Belo Monte “praticamente quebrou a resistência dos povos indígenas da região de Altamira”
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- Patricia Fachin, IHU
- 19/05/2023
A Usina Hidrelétrica de Belo Monte, localizada no Rio Xingu, Pará, na Bacia hidrográfica do Rio Amazonas, inaugurada oficialmente há sete anos e em plena operação há quatro, ainda não cumpriu todas as condicionantes atreladas à possibilidade de construção e funcionamento da obra e segue operando, mesmo com a licença de operação vencida desde 2021.
Segundo Rodolfo Salm, que vive em Altamira desde 2008 e acompanhou o processo de instalação da obra e os impactos socioambientais gerados pelo empreendimento, as condicionantes pendentes dizem respeito à criação do Território Ribeirinho, que visam à realocação de comunidades no entorno da Volta Grande do Xingu; à resolução de projeções técnicas que geraram problemas ecológicos, como a falta de água na Volta Grande, que impede o processo de reprodução dos peixes; e à desintrusão das terras indígenas que estão ocupadas por invasores. Em resumo, diz, Belo Monte continua “um abacaxi político a ser resolvido”.
Na entrevista a seguir, Salm explica os principais problemas socioambientais gerados pela hidrelétrica, menciona as atuais disputas políticas envolvendo grupos da extrema-direita e da esquerda em torno do cumprimento das condicionantes pendentes, e assegura que Belo Monte “quebrou a resistência dos povos indígenas”. “Belo Monte está vencendo essa resistência e ninguém garante que, num próximo governo, seja lavado adiante o plano original de construir uma série de barragens no rio Xingu, que funcionariam como grandes caixas d’água. O problema desse plano é que, ao construir hidrelétricas ao longo do rio Xingu, são causadas perturbações ecológicas que vão gerar imensos desmatamentos e terminarão por diminuir a quantidade de água que passa pelo rio Xingu. No final, não vai ter nem floresta nem rio nem geração de energia”, afirma.
Segundo ele, embora o tema ambiental esteja na pauta do governo federal, hoje, o que está sendo discutido no país é “a conversão, em larga escala, de áreas de pastagem em produção de soja. A turma foi para a China na comitiva do Lula para negociar como vender o Brasil em forma de soja para a China. Ninguém está preocupado com o meio ambiente”, adverte.
Salm também questiona a demora no combate ao garimpo ilegal em terras indígenas, apesar da recente atuação do governo federal nas terras do povo Yanomami. “Tem gente que diz que o governo fez isso [intervenção na área yanomami] estrategicamente; eu acho que foi malandramente. A estratégia foi focar na desintrusão do território yanomami e está todo mundo fingindo que só tem garimpo na terra – não só o governo, mas também a imprensa. Ninguém mais fala do garimpo nas terras dos povos Kaiapó e Munduruku; só se fala no garimpo yanomami, como se não tivesse garimpo em outros lugares. E, hoje, parece que o garimpo na terra dos Yanomami está caindo no esquecimento, sem que a situação fosse resolvida, porque ainda tem garimpo funcionando lá dentro”, critica. E acrescenta: “Não acho que as forças do Estado, aquelas possíveis de serem utilizadas para combater o garimpo, estejam todas concentradas em Roraima. No Pará, vejo a Força Nacional parada. Outra força fundamental é o Exército, que custa uma fortuna ao país e não está fazendo coisa alguma. O Exército precisa desmontar esses garimpos não como empresa, como funcionaram no governo Bolsonaro. Falta firmeza para lidar com a situação”.
Rodolfo Salm (Foto: Arquivo pessoal).
Rodolfo Salm é graduado em Ciências Biológicas pela Universidade de São Paulo – USP e doutor em Ciências Ambientais pela Universidade de East Anglia, da Inglaterra. Leciona na Universidade Federal do Pará – UFPA, onde desenvolve o projeto “Palmeiras como instrumentos de recuperação das margens do rio Xingu – desenvolvimento e recuperação florestal na Amazônia”.
Confira a entrevista.
Semana passada, 23-03-2023, foi realizada uma audiência pública com uma comissão do Senado, em Almaria, sobre a criação do Território Ribeirinho, que é uma condicionante da construção de Belo Monte. Em que consiste a proposta de criação do território ribeirinho? Quais os impasses em torno da discussão?
