Correio da Cidadania

“Nada está descartado”: o que diz o delegado que preside o inquérito sobre Bruno e Dom

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Fonte: Agência Pública

Atalaia do Norte (AM) – O delegado da Polícia Civil Alex Perez, que em Atalaia do Norte (AM) preside o inquérito sobre o assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista Dom Phillips, está confiante sobre as provas colhidas a respeito da autoria do crime. O mesmo ele não diz sobre um suposto mandante dos assassinatos.

“Aqui a gente está preocupado em concluir, porque temos prazo, essa situação do homicídio, da execução. Talvez eu peça a prorrogação [do inquérito], pela complexidade. Faltam os laudos ainda. Mas essa segunda fase eu não sei se vai ficar com a gente. Seria um novo inquérito, desdobraria [o primeiro]”, disse o delegado em entrevista exclusiva à Agência Pública na delegacia de Atalaia.

Hoje a investigação se concentra nas figuras dos pescadores e caçadores Amarildo da Costa de Oliveira, o “Pelado”, Jeferson da Silva Lima, conhecido como “Pelado da Dinha”, e Oseney da Costa Oliveira, o “Dos Santos”, irmão de “Pelado”. Os dois primeiros confessaram o crime, cometido no último dia 5, e apontaram à polícia o local exato onde os corpos foram enterrados perto da calha do rio Itaquaí. A polícia tem um prazo inicial de 30 dias, a contar de 5 de junho, para concluir a investigação. O prazo pode ser renovado diversas vezes por igual período por ordem judicial.

Uma eventual segunda etapa das investigações destinada a apurar um mandante poderá ficar sob a responsabilidade da Polícia Federal. Mas, a rigor, a Polícia Civil também pode abrir um inquérito a qualquer momento.

“Se eu tiver indícios e elementos suficientes — de gente que fale, porque as pessoas não falam dele [suposto mandante]. Já tentei buscar elementos para a gente instaurar um inquérito, porque eu não posso instaurar um inquérito sem base nenhuma. Mas a partir do momento em que eu tiver em mãos elementos suficientes para instaurar um inquérito, eu instauro. Porque todo mundo comenta, mas não tenho aqui, no papel, formalizado”, disse o delegado.

A Agência Pública indagou quais elementos disponíveis à polícia teria até o momento que apontariam para um suposto mandante. O delegado respondeu que “muito pouco”, um material “insuficiente”. A reportagem apurou que um dos presos, o “Pelado da Dinha”, mencionou que transaciona com uma pessoa o produto da pesca clandestina e ilegal, mas não associou esse nome aos homicídios. “Pelado” não mencionou o empresário, apenas disse genericamente que comercializa o pescado em Tabatinga e Benjamin Constant.

“O Jeferson comentou que há poucos anos esse [empresário] compra essa mercadoria e financia. Falou pouco, um parágrafo, mas comentou. É o que todo mundo sabe, é voz corrente, que realmente compra esse material e financia. Em troca do financiamento, tudo que é extraído, que é pescado, caçado, é levado para ele como forma de compensação. O pescador deve ganhar algum valor, uma porcentagem. Ou parte do pescado. Tanto que eles mesmos [os presos] falam que vendem em Benjamin Constant. Aqui em Atalaia é muito pouco porque eles falam que é fraco [o movimento do comércio]. Aí eles vão para Benjamin, mandam para a Colômbia também.”

Essas citações, contudo, ainda são genéricas e inconclusivas, segundo o delegado, e não justificariam a abertura de um inquérito próprio. O delegado reiterou que primeiro pretende encerrar o inquérito sobre a autoria. Mas, “diante de novos fatos, se chegarem aqui para nós da delegacia de Atalaia, a gente vai investigar”. Segundo o delegado, para a polícia “nada está descartado”.

“A gente também tem esse interesse [de uma segunda investigação sobre suposto mandante], só que agora a gente não pode fazer duas coisas boas ao mesmo tempo. Fica difícil. O risco é acabar gerando uma nulidade, por exemplo, de um ato nosso aqui. Porque a gente está tendo o maior cuidado em tudo que estamos fazendo. Para evitar a nulidade num eventual Tribunal do Júri. Se anular um ato, e aí? Então a gente está tentando fazer um negócio bem amarradinho, se cercando de todas as cautelas para a gente entregar um trabalho bem [feito].”

A hipótese de um mandante pode dar início a uma segunda investigação, mas só depois que a primeira for encerrada, reiterou Perez. A prioridade da polícia nesse momento é terminar a apuração do crime em si, por meio das perícias da PF e da solução das contradições entre os depoimentos dos presos – detalhes que, para a polícia, não afetam a conclusão final do inquérito.


Ainda está indefinida a hipótese de uma investigação própria sobre suposto mandante do assassinato de Bruno e Dom, de acordo com o delegado Alex Perez. José Medeiros/Agência Pública

As principais contradições

As principais contradições até aqui são, de acordo com o delegado: quem, entre “Pelado” e “Pelado da Dinha”, atirou em quem no barco conduzido por Bruno e em que ordem; em que momento Dom Phillips foi morto; o número exato de cartuchos deflagrados (“Pelado” primeiro falou um tiro, depois três cada um); como foi a exata dinâmica do assassinato; a distância em que os disparos foram dados; o destino das armas usadas por “Pelado” e “Pelado da Dinha”; quantas e quais são as pessoas que ajudaram a ocultar os corpos.

