Ferrogrão Roadshow 2021 e a exploração histórica da Amazônia
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- Telma Monteiro
- 09/12/2021
Imagem: ABIFER
Em outubro e novembro, o ministro da infraestrutura Tarcísio Gomes de Freitas e equipe foram de Nova Iorque a Dubai com a missão de ofertar para investidores e operadores internacionais projetos de infraestrutura no Brasil.
O objetivo deste texto é mostrar como se deu a oferta da “cereja do bolo” da infraestrutura projetada pelo governo Bolsonaro: a Ferrogrão ou EF-170, com 933 km, ligará Sinop no MT ao porto de Miritituba, nas margens do rio Tapajós, no Pará. A partir dali a soja e o milho sairão em barcaças pela hidrovia que liga esse trecho do rio Tapajós ao rio Amazonas. Não me canso de repetir que a Ferrogrão poderá consolidar a divisão da Amazônia ao meio, afetando diretamente a bacia do Tapajós, rios, igarapés, floresta, unidades de conservação e os povos originários. A ferrovia não estará sozinha, pois o projeto, idealizado e aprovado, tem o traçado paralelo à já destrutiva rodovia Cuiabá-Santarém ou BR 163 que marcou a Amazônia e a bacia do Tapajós de forma irreversível.
Apenas 40m separam a ferrovia da rodovia, sem que os estudos dos impactos sinérgicos e cumulativos tenham sido realizados; ou a imprescindível consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas. Apesar dos impactos já absorvidos e não mitigados pelos povos das terras indígenas na região, a BR 163 tornou-se o fio condutor de mais uma previsível cicatriz acrescentando um mosaico de interferências como ocupação irregular, desmatamento e avanço do garimpo. O pretexto do governo é descongestionar a rodovia BR 163, mitigar as emissões provocadas pelo tráfego de caminhões, sem, contudo, comparar com a extensão dos impactos que a ferrovia acrescentará.
Não faltam artigos meus (*1) sobre os danos sociais e ambientais que resultariam da construção da Ferrogrão. E continuo afirmando minha tese de que na verdade a ferrovia não servirá apenas ao agronegócio, mas ao escoamento, também, do resultado da exploração mineral que está descontrolada na bacia do Tapajós; e para facilitar empresas na extração do minério disponível na Província Mineral do Tapajós.
O Roadshow do ministro
Enquanto se discute na justiça as irregularidades do projeto e seus impactos, em Nova Iorque, uma delegação brasileira (*2) fez reuniões com investidores e operadores internacionais durante os dias 5, 6 e 7 de outubro, e voltaram exitosos, com resultados concretos, segundo o próprio ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas. O Bank of America para a América Latina aprovou US$ 2 bilhões, o equivalente a R$ 11 bilhões, em créditos para investimentos em infraestrutura no Brasil, o projeto da Ferrogrão, a “cereja do bolo”, aí incluído. A informação é de Alexandre Bettamio do Bank of America, ao ministro, em reunião no dia 7.
Os investidores internacionais estavam representados pelo Compass Group, Artisan, Tarsadia, Bank of America, JP Morgan, Global Infrastructured Partners (GIP), Standard & Poors, Council of the Americas, XP, Goldman Sachs, Patria Investimentos (*3) e Macquaire. O gestores do Patria Investimentos se manifestaram estar 100% convencidos do mérito do programa da Ferrogrão, na verdade, o maior projeto de concessão ferroviária do Ministério da Infraestrutura. Segundo o ministro, a Ferrogrão “nasce com selo verde e possibilidade de acessar o mercado de títulos verdes (green bonds), por ter sido elaborado com a Climate Bonds Initiative (CBI), organização internacional (Reino Unido) que faz a certificação de iniciativas sustentáveis.”
A CBI é uma busca do governo brasileiro para tingir de verde um projeto que nasceu com muitos problemas ambientais e sociais. Lembrando que o processo da Ferrogrão está sob o crivo do Tribunal de Contas da União (TCU) devido às denúncias de irregularidades apontadas pelo Ministério Público Federal (MPF) provocado por organizações sociais. Além disso, o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu o processo, concedendo uma liminar até que se defina a legitimidade de dividir ao meio a principal unidade de conservação federal da bacia do Tapajós: o Parque Nacional do Jamanxim.