Rodolfo Salm: Os ribeirinhos são, provavelmente, o povo mais impactado pela construção de Belo Monte porque, à época, houve um esforço muito grande para evitar o alagamento das terras indígenas. Houve muita atenção para que o escândalo do impacto sobre os indígenas fosse minimizado, porém não houve a mesma preocupação com os ribeirinhos. Boa parte deles foi desalojada antes do início da obra, de forma desnecessária, porque o enchimento do lago poderia ter acontecido sem implicar a remoção deles. O processo de remoção dos ribeirinhos provavelmente foi associado a questões de especulação imobiliária.
A criação do Território Ribeirinho foi concebida como uma condicionante de Belo Monte e até hoje não foi cumprida, assim como várias outras. O projeto visa trazer de volta os ribeirinhos para beira do lago, mas de uma forma unida, para que não fiquem cercados por fazendeiros. Para eles, é ruim ficar próximo dos fazendeiros porque o gado das fazendas invade a terra do ribeirinho, assim como o fogo feito para o manejo do pasto.
Esta reunião foi organizada pelo senador [José da Cruz] Zequinha Marinho e várias pessoas da extrema-direita participaram. Ele incentiva o garimpo, o garimpo em terras indígenas, a grilagem, e é aliado de líderes envolvidos com a política do setor agrário de Altamira, que é um pessoal radicalizado pela extrema-direita. São pessoas que estavam organizando ações na frente dos quartéis, pedindo o golpe, e agora estão organizando eventos contra ações que são obrigações do governo federal. Depois dos eventos de 8 de janeiro, imaginei que eles recuariam, mas não estão acuados nem intimidados.
Na reunião, apresentaram argumentos mentirosos. Os ribeirinhos me disseram que estão colocando moradores na região prevista para ser o Território Ribeirinho a fim de forçar uma situação que impeça a formação do próprio território. Ou seja, estão construindo onde será o território para forçar indenizações mais altas quando as terras forem desapropriadas. Várias figuras estão envolvidas neste processo. Uma delas é a Damares [Alves], que distorce tudo o que é dito. Na reunião, ela disse que ribeirinho é somente quem mora na beira do rio. Portanto, se um fazendeiro mora na beira do rio, ele é, na concepção dela, um ribeirinho. Mas não é. Ribeirinho é aquele que tem um modo de vida ribeirinho, que vive essencialmente da pesca, da agricultura de pequena escala, da agricultura da floresta, que utiliza os rios e se relaciona com outros ribeirinhos. O ribeirinho tem um modo de vida tradicional junto com os indígenas e quilombolas e, nesse sentido, eles são todos povos tradicionais, com modos de vida tradicionais, e merecem um tratamento diferenciado. Essa é a concepção por trás da ideia do Território Ribeirinho.
A região está sendo ocupada apesar de o território não ter sido criado ainda? O que falta para a criação do território? Quais são os impasses entre os envolvidos?
Rodolfo Salm: O território ainda não foi criado; ele é um plano. Para ser criado é necessária a desapropriação daquelas terras, que pertencem a fazendeiros. A Norte Energia, empresa construtora de Belo Monte, enviou para a Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL, um pedido de Declaração de Utilidade Pública – DUP, dizendo que aquelas terras devem ser consideradas de utilidade pública. Isso facilita o processo de desapropriação das terras dos fazendeiros para fazer a instalação do território. Entretanto, segundo os ribeirinhos me informaram, para que a ANEEL possa emitir a DUP, ela precisa de informações que ainda não foram fornecidas pela Norte Energia. Ou seja, a Norte Energia não está sendo eficiente no envio das informações que são necessárias para compor a DUP.
Além disso, existe uma paranoia, que a extrema-direita quer cultivar, no sentido de dizer que a criação desse território é parte de um plano de ONGs estrangeiras que têm interesses obscuros na Amazônia. Se tem alguma ONG atuando na região, elas não são os atores mais relevantes. As forças mais relevantes são as universidades, a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC e o Ministério Público Federal, que apoiam verdadeiramente os ribeirinhos. As pessoas ligadas à extrema-direita dizem que as ONGs não querem o nosso bem, mas os nossos bens. O fato é que a desapropriação dessas terras é fundamental para que as populações ribeirinhas, que foram arrancadas da beira do rio e jogadas em áreas minúsculas das cidades, possam reconstituir suas vidas.