Outra contradição entre os dois presos é quem convidou quem para entrar no barco na comunidade de São Rafael a fim de perseguir e matar Bruno e Dom, quando o indigenista e o jornalista passaram de barco pela comunidade na manhã do domingo, dia 5. “Pelado” diz que a iniciativa da perseguição partiu de “Pelado da Dinha”, que, entretanto, diz o contrário.

Para tentar resolver essas contradições, a polícia tem duas ferramentas: uma acareação entre os dois acusados e os exames periciais. Uma terceira medida será uma ampla reconstituição dos assassinatos no leito do rio Itaquaí com a participação dos três presos e de algumas testemunhas. Isso deverá ocorrer com apoio da Polícia Federal ainda nesta semana, segundo apurou a Agência Pública.

As perícias poderão ajudar a explicar a trajetória dos disparos dados pelos dois acusados e a dinâmica do ataque. O delegado Perez trabalha com duas hipóteses principais. Na primeira, Bruno é atingido por “Pelado da Dinha” pelas costas, perde o controle do barco, mas ainda consegue sacar a pistola que costumava carregar consigo. Essa arma desapareceu. Um dos acusados afirmou que Bruno, já atingido pelo primeiro tiro, bateu o braço em vários galhos na margem do rio e, com isso, a pistola se soltou de sua mão e caiu no rio.

A segunda hipótese é que o primeiro tiro partiu de “Pelado”, que depois deu uma volta com o barco e conseguiu atingir Bruno de frente, com mais dois tiros. Em seguida ou simultaneamente, Dom foi morto.

De qualquer forma, os depoimentos são coincidentes em indicar que Bruno foi atingido de surpresa, sem chance de reação, a curta distância. A suposta reação de Bruno, se de fato ocorreu (não há nenhuma prova disso até o momento), só vem depois do primeiro tiro que parte do barco onde estavam “Pelado” e “Pelado da Dinha”.

Há divergências sobre a distância do disparo efetuado contra Bruno. “Amarildo fala que foi um pouco mais distante. Já o outro fala que foi bem mais próximo, fala 3 ou 4 metros. Por isso que quando ele [Bruno] levou [o tiro], a lancha se desgovernou e avançou na margem do rio. E antes de chegar à margem do rio, Amarildo diz que Bruno conseguiu sacar a arma e efetuar alguns disparos. E a arma do Bruno? Segundo a versão do Amarildo, enquanto a lancha estava se dirigindo para a margem do rio, aquela galhada das árvores provavelmente teria batido na mão do Bruno e a arma teria caído [no rio]. Perguntamos mais de 30 vezes, ‘e a arma do Bruno?’. A versão do Amarildo é essa”, explicou o delegado.

Embora a Polícia Federal tenha feito inúmeras perícias, incluindo uma versão em 3D, não é garantido que elas consigam elucidar toda a sequência da perseguição, dos tiros e da ordem exata dos assassinatos. De qualquer forma, isso pouco muda em relação ao ponto fundamental do inquérito.

“Se a perícia não for completamente conclusiva em relação a essa dinâmica, quem acertou quem, os dois [presos] vão ser indiciados. Até porque a Justiça procura aplicar a pena de acordo com a sua participação, a individualização da pena, como se chama. Mas nesse caso, se não concluir, na minha opinião [pouco muda]. Ambos confessam, há uma materialidade, os corpos foram encontrados, foram indicados por um dos dois, o outro também conta detalhes do que aconteceu. É pouco provável que escapem das acusações. E tem as provas técnicas ainda, que a gente está aguardando. São muitas. Tem a perícia da primeira lancha do Amarildo, onde foram encontrados vestígios de sangue, era bastante sangue, eu vi. Tem a perícia dos corpos. A gente arrecadou bastante material ontem [sexta-feira, dia 24].”


1 de junho - O indigenista Bruno Pereira e o jornalista Dom Phillips se encontraram na cidade de Atalaia do Norte (AM), na TI Vale do Javari. O objetivo da viagem era fazer reuniões em cinco aldeias para falar sobre a proteção do território indígena. Avener Prado/Agência Pública


4 de junho - Na noite anterior ao desaparecimento, Bruno e Dom dormiram na casa de Raimundinho, uma construção simples na margem do rio Ituí. Avener Prado/Agência Pública


5 de junho - Bruno e Dom subiram o rio Itaquaí com destino a Atalaia do Norte. Os dois fizeram uma parada na comunidade ribeirinha São Rafael, para visitar um líder comunitário conhecido como Churrasco. José Medeiros/Agência Pública


Como o encontro com Churrasco não aconteceu, Bruno e Dom saíram de barco com destino a Atalaia — foi a última vez que foram vistos. Avener Prado/Agência Pública


