Correio da Cidadania

Nos bastidores de Glasgow

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Imagem: “Políticos discutindo aquecimento global”, de Isaac Cordal (Berlim, Alemanha)

Não há como negar o desencanto provocado pela Conferência Mundial do Clima (COP 26), realizada na cidade de Glasgow, na Escócia, no início deste mês de novembro. De um lado, há os que elogiam o compromisso de zerar o desmatamento, reduzir a emissão do gás metano, regulamentar o mercado mundial de carbono, e até a menção, no documento final de reunião, da necessidade de reduzir o uso do carvão e dos combustíveis fósseis, com vistas ao objetivo consensual de limitar o aumento da temperatura global em 1,5ºC até o final do século, em relação ao seu nível anterior à “era industrial”. Do outro lado, estão os que criticam a falta de avanço com relação ao tema da “justiça climática”, ou seja, a compensação financeira dos países mais pobres que já sofrem os efeitos do aquecimento global produzido pelo desenvolvimento dos países mais ricos, ou que não têm condições de abrir mão de seus produtos que contribuem para o aquecimento global, mas que são necessários – neste momento – para seu próprio desenvolvimento econômico.

Além disso, não foram definidas metas claras, nem foram estabelecidos ou criados mecanismos de controle e governança global da questão climática. Tudo isto é verdade, todos têm algum grau de razão, e não há como arbitrar esse debate de forma conclusiva. Mas o verdadeiro motivo do desencanto, ou mesmo da sensação de fracasso da COP 26, não tem a ver com seus acordos e compromissos técnicos e políticos; tem a ver com a falta de “densidade política” de uma conferência que foi esvaziada e não contou com nenhuma liderança capaz de se sobrepor à fragmentação e à hostilidade existentes no sistema internacional, marcado por um movimento simultâneo e paralelo de todas as potências que poderiam ou deveriam liderar esse grande projeto de “transição energética” e “revolução verde” da economia mundial.

Na verdade, a COP 26 foi organizada pela Inglaterra com o objetivo explícito de afirmar a liderança britânica, ou mesmo anglo-saxônica, desse grande processo de transformação ecológica, e com o objetivo não declarado de “transferir” para Glasgow a marca simbólica mundial dos “Acordos de Paris”. Este era o sonho do primeiro-ministro inglês, Boris Johnson, e de Alok Sharma, seu conterrâneo que presidiu a conferência.

Mas esse projeto foi abortado logo de partida pelo anúncio, em cima da hora, da ausência dos presidentes da China e da Rússia, e pelo boicote discreto da França e da própria União Europeia. O próprio presidente norte-americano, Joe Biden, fez questão de marcar distância com relação à figura do primeiro-ministro inglês, expondo sua fragilidade, seja por conta de seus problemas internos, ou de suas disputas atuais com a França em relação à Irlanda e à União Europeia, seja simplesmente porque a Inglaterra já não tem mais o poder e a liderança mundial imaginados por Johnson, nem mesmo entre as grandes potências, a menos que esteja apoiada pelos Estados Unidos. O que ficou difícil neste caso porque os Estados Unidos foram, em última instância, os principais responsáveis pelo esvaziamento da reunião de Glasgow, a despeito das boas intenções ecológicas de seu atual presidente.

Os líderes mundiais reunidos em Glasgow ainda não tiveram tempo de esquecer Donald Trump e sua decisão de abandonar os Acordos de Paris, que os próprios Estados Unidos haviam patrocinado e apoiado entusiasticamente em 2015. E a despeito do retorno estadunidense e do pedido de desculpas do presidente Biden, o trauma da ruptura ficou como uma ameaça permanente com relação ao futuro da participação norte-americana, sobretudo quando se tem em conta a possibilidade da volta de Donald Trump ou de algum outro líder de extrema-direita e negacionista nas eleições de 2024.