Outra questão importante diz respeito ao “caderno de preços” relativo às terras. A Norte Energia, que é responsável por esse processo, está usando um caderno de preços defasado e, portanto, os proprietários das terras vão receber um valor muito inferior pelas terras se comparado ao atual valor de mercado. Essa é a grande crítica deles, que querem ser indenizados com valores de mercado. A questão é que outros argumentam que muitas dessas terras que serão desapropriadas foram griladas e, portanto, isso significa que os proprietários não têm direito de indenização da mesma forma que teriam os proprietários de terras absolutamente documentadas.
Esta é a polêmica: se deve haver uma preocupação com o caderno de preços ou não. Os fazendeiros se preocupam com o caderno de preços. Os defensores dos territórios ribeirinhos dizem que a questão do caderno de preços não é um problema deles, mas da Norte Energia. Ao mesmo tempo, vários ribeirinhos dizem que não vão entrar no território antes de os fazendeiros saírem porque têm medo. Não adianta a Norte Energia, em uma canetada, confiscar todas as terras e entregá-las para os ribeirinhos, se os fazendeiros continuarem morando nas proximidades, porque, se eles quiserem se vingar, o ribeirinho pode ser vítima de um atentado ou de um assassinato. Isso dá uma ideia da complexidade do problema.
Quais os próximos passos depois da realização da audiência pública?
Rodolfo Salm: A comissão do Senado ficou de avaliar a questão da DUP. Entretanto, Zequinha Marinho disse que vai propor três encaminhamentos a partir da reunião realizada no dia 23 de março: tentar paralisar a DUP; fazer um Projeto de Decreto Legislativo, que cancela as ações do Executivo – o que parece inválido, uma vez que o Projeto de Decreto Legislativo regula matérias de competência exclusiva do poder legislativo, que não é o caso na construção de uma hidrelétrica; e criar a Comissão Parlamentar de Inquérito – CPI das ONGs.
Para nós, o próximo passo é conversar com os senadores que estão do nosso lado, como o Randolph [Frederich Rodrigues Alves, senador pelo Amapá, e líder do governo Lula no Congresso Nacional]. Os ribeirinhos estão procurando quem são os senadores da esquerda que podem nos dar um apoio e um aconselhamento sobre o nível de risco da situação atual.
Qual a situação socioambiental de Altamira hoje, depois do boom em torno da construção de Belo Monte?
Rodolfo Salm: Altamira passou por um boom de oportunidades de emprego à época da construção da hidrelétrica e quem ganhou dinheiro com isso foi quem já tinha muito dinheiro. A maior parte da população não chegou nem a enriquecer nem a juntar dinheiro porque, se de um lado, as pessoas ganharam um pouco a mais, tudo ficou mais caro: alimentação, aluguel, táxi.
Hoje, a cidade está depauperada economicamente. A barragem não emprega mais e algumas oportunidades de trabalho que havia não existem mais, como o turismo de pesca. Vários restaurantes e mercados de pequeno e médio porte fecharam com a chegada dos grandes. O impacto foi enorme. Houve sobretudo um entristecimento da população. Quando me mudei para cá, em 2008, a cidade era alegre, agitada. No final de semana, os barcos subiam e desciam o rio, as pessoas acampavam, faziam churrascos, pescarias. Os finais de semana e feriados eram dias de festa em Altamira. Agora não é mais assim. Nossa grande oportunidade de lazer era o rio Xingu, mas hoje ele não é mais um ponto de lazer porque virou um lago enlameado. Não dá para nadar no rio, não dá para ficar na praia.
Nos finais de semana, a maior parte das pessoas se diverte em casa, bebendo. Aumentaram o alcoolismo, a depressão, os casos de suicídios. Altamira é uma cidade muito violenta, tem um trânsito muito violento. Além disso, tem a atuação e a presença de facções na cidade, como o Comando Vermelho – CV e o Primeiro Comando da Capital – PCC. Altamira não é mais aquela cidade que tem o maior número de assassinatos por habitantes do país, algo que ocorria no passado. Isso porque, depois da construção da barragem, o movimento caiu e, consequentemente, a cidade caiu algumas posições nesse ranking, mas ainda é essencialmente violenta, com poucas oportunidades de trabalho e lazer.