Com o desaparecimento de Bruno e Dom, ainda no dia 5, duas equipes da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari (Univaja) saíram à procura dos dois rio acima. José Medeiros/Agência Pública


7 de junho - Após pressão de indígenas e familiares de Bruno e Dom, Marinha, Funai, Polícia Federal e Força Nacional se envolveram ativamente nas buscas. Avener Prado/Agência Pública


Clima de apreensão dominou Atalaia do Norte. Reprodução/TV Globo


8 de junho - A polícia prendeu o primeiro suspeito de envolvimento no desaparecimento de Bruno e Dom. Amarildo da Costa de Oliveira, conhecido como Pelado. Avener Prado/Agência Pública


Entidades indígenas afirmaram a relação entre a pesca ilegal na região com o desaparecimento de Bruno e Dom. O indigenista atuava com a proteção do território do Javari, coibindo a prática. Avener Prado/Agência Pública


12 de junho - Equipes de busca encontraram pertences pessoais de Bruno e Dom. O material estava próximo à casa de Amarildo, vulgo Pelado. Avener Prado/Agência Pública


13 de junho - Indígenas organizaram ato e exigiram segurança e o fim das invasões na Terra Indígena Vale do Javari. Avener Prado/Agência Pública


14 de junho - O segundo suspeito, Oseney da Costa de Oliveira, conhecido como "Dos Santos", foi preso. Ele é irmão de Amarildo da Costa de Oliveira, vulgo Pelado. Avener Prado/Agência Pública


15 de junho - Equipe de busca encontrou remanescentes humanos em local indicado por Pelado. Restos mortais chegaram em Atalaia do Norte e foram direcionados à Brasília, onde ocorreu perícia a fim de confirmar que os corpos eram de Bruno e Dom. Avener Prado/Agência Pública


16 de junho - Padres conduziram procissão de corpus christi em Atalaia. A manifestação religiosa teve início em frente a delegacia e percorreu as principais ruas da cidade, terminando na igreja matriz – os suspeitos, que seguem presos na delegacia, ouviram tudo. José Medeiros/Agência Pública


17 de junho - Servidores da FUNAI protestaram por justiça por Bruno e Dom, fortalecimento do órgão e proteção aos povos indígenas. José Medeiros/Agência Pública


18 de junho - Um terceiro suspeito de envolvimento no assassinato de Bruno e Dom, Jefferson Lima da Silva, vulgo “Pelado da Dinha” foi levado para audiência de custódia no Fórum de Atalaia do Norte. José Medeiros/Agência Pública


19 de junho - A embarcação de Bruno e Dom foi encontrada pela Marinha na altura da comunidade Cachoeira, no leito do rio Itaquaí e direcionada ao porto de Atalaia, onde passou por perícia. Avener Prado/Agência Pública


19 de junho - O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, visitou Tabatinga. Lá, fez uma série de reuniões com membros da Polícia Federal, do Ministério Público Estadual, da Secretaria de Segurança Pública e da Procuradoria Geral da Justiça do Amazonas e de uma comissão de lideranças indígenas da Univaja. José Medeiros/Agência Pública


21 de junho - Indígenas Kanamari fizeram uma homenagem na sede da Univaja, em Atalaia do Norte (AM), ao indigenista Bruno Pereira e ao jornalista Dom Phillips

Motivação do crime

Sobre a motivação do assassinato considerada até o momento no inquérito, o delegado repetiu a linha antecipada à Agência Pública pelo principal investigador da Polícia Civil que atua no caso, a de que Bruno Pereira “atrapalhava” os negócios de “Pelado” e seus associados.

“A situação do conflito, a gente começou a se aprofundar nesses detalhes do conflito existente entre Amarildo, entre os familiares e Bruno. Que Bruno, segundo o depoimento deles, atrapalhava as negociatas, o negócio, a venda dos peixes. Que Bruno complicava lá, quando eles atavam as malhadeiras [equipamento para pesca], Bruno ficava passando com a canoa para dificultar, para o peixe não entrar, uma série de situações. E isso já vem de muito tempo, e isso gerou um certo inconformismo neles que em princípio gerou essa, essa… Quero usar a palavra correta. Essa reação desproporcional que culminou na execução dos dois.”

O delegado disse que não pretende “romantizar nada” e que irá “à essência da coisa”.

“Ele [Bruno] fiscalizava e eles [presos] alegam que eram prejudicados. Bruno fiscalizava, fazia o papel dele, e isso incomodava. Porque era a maneira deles [presos] se sustentarem. Até com uma certa qualidade de vida, diferente de outros ribeirinhos, que não têm praticamente nada.”

Perez também reconhece que havia ameaças contra o indigenista, que “os relatos indicam que eles [Bruno e indígenas] vinham fazendo essas denúncias há muito tempo” e que as denúncias eram feitas por organizações não governamentais.



Rubens Valente e José Medeiros são jornalistas.

O especial Vale do Javari — terra de conflitos e crime organizado é uma série de reportagens da Agência Pública com apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF) em parceria com o Pulitzer Center

Reportagem originalmente publicada na Agência Pública em 27 de junho de 2022.

 

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