Mais ainda, segundo a Assessoria Especial de Comunicação Ministério da Infraestrutura, o Roadshow da Ferrogrão, principal projeto do conjunto de infraestrutura, marcou presenças importantes em Nova Iorque, como no dia 5 de novembro (2021), quando o ministro detalhou os projetos brasileiros para empresas como a Global Infrastructured Partners (GIP), Standard & Poors e integrantes do Council of the Americas. No caso da Council of the Americas contou com a participação de 12 representantes de fundos, bancos, escritórios de advocacia e duas agências de fomento de países asiáticos e com executivos da Global Infraestructure Partners (GIP).
Conforme o relato da equipe do ministro, foram apresentados, também, aos investidores do grupo Standard & Poors, os acordos de cooperação com a Climate Bond Inititative (CBI) e com a Agência de Cooperação Internacional Alemã (GIZ). Não faltou a menção às mudanças climáticas como forma de concepção do projeto da Ferrogrão.
“Nunca tivemos um programa de infraestrutura tão verde, com tanto efeito social”, afirmou o ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, após detalhar o projeto da Ferrogrão a investidores. Serão 900 quilômetros de extensão, R$ 8,4 bilhões de investimentos privados, ligando Sinop (MT) ao Porto de Miritituba (PA).
Continuando o programa na Europa, em Paris, Milão, Madri, e depois em Abu Dhabi e Dubai (concluído em 17 de novembro) dentro do painel “Oportunidades em Infraestrutura no Brasil” a equipe esteve com o grupo espanhol Sacyr, a holding italiana Atlantia e a operadora de terminais Aena.
Veja fala do Ministro da Infraestrutura, Tarcísio Gomes de Freitas, em encontro com embaixadores dos países membros da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), durante o roadshow em Paris, na França.
Dei nomes ao bois. Só nos resta incentivar uma frente de organizações internacionais para que essas empresas, investidores e bancos interessados na concessão da Ferrogrão tenham acesso aos estudos de impactos e aos depoimentos dos povos indígenas que demonstram a magnitude dos impactos sobre a Amazônia e seus povos. O ministério da Infraestrutura está mentindo deslavadamente aqui no Brasil e no exterior ao expor o projeto como “verde” e apresentar certificados equivocados para comprovar. Chegou a hora de denunciar uma verdadeira catástrofe em formação que trará sérios problemas à imagem das empresas que vão facilitar a expropriação e a destruição, que se propõe a dilapidar a maior floresta tropical do mundo.
Histórico de exploração da Amazônia
Não é preciso ir muito longe nas pesquisas para descobrir como a Amazônia foi explorada desde que Cristóvão Colombo esteve pela segunda vez no Novo Mundo, entre 1493 e 1495. Daí para a exploração da borracha, depois da descoberta da vulcanização, em meados do século XIX, foi um verdadeiro festival de ideias para “integrar” ou “povoar” ou “saquear” a Amazônia.
Nenhuma novidade, já que, atualmente, o objetivo continua sendo o mesmo. Para nossa surpresa, em pleno século XXI, em Glasgow, na COP 26, o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite, soltou a seguinte pérola: “onde tem floresta, tem miséria”. Boa, essa! Foi a cereja do bolo da ignorância que pairou como uma nuvem negra sobre a enorme delegação brasileira na COP 26. Glasgow ficou mais acinzentada.
O festival de besteiras do staff de Bolsonaro na Europa, durante a COP 26 e em visita, depois, aos Emirados Árabes, não ficou só nisso. Entre os excrementos que saíram da boca de Bolsonaro pode-se citar dois, em especial: “a Amazônia não pega fogo porque é úmida” e “a Amazônia continua igualzinha à época do descobrimento do Brasil”.
Dizer que o desmatamento da Amazônia nunca foi tão agressivo como no último ano, é pouco. O INPE divulgou uma nota técnica, ainda em tempo de ser divulgada durante a COP 26, onde apresentou os dados do desmatamento estimado de 13.235 km² ou 1.323.500 ha de corte raso no período de 01 agosto de 2020 a 31 julho de 2021. Isso significa um aumento de 21,97% em relação a taxa de desmatamento apurada pelo PRODES 2020 (INPE).