Recentemente, você disse que “o Lula tem diante de si uma escolha: cabe a seu governo renovar a licença de operação da hidrelétrica, vencida desde novembro de 2021”. A hidrelétrica continua operando com a licença vencida? Qual é a situação em torno dessa licença? Do que depende a renovação?
Rodolfo Salm: É curioso que, mesmo com a licença de operação vencida, Belo Monte continua funcionando. A licença está vencida e quem dará a renovação da licença é o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – Ibama. Rodrigo de Agostinho, presidente do Ibama, disse que só concederá a licença se forem garantidas a sobrevivência da fauna e da flora e respeitados os seres humanos. É claro que essa é a situação ideal, mas ninguém acredita que isso vai acontecer de forma tão perfeita.
Tem várias questões pendentes para a concessão da licença de operação. Uma delas diz respeito ao hidrograma da Volta Grande. Vou explicar rapidamente a estrutura física de Belo Monte para esclarecer este ponto: Belo Monte foi posicionada em Altamira porque a cidade está na borda do escudo brasileiro, que é uma formação geológica que compõe a maior parte do território do país. É uma região em que se passa do planalto central para a planície amazônica. Essa transição [do planalto central para a planície amazônica] é feita na Volta Grande do Xingu, que tem esse nome porque faz uma volta no formato de ferradura. Ao longo da Volta Grande tem um percurso de cerca de 130 quilômetros, no qual há uma queda de cem metros, que é adequada, estruturalmente, para a construção de uma hidrelétrica, que precisa do desnível para que a água, com muita energia potencial, que é convertida em energia cinética, passe a girar as turbinas e seja convertida em energia elétrica. Portanto, o barramento seria feito na própria Volta Grande, mas isso causaria extensos alagamentos em terras indígenas, o que é politicamente complicado.
A solução que os projetistas de Belo Monte encontraram [para não alagar as terras indígenas] foi construir canais que desviassem a maior parte da água da Volta Grande e criar um lago no meio, com uma queda no final. Este é o ponto fundamental porque, ao desviar a água da Volta Grande, criou-se um problema ecológico seríssimo no próprio local: a falta de água.
A questão é que sem essa água não acontecem os pulsos de inundação, fundamentais para a renovação da vida do rio Xingu. Esses pulsos de inundação são fundamentais para manter a floresta alagada, para ela sobreviver, para a reprodução dos peixes, que precisam da inundação para poder se reproduzir e fazer o processo de piracema. Para se reproduzirem, os peixes aproveitam-se da água forte para subir o rio e entrar em lagos e lagoas laterais que se estabelecem ao longo do rio. É nesses locais que eles se reproduzem. Para que isso aconteça, é necessário que exista uma grande quantidade de água passando pela Volta Grande, o que não é mais uma realidade no momento. A água que passa é pouca. É 20% do que passava antes e, então, a piracema não acontece mais. Isso é muito grave porque as populações de peixes não se renovam.
É necessário que uma quantidade de água suficiente para a reprodução dos peixes seja acordada. A delimitação dessa quantidade de água é polêmica porque precisamos de muito mais água do que vem passando agora, mas a Norte Energia não tem interesse em deixar essa água passar porque, quanto mais água passa pela Volta Grande, menos água passa pelos canais e, portanto, menos energia elétrica é gerada. Essa é uma das pendências que devem ser resolvidas para que seja concedida a licença de renovação de Belo Monte.
Outra pendência é a questão da criação do Território Ribeirinho. Por isso, estamos otimistas quanto à criação do território porque ela é uma pendência para a renovação da licença de operação de Belo Monte. O governo tem interesse em renovar a licença de operação porque Belo Monte é uma obra dos governos do PT. Se a licença não é renovada, pega mal para o governo.
