Correio da Cidadania

Remoçãozinha de Carboninho (2): até quando continuaremos desviando do foco?

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Foto: MarcelClemens / Shutterstock.com

Clique aqui e leia a primeira parte do artigo.

Assim como a ORCA, usina de captura direta de carbono que entrou recentemente em operação na Islândia, também chegou amplamente ao noticiário o experimento que mostrou uma redução nas emissões de óxido nitroso através de um inusitado treinamento de vacas para "usarem o banheiro".

Sabemos que isso fica por conta do aspecto pitoresco, mas assim como no caso anterior, o espaço generosamente concedido à técnica na mídia (convencional ou não) contrasta com sua quase irrelevância do ponto de vista da grande questão colocada: reduzir radicalmente as emissões a fim de manter o aquecimento global abaixo de níveis catastróficos. Nesta segunda parte de "Até Quando Continuaremos Desviando do Foco?" abordaremos a questão da escala, desta vez em relação ao xixi das vaquinhas…

Primeiro, vamos tentar entender a questão. A pecuária tem uma relação muito forte com a questão climática, como já mostramos em dois artigos em nosso blog ("A Outra Bomba de Carbono", partes 1 e 2). São relativamente bem conhecidas as questões do "pum" das vacas e do gás metano (que, na verdade, sai em maior quantidade pela boca) produzido por fermentação entérica, bem como do desmatamento associado à expansão da fronteira agropecuária, embora seja um grande equívoco atribuir-lhe um peso global maior do que o da indústria de combustíveis fósseis.



Mas e quanto à urina do rebanho bovino? Quimicamente o que acontece é que a ureia, presente na urina, decompõe-se em CO2 e amônia. Como a quantidade de CO2 emitida nesse processo é relativamente pequena, a preocupação maior fica por conta da oxidação de parte da amônia, produzindo óxido nitroso. Este, como sabemos, é um gás de efeito estufa com potencial de aquecimento global muito maior, por conta de sua pequena abundância. Na escala de 100 anos, o aquecimento produzido por 1g de N2O emitido equivale àquele associado à emissão de 265g de CO2. A primeira parte do 6º relatório do IPCC mostra que as emissões de N2O contribuíram com um aquecimento de 0,10°C de 1750 a 2019.

Sendo as emissões de óxido nitroso relativamente relevantes, reduzi-las é algo importante para mitigação da crise climática. É aqui que entra o artigo científico, publicado na revista "Current Biology", sugerindo que, se 80% da urina do gado for coletada, como obtido no experimento de "treinamento", essas emissões de óxido nitroso podem ser reduzidas em mais da metade (algo da ordem de 56%).

Mas quão relevante são estas emissões de óxido nitroso em comparação com as emissões de outros gases pela pecuária? O Brasil, com seu rebanho bovino extremamente numeroso, de mais de 200 milhões de cabeças, e com dados de emissões detalhados, via SEEG, é um bom espaço amostral.



As emissões de N2O cresceram ao longo dos anos em nosso país e aquelas associadas aos dejetos em pastagens chegaram a 177,3 mil toneladas em 2019. Aplicando o potencial de aquecimento global, isso equivale ao efeito de cerca de 47 milhões de toneladas de CO2.

Mas a fermentação entérica associada a esse mesmo rebanho produziu mais de 13 milhões de toneladas de metano (CH₄) em 2019, e com um GWP-100 igual a 28, essa quantidade de metano equivale a 366 milhões de toneladas de CO2. Além disso, lembremos que a mudança no uso da terra é a principal fonte de emissão de gases de efeito estufa no Brasil e respondeu, em 2019 por 901 milhões de toneladas de CO2. Como as estimativas são de que em torno de 80% disso se deveu à expansão da pecuária (em sua ampla maioria bovina), podemos botar na conta dessa atividade econômica aproximadamente 721 milhões de toneladas de CO2.

De antemão, percebemos que as emissões de óxido nitroso, embora não sejam irrelevantes, são 7,8 vezes menores que as emissões de metano e 15,3 vezes menores que as emissões de dióxido de carbono, representando algo da ordem de 4% do total das emissões da pecuária. Se todo o gado brasileiro aprendesse a "usar o banheiro", reduziríamos as emissões em 26 milhões de toneladas de CO2-equivalente, mas esse valor é bastante pequeno face ao total de 2,175 bilhões de toneladas em nosso país em 2019.

E, assim como no caso da usina de captura direta de CO2, a informação da escala se perdeu. Justamente quando não podia se perder. De um modo geral, a mídia não se prestou ao serviço que deveria prestar: o de informar devidamente sobre a questão, incluindo as reais possibilidades de esse experimento produzir efeitos significativos no sentido de reduzir as emissões de gases de efeito estufa.

A BBC Brasil, por exemplo, mencionou corretamente que a pecuária é responsável por uma parcela significativa das emissões, mas não mencionou que o óxido nitroso produzido a partir da amônia gerada pela urina é na verdade uma fração bem pequena dessas emissões. A Super Interessante falou do potencial dessa técnica em "ajudar a desacelerar o aquecimento global", mas também não se preocupou em avaliar a dimensão dessa "ajuda". A manchete do UOL também sobrevaloriza o impacto da pesquisa ao estampar "Mudanças climáticas: cientistas treinam vacas para usar banheiro contra aquecimento global" e a Istoé Dinheiro foi numa toada parecida.



A falta de um olhar crítico ficou patente. Do ponto de vista da redução das emissões, mudanças superficiais como "treinar vacas" tem efeito muito pequeno mesmo que aplicadas em grande escala, em comparação com o restante das emissões da agropecuária. Ora, sabe-se que os alimentos de origem animal têm uma "pegada" várias vezes maior que os de origem vegetal, respondendo pela maior parte das emissões do sistema alimentar (58%). Dai, a defesa de uma dieta a base de plantas ou, no mínimo, da redução substancial do consumo de carne (especialmente de animais ruminantes) é a única forma de termos um impacto efetivamente substancial nessas emissões.



Mas o que tem acontecido ao longo dos últimos anos vai na contramão do que é necessário. O consumo anual de carne se expandiu de 71 milhões de toneladas em 1961 para 341,2 milhões de toneladas em 2018, com o consumo per capita tendo quase duplicado nesse período, saltando de 23,1 kg por pessoa por ano para 43,2 kg. Para além da questão climática, sabe-se que a redução das áreas de habitat da vida silvestre nas últimas décadas tem relação direta com a expansão do consumo de produtos de origem animal. Nada menos que 77% da área ocupada pela agropecuária são utilizados como pasto ou monoculturas para produção desses alimentos, enquanto 23% se destinam ao plantio de alimentos humanos de origem vegetal. E mesmo ocupando 3,6 vezes mais área, os produtos de origem animal nos fornecem apenas 18% das calorias e, excluindo pescado, 37% das proteínas, segundo a FAO.

A conclusão a que chegamos é que, por mais que soe exótico e tenha apelo como algo pitoresco, a ideia de "vaquinhas educadas" não representa contribuição substancial para resolver a crise climática e se a mídia (tradicional ou alternativa) deseja informar corretamente sobre a crise climática, deve dar peso proporcional ao que realmente importa: a descarbonização profunda dos sistemas produtivo, alimentar e energético, incluindo o necessário debate da nossa dieta. Assim como no tópico da captura de carbono, não podemos supervalorizar o periférico e perder o foco do central.

Alexandre Araujo Costa é Ph.D. em Ciências Atmosféricas, professor titular da Universidade Estadual do Ceará.
Retirado do Blog do autor.

 

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