Pensando bem, e olhando a história, ainda antes do descobrimento do Brasil, fica claro que a Amazônia sempre foi o alvo da cobiça de investidores, empresas e governos. E continua sendo. Quando passou a febre da borracha com a construção da ferrovia Madeira-Mamoré que foi um verdadeiro estupro da floresta, aconteceu a Transamazônica já em tempos de Ditadura Militar no Brasil, anos 1960. A Transamazônica foi o descalabro que teve início no litoral brasileiro do Nordeste e enveredou para o oeste, sulcando e povoando a caatinga, o cerrado e a Amazônia; acompanhando o médio e alto rio Tapajós e criando o desastre para a floresta e os povos em direção às riquezas da Amazônia. “Integrar para não Entregar”. Que lema seria esse? Cravado no chão dos nossos biomas, no cerne da nossa biodiversidade, nas costas dos nossos indígenas, por homens de farda imbuídos de alimentar a falsa utopia das benesses da exploração colonizadora vinda de além-mar.
Levar riquezas e trazer impactos civilizatórios construiu a falsa ideia de que expurgar a miséria, abatendo árvores, seria a solução para o vazio demográfico. O “Integrar para não Entregar”, na verdade acabou por dar continuidade à exploração das riquezas da Amazônia.
Sim, entregamos e entregamos, no passado e no presente. Mas não parou com a Transamazônica. Continuou a fixação pela ocupação da gigantesca massa verde, joia do planeta, produtora de água e de vida. E nos anos 1970, a ideia era colonizar o norte do estado do Mato Grosso, aquela planura que podia produzir grãos para o mundo e que hoje bate recordes, não sem antes abater a floresta. O fim integracionista surgiu mais uma vez com o projeto da rodovia Cuiabá – Santarém, a BR-163, que cortou a Amazônia ao meio. Levou uma ideia civilizatória, agora, para o interior da floresta, para o interior de aldeias indígenas que foram compulsoriamente removidas para outro canto, onde não atrapalhariam a sanha integracionista da Ditadura Militar brasileira.
O efeito “espinha de peixe”, indelével nas imagens de satélite é agora visível, também, para os multimilionários-recém-desbravadores do espaço, uma curiosidade a ser comparada com as crateras da lua. O que está cortando ao meio todo aquele verdor? A marca cravada no solo da maior floresta tropical do mundo testemunhará um tempo indescritível, no futuro, do domínio do homem sobre a Natureza. A BR-163 é, agora, o fio condutor de outra aberração: a ferrovia EF-170 ou Ferrogrão que vai aproveitar o caminho aberto pela rodovia, multiplicando os impactos que ela já provocou, reduzindo unidades de conservação e terras indígenas já reféns do desmatamento, do garimpo, da mineração que acompanharam o integracionismo cínico e a ocupação predatória. Mas, o Brasil precisa escoar mais rápido os grãos do agronegócio predatório. Como? Avançando sobre a floresta e terras indígenas.
Os 933 km da Ferrogrão podem sair do papel a qualquer momento. O novo marco legal ferroviário foi implantado pelo governo Bolsonaro como forma de agilizar o processo. Agora a empresa, investidores escolhem como, quando e onde e apresentam o projeto da ferrovia que será autorizada como concessão. Como já acontece com os portos e aeroportos no Brasil: concessão, outorga por autorização para construir e operar ferrovias, ramais, pátios e terminais ferroviários. A Medida Provisória nº 1.065/21, escancara a liberdade de empresas transportadoras, operadores logísticos e indústrias de requisitar autorização ferroviária para construir e operar. O estudo técnico conterá a escolha do traçado, a localização e necessárias obras complementares. A responsabilidade de fiscalizar e fazer cumprir a legislação ambiental, nesse caso, pode sair das mãos do governo e passar para a iniciativa privada.
Notas
1. Leia mais artigos da Telma Monteiro clicando aqui.
2. Com a participação brasileira do ministro Tarcísio Gomes de Freitas, da secretária de Fomento, Planejamento e Parcerias do Ministério da Infraestrutura, Natália Marcassa, da secretária especial do Programa de Parcerias de Investimento do Ministério da Economia, Martha Sellier, e representantes da Apex-Brasil, do BNDES e do Ministério das Relações Exteriores
3. O Patria Investimentos é acionista da Hidrovias do Brasil um dos principais interessados na Ferrogrão; Hidrovias do Brasil tem também como acionistas fundos de private equity administrados pelo Patria Investimentos, o BNDES e a International Finance Corporation do Banco Mundial.
Telma Monteiro
Ativista sócio-ambiental, pesquisadora e educadora