Correio da Cidadania

Belo Monte matando o rio Xingu

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Foto: Arquivo pessoal Rodolfo Salm

Uma forte mortandade de peixes ao longo das últimas semanas no rio Xingu chamou a atenção da população de Altamira. Eventos desse tipo têm acontecido regularmente desde a construção da hidrelétrica de Belo Monte. A população, indignada, exigiu o posicionamento das autoridades. Em entrevista a uma televisão local (clique no link para ver o vídeo da matéria) expliquei como a flutuação do nível do reservatório de Belo Monte causa o apodrecimento do capim que cresce na beira do rio, roubando o oxigênio da água e matando os peixes asfixiados – um fenômeno que chamamos na biologia de eutrofização. Trata-se, sem dúvida alguma, de uma consequência direta da construção da hidrelétrica, que roubou do rio a energia do movimento das águas (para convertê-lo em energia elétrica), transformando o rio em um lago e alterando os ritmos naturais de cheia e seca do Xingu.

Apesar da previsibilidade e da obviedade das causas do fenômeno, o secretário de meio ambiente da Prefeitura, Ubirajara Junior, declarou à mesma reportagem, exibida pela Rede Record, que ainda não se pode atribuir culpa a ninguém pela situação. Segundo ele, antes que os responsáveis sejam penalizados é preciso a comprovação técnica da relação entre a mortandade de peixes e o lago de Belo Monte, o que depende do exame das amostras da água e dos peixes mortos coletados: “Em relação ao lago de Belo Monte, a gente não consegue precisar neste momento... a gente sabe que o reservatório influenciou em muitas características físico-químicas, mas a gente só consegue fazer determinada afirmação após fazer as análises... A gente sabe que isso acontece de forma sazonal e a gente precisa verificar o que está acontecendo e ver quem são os responsáveis para que a secretaria de meio ambiente tome as providências e medidas cabíveis contra estas entidades ou quem estiver causando este tipo de problema.”

Secretário, o senhor sinceramente tem dúvidas sobre qual entidade seria responsável pela mortandade de peixes do rio Xingu? É claro que é a Norte Energia, e sua causa foi a construção da hidrelétrica de Belo Monte. Não há qualquer dúvida quanto a isso.  A população altamirense tem memória clara de como nosso rio Xingu era saudável até a construção da barragem. Nós alertamos repetidamente para o fato de que Belo Monte transformaria o rio Xingu em um imenso lago podre e foi justamente o que aconteceu. Mas agora que a água do lago apodreceu e os peixes estão morrendo, como previmos, o senhor vem me falar em análises técnicas para determinar o culpado pela mortandade de peixes no Xingu? Não é necessária nenhuma análise. O cheiro da água já é suficiente.

Nesse contexto, o argumento da “análise técnica” serve apenas para encobrir o obvio, que se percebe com os sentidos, e diminuir o peso do conhecimento tradicional dos ribeirinhos e pescadores que não precisam de análise nenhuma para saber o que está acontecendo. Belo Monte está matando o rio Xingu. E as autoridades brincam de investigar os “culpados”. Vários dos biólogos que trabalham nas empresas que supostamente apontariam tecnicamente os responsáveis pelo desastre ambiental no Xingu são meus ex-alunos na Faculdade de Biologia da Universidade Federal do Pará. Enquanto alguns, para acobertar flagrantes da mortalidade, simplesmente retiram peixes mortos dos locais mais visíveis, como perto das pontes localizadas dentro da região urbana de Altamira [situação que flagrei e fotografei – a foto ilustra o artigo], outros analisam amostras que mostrarão aquilo que já sabemos. As amostras serão analisadas, mas os momentos críticos de mortandade de peixe terão passado antes que os resultados sejam divulgados. O assunto sairá da mídia e os responsáveis por Belo Monte não serão devidamente responsabilizados. Esse é o roteiro do que têm acontecido repetidamente desde que Belo Monte começou a trazer morte e degradação para o Xingu e para Altamira. Enquanto isso, cada vez mais, a população vai ficando sem o peixe para viver.

Belo Monte, junto com as grandes hidrelétricas do rio Madeira, foi o grande crime dos governos do PT. Quando Lula veio para Altamira defender a construção de Belo Monte, eu e meus colegas dos movimentos sociais fomos impedidos pela Força Nacional de nos manifestar no estádio de futebol da cidade contra a hidrelétrica. É irônico pensar que, do outro lado, boa parte daqueles que pediram a Lula a construção da barragem, estão hoje com suas caminhonetes adesivadas em apoio a Bolsonaro.

Volto a este assunto porque todos sabemos que Belo Monte foi pensada como a primeira de uma série de hidrelétricas no Rio Xingu. Além disso, nesse momento avançam projetos de construção de cinco hidrelétricas no Rio Tapajós. Como um eventual novo governo Lula vai se posicionar em relação a esses projetos que terminariam por destruir completamente uma imensa parte da bacia amazônica? Será que estamos seguros de que a tragédia não se repetirá nos próximos anos, mesmo com a volta de Lula ao poder? Seria o caso de esquecer esse assunto e nos concentrarmos apenas em derrotar Bolsonaro sem fazer perguntas desconfortáveis? Acho uma estratégia arriscada.

O Fiscal do IBAMA, um perfil anônimo do Twitter, importantíssimo na divulgação de crimes ambientais, já detectou um movimento das esquerdas desqualificando suas críticas a Belo Monte: “Toda a desqualificação, baseada em quem FINANCIA as ONGs ignora completamente o crime ambiental… tudo isso pra sustentar uma conspiração internacional contra o desenvolvimento do país. Sabe quem curtiria esse fio? HELENO. Claro q choveu SOMMELIER de esquerda, sustentando que eu era um alienado e besteiras assim.  Pro mané do chapéu de alumínio sobrou comemorar o meu block (UAU, parabéns campeão!) e claro incitar seus seguidores que engolem os hoax sem refletir (orgulho do Olavo) a nos atacar” (clique no link para ler o fio no twitter).

Em nome da luta contra o nazifascismo bolsonarista, estou decidido a dar novamente meu voto para Lula já no primeiro turno. Apesar dele e de outros quadros importantes do PT, como o Fernando Haddad, jamais terem reconhecido a catástrofe de Belo Monte.

Não exijo algo tão grande quanto uma autocrítica de Belo Monte. Não é necessário reconhecer que a obra foi um completo desastre, não apenas do ponto de vista ambiental, mas também de eficiência na produção de energia. Isso seria dar combustível para o inimigo. Mesmo discordando, me contentaria com uma declaração de que a obra teve seu papel naquele momento histórico, mas que não há mais espaço para grandes hidrelétricas na Amazônia.

Sem dúvida, precisamos fazer de tudo para derrotar o mal maior do bolsonarismo, que está devastando a Amazônia a todo vapor. Mas a comemoração da vitória de Lula seria mais doce se tivéssemos desde já a garantia de que a construção de grandes hidrelétricas na Amazônia por governos de esquerda é uma história passada, que não se repetirá.

Rodolfo Salm

PhD em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, formou-se em Biologia pelo Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo. Atualmente é professor da Universidade Federal do Pará.

Rodolfo Salm
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