Nestas condições, quem apostaria na liderança de um país e de um presidente que só é capaz de assegurar a posição atual dos Estados Unidos, favorável ao acordo climático, por apenas mais três anos? Além disso, o próprio governo Biden sofreu uma grande perda de apoio interno depois de sua desastrosa retirada militar do Afeganistão, que foi feita, aliás, sem consulta ou comunicação aos seus principais aliados europeus. Tudo isso numa sociedade cada vez mais polarizada e radicalizada, e que tem manifestado, nas pesquisas de opinião pública, sua crescente rejeição à própria ideia da reeleição do atual presidente, o que talvez explique suas relações cada vez mais tensas e excludentes com sua vice-presidente Kamala Harris.

É nesse contexto que se deve avaliar a importância decisiva da outra grande “defecção ocidental”, da própria União Europeia, que teve papel muito menor do que o esperado na condução das negociações de Glasgow, fosse por suas disputas atuais com o primeiro-ministro “brexista” Boris Johnson, fosse porque ela própria está dividida e fragilizada internamente. A Alemanha segue negociando a formação de um novo governo, sem Angela Merkel e, portanto, com baixa capacidade de iniciativa e liderança; o mesmo se pode dizer da França de Emmanuel Macron, às vésperas de uma nova eleição presidencial, e em conflito aberto com a Inglaterra por questões derivadas do Brexit.

Deve-se agregar a tradicional fratura econômica entre os países do norte e do sul da União Europeia, agravada pelos efeitos da pandemia de Covid-19, à qual se soma a fratura ideológica entre seus países-membros do leste e do oeste europeu. Todos mobilizados, mas sem uma posição comum frente ao que a OTAN considera hoje uma ameaça militar russa, no Báltico, na Europa Central e no Mar Negro, e a ameaça de ressurgimento do conflito étnico e religioso dos Balcãs. Entende-se melhor desta maneira a passagem em surdina dos europeus por Glasgow e sua incapacidade atual de liderar qualquer coisa que seja em escala global.

No início de 2017, o presidente chinês Xi Jinping rompeu uma longa tradição contrária e compareceu ao Fórum Econômico Mundial de Davos, nos Alpes Suíços, para fazer uma defesa intransigente da globalização e da ordem econômica liberal mundial, logo depois do Brexit, vitorioso no plebiscito inglês de 2016, e na primeira hora do governo de Donald Trump. Em seu pronunciamento, Xi se oferecia explicitamente para liderar o projeto e o mundo liberal que havia sido tutelado pelos anglo-saxões e que agora estava sendo criticado e de certa forma abandonado pelos Estados Unidos de Donald Trump, e por seus fiéis aliados britânicos.

Quatro anos depois, Xi Jinping não compareceu à reunião de Glasgow, apesar de seu governo vir promovendo políticas cada vez mais ousadas no campo da “transição energética” e da criação de uma nova “economia verde” chinesa. Entre uma data e outra, entretanto, a China foi surpreendida pela “guerra comercial” iniciada por Donald Trump, e que se mantém até agora com o governo de Biden, que tem promovido um cerco militar à China cada vez mais intenso e agressivo, sobretudo depois da efetivação de seus acordos com Coreia, Japão, Índia e Austrália, e de sua decisão de levar à frente um acordo atômico conjunto com Inglaterra e Austrália.

A China vem respondendo à guerra comercial e ao seu cerco militar com a aceleração do seu desenvolvimento tecnológico-militar, e vem desacoplando progressivamente sua economia da norte-americana, sobretudo nos campos que envolvem tecnologias sensíveis. E é nesse contexto que se coloca o agravamento atual da disputa em torno de Taiwan e do controle naval do Mar do Sul da China. Esta tensão e hostilidade crescente explicam, em última instância, a ausência do presidente chinês na COP 26, cuja importância não foi reduzida nem disfarçada pela declaração conjunta, feita em Glasgow, pelos representantes da China e dos EUA, absolutamente formal, diplomática e sem maiores consequências práticas.

O interessante é observar que por um caminho transverso, para se defender, os chineses estão sendo obrigados a seguir uma cartilha “introspectiva” e de fechamento muito parecida com a que foi preconizada por Trump, e que segue sendo trilhada por Joe Biden. Mesmo assim, a China deve seguir, por sua própria conta, sua política de transição energética e econômica, com um gasto programado, para a próxima década, de 3,4 trilhões de dólares destinados à redução de suas emissões de gás carbono, mais do que a soma do que já programaram gastar juntos os Estados Unidos e a União Europeia no mesmo período.

