dos incêndios, seja conscientizando as pessoas para não colocarem fogo em roças, montando brigadas anti-incêndio e treinando o pessoal para o combate dos incêndios caso necessário. São diversas medidas que estão sendo desenvolvidas entre todos os grupos envolvidos.

Todos têm de estar envolvidos. Os ribeirinhos têm de dizer o que podem fazer, o que acham que deve ser feito, o que podemos fazer para evitar os incêndios; o indígena que perdeu sua roça, seu medicamento, deve dizer de que forma podemos ajudar para que isso não aconteça mais; e o próprio proprietário rural que perdeu infraestrutura nesse fogo também precisa dizer o que pretende fazer de diferente e o que espera dos outros. Todos precisam contribuir com ideias para que possamos minimizar ou evitar os impactos.

Correio da Cidadania: É inviável, portanto, elaborar essas estratégias sem que todos os setores sejam ouvidos.

Neiva Guedes: Sim. É imprescindível trabalhar em conjunto, ouvindo todo mundo, as sugestões e demandas de todos. Não adianta eu chegar numa comunidade indígena, me apresentar como pesquisadora e ditar o que eles devem fazer, sem que eu conheça de fato as necessidades deles.

Correio da Cidadania: Logo após a nossa primeira entrevista, vimos o presidente dar declarações na ONU a respeito das queimadas, minimizando os danos ambientais e afirmando que comunidades indígenas ou tradicionais seriam os responsáveis pelos “poucos e normais incêndios”. Como pesquisadora atuante na área, a senhora desmente a declaração do presidente? Quais seriam as causas reais dos incêndios?

Neiva Guedes: Não vejo como uma afirmação correta, porque do que conheço e vi, os incêndios tiveram várias origens. Tanto incêndios naturais como na Serra do Amolar, quanto fogo que escapou de uma reserva indígena no MT, na divisa da Terra Indígena Perigara, como de outras propriedades rurais que faziam limpeza de campo e proprietários que usaram fogo para limpeza de áreas desmatadas. Assim, vemos que há uma somatória de fatores, mas é sempre mais fácil jogar a culpa para os menos favorecidos, como é o caso das comunidades indígenas e ribeirinhas. Isso não é certo.

Não concordo com as medidas tomadas pelo Ministério do Meio Ambiente e o governo federal, que tem retroagido na legislação ambiental e provocado reduções e alterações nos órgãos ambientais, muitas vezes impedindo-os de realizarem a fiscalização adequada.

Correio da Cidadania: O Brasil é hoje expoente mundial no que se refere à péssima gestão sanitária, ambiental e econômica. Como vê o momento?

Neiva Guedes: Acompanhando as notícias, vejo de uma forma muito triste. Lá fora nós viramos chacota, recebo ligações de algumas pessoas do exterior que ligam para debochar, desdenhar do Brasil. Lamento tudo isso que está acontecendo.

Estamos em um momento muito difícil com o descontrole da pandemia, a desacreditação da ciência etc. Quando temos um governo que não acredita na ciência, corta financiamento das pesquisas e não toma a diretriz para orientar e coordenar uma ação nacional contra a covid-19 é muito triste. Ver milhares de milhares de vidas sendo ceifadas, sonhos sendo interrompidos, famílias sendo desestruturadas, crianças perdendo pai e mãe, pessoas desempregadas, desesperançadas, passando fome... Fico entristecida por estar vivendo esse momento, sentindo-me de mãos atadas, e sem poder fazer muita coisa para mudar esse panorama.

O Brasil, que sempre foi um país respeitado e pelo fato de ter a maior biodiversidade do mundo, deveria ser um norteador deste patrimônio, mas está perdendo esta oportunidade porque ao invés de proteger retrocede na área ambiental.

Correio da Cidadania: Nesse meio tempo vimos os ministros Ricardo Salles e Tereza Cristina sumirem do noticiário. Por que acredita que isso tenha ocorrido, e como acredita que a gestão dessas pastas influencia no momento geral do país e, em especial no Pantanal?

Neiva Guedes: Essas pessoas sumiram do noticiário por estratégia das respectivas pastas. Sumiram dos noticiários, mas a caneta deles não sumiu, pois vemos que ela continua atuando.

Não acompanho tanto a Ministra Teresa Cristina, mas a questão das liberações de agrotóxicos é preocupante. Recentemente, publicamos um artigo sobre o envenenamento das araras azuis. Em 2014 recebemos três araras azuis que morreram por envenenamento de organofosforado Mevinsphos (Fosdrin) que são usados na agropecuária. Acredito que tenha sido um descuido, pois foi o próprio proprietário que nos levou as araras sem saber como tinham morrido, mas isso foi em 2014, faz tempo.

Hoje, quando se quadruplicou a liberação de agrotóxicos no Brasil, muitos deles proibidos em outros países, não podemos ter a menor noção do que está acontecendo com a fauna silvestre.

Correio da Cidadania: É possível superar esse momento tão trágico ignorando as questões socioambientais?

Neiva Guedes: Não será possível superarmos o atual momento, nem quaisquer outros que venham no futuro, se as pessoas não entenderem a importância do meio ambiente. Não é só para os bichos, não é só para as plantas, mas também para os homens. Sem entender isso, será impossível. Vejo que estamos em um momento de desarranjo e, com ele, precisamos nos rearranjar. Se a sociedade não entender a importância do meio ambiente, outros momentos como o que se desenha no Pantanal para este ano, além do que já vimos no ano passado, se repetirão.


Leia também:
Pantanal: “Já queimaram uma área tão grane que os bichos não têm mais para onde correr” – entrevista com Neiva Guedes publicada em 24 de Setembro de 2020.


Raphael Sanz é jornalista e editor do Correio da Cidadania.

0
0
0
s2sdefault