A ausência russa em Glasgow teve um roteiro parecido com o da China, apesar de que neste caso o cerco externo já seja muito mais antigo e permanente, uma vez que a OTAN, que foi criada para enfrentar a “ameaça comunista” da URSS, se manteve depois do fim da Guerra Fria, agora para enfrentar a ameaça conservadora da Rússia nacionalista de Vladimir Putin. A Rússia enfrenta neste momento problemas internos, sanitários e econômicos, provocados ou agravados pela pandemia de Covid-19, e ainda vem enfrentando uma hostilidade crescente em sua fronteira ocidental, e não teria a menor condição de posar na foto oficial de Glasgow ao lado de seus principais acusadores e potenciais agressores.

De qualquer maneira, a Rússia nunca exerceu uma liderança mundial significativa com relação aos temas da “agenda ecológica”, sendo sabidamente uma megapotência energética, graças às suas reservas ilimitadas de carvão, gás e petróleo, além de energia nuclear. Apesar disso, segue mantendo sua posição favorável, seus objetivos e sua própria estratégia de descarbonização de sua economia e do seu território.

O ostracismo brasileiro

Por fim, não se pode deixar de destacar a importância da mudança da posição tradicional do Brasil e do seu desaparecimento do cenário diplomático internacional. Desde a realização da Rio 92, pelo menos, o Brasil vem ocupando papel central na luta contra a mudança climática mundial, não apenas pela importância de suas florestas, seu petróleo e seus rebanhos, mas sobretudo porque o Itamaraty sempre ocupou posição de destaque nas grandes negociações e acordos logrados nos últimos 25 anos.

Por essa razão, a nova posição negacionista do governo brasileiro pesou muito no desalento final de Glasgow, a despeito de alguns diplomatas brasileiros terem tentado mostrar uma postura mais positiva, inteiramente descreditada pela sua própria sonegação de informação durante a reunião, e pelas reiteradas mentiras do seu governo e do seu presidente com relação ao desmatamento recorde da Amazônia, nos últimos três anos de governo.

É bem verdade que na última reunião do G20, em Roma, foi possível perceber que a comunidade internacional já classificou e descartou definitivamente o capitão-presidente, como uma espécie de “abobado inimputável”, como ficou patente o seu pequeno “episódio” com Angela Merkel, e na sua conversa inteiramente sem nexo com Recep Erdogan, o presidente da Turquia. A impressão que fica é que a comunidade internacional já aceitou a ideia de esperar que esta figura seja devolvida ao seu circo particular, e que seus inventores retornem aos seus quartéis, para que o Brasil também possa voltar a ocupar o lugar que já havia conquistado no cenário internacional, em particular na sua luta contra o desmatamento da Amazônia e a favor dos Acordos de Paris, que foram assinados pelo Brasil. Mas o estrago em Glasgow já foi feito, e não há dúvida que o desaparecimento do Brasil também contribuiu para o esvaziamento da vontade política da COP-26.

Resumindo nosso argumento: o mundo está inteiramente fragmentado, tensionado e sem liderança, e não é possível que se constitua e consolide uma vontade política coletiva tão complexa como a que é requerida para levar à frente uma transição energética e econômica dessa magnitude, sem que exista uma liderança forte e convergente capaz de mover um mundo tão desigual e assimétrico, numa mesma direção coletiva.

Neste momento, o que existe não é multilateralismo, é estilhaçamento, e nesse contexto o tecido do sistema internacional tende a ficar hipersensível, transformando todo e qualquer conflito numa ameaça de guerra. É por causa desta tensão e desta hostilidade que está no ar que a Conferência de Glasgow passará para a História como um momento paradoxal, de grande consenso e, ao mesmo tempo, de grande frustração.

José Luís Fiori é professor titular de economia política internacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Fonte: Outras Palavras.

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