Outra pendência complicada de resolver é a desintrusão das terras indígenas, que também era uma condicionante de Belo Monte. Há várias terras indígenas na região, como Cachoeira Seca e Xikrin, que estão com invasores. Pessoas entraram nas terras e estabeleceram pequenos sítios ou fazendas ali dentro, e elas precisam ser removidas. É claro que essa é uma condicionante complicada porque a retirada dos colonos das terras indígenas tem um custo político altíssimo para o governo: vamos ver imagens de casinhas pobres e humildes sendo derrubadas por tratores e imagem de crianças chorando enquanto as casas estão sendo derrubadas. Por outro lado, esses colonos foram induzidos por políticos inescrupulosos a invadir essas terras quando já estava claro que seriam terras indígenas. Este é um abacaxi político a ser resolvido.
Em entrevista concedida em 2012 ao IHU, você chamou a atenção para a desarticulação, desagregação e divisão das comunidades indígenas como consequência do projeto de Belo Monte. Como estão as comunidades hoje? Mais fortalecidas ou divididas depois que a hidrelétrica passou a funcionar?
Rodolfo Salm: Ando muito pessimista diante do domínio da Norte Energia sobre os povos indígenas. Se eu disse, em 2012, que havia uma divisão entre os que eram contra e a favor de Belo Monte, hoje a sensação que tenho é que existe um domínio quase absoluto sobre os povos da região de Altamira.
Recentemente, estive na posse do novo coordenador da saúde indígena, em Altamira, e vários indígenas fizeram discursos agradecendo à Norte Energia, construtora de Belo Monte. Não vi ninguém vaiar nem criticar. O fato é que a Norte Energia está vencendo. Nesses dez anos, quem era contra a hidrelétrica foi só perdendo, enquanto quem era a favor foi ganhando importância política porque, bem ou mal, a Norte Energia dá um dinheiro aqui, outro ali, uma cesta básica, um motor, um barco, e isso vai desgastando quem fazia oposição e favorecendo aqueles que têm boas relações com a empresa.
Portanto, posso dizer que os povos da região de Altamira já estão quase completamente cooptados pela empresa construtora de Belo Monte. Essa situação é grave porque já sabemos, há muito tempo, que Belo Monte foi concebida como a primeira de uma série de hidrelétricas que seriam construídas no rio Xingu.
Na região há uma forte sazonalidade climática, e isso tem consequências para o rio Xingu. Em uma época do ano, chove muito, como agora, em que o rio está cheio. Nesta época, Belo Monte está trabalhando próximo de sua capacidade instalada, gerando muita energia. Mas isso é porque estamos em março. Em maio e junho, diminui o fluxo do Xingu. Em julho, agosto, setembro, outubro e parte de dezembro, o fluxo é baixo. Este é um dos problemas técnicos de Belo Monte: a hidrelétrica foi feita para gerar energia em uma pequena época do ano. Na maior parte do ano, as turbinas ficam paradas e a usina ociosa. Como resolver esse problema? Construindo várias barragens rio acima. Essas barragens rio acima vão estocar água na época em que há um fluxo maior de água e vão soltando a água ao longo do ano. Por isso, Belo Monte não foi projetada para funcionar sozinha; foi projetada para funcionar junto de várias outras barragens rio acima.
Dilma Rousseff assinou um documento dizendo que Belo Monte seria a única barragem do rio Xingu. É um documento “engana trouxa”, porque é um decreto presidencial que não foi nem votado no Congresso. Isso significa que, em um governo futuro, basta um novo decreto presidencial para derrubar aquele e aí serão construídas barragens rio acima, que serão muito piores que Belo Monte porque produzirão alagamentos muito mais substanciais do que Belo Monte, invadindo extensas terras indígenas.
Estou falando disso agora porque Belo Monte quase quebrou a resistência dos povos indígenas da região de Altamira. Daqui a pouco vamos ver indígenas pedindo a construção de novas barragens para que venham mais cestas básicas, mais caminhonetes, mais placas solares, mais barcos. Belo Monte está vencendo essa resistência e ninguém garante que, num próximo governo, seja lavado adiante o plano original de construir uma série de barragens no rio Xingu, que funcionariam como grandes caixas d’água.
O problema desse plano é que, ao construir hidrelétricas ao longo do Xingu, são causadas perturbações ecológicas que vão gerar imensos desmatamentos e terminarão por diminuir a quantidade de água que passa pelo rio. No final, não vai ter nem floresta nem rio nem geração de energia.
Recentemente, o senhor publicou um vídeo manifestando preocupação com a falta de ações para a retirada de todos os garimpos das terras indígenas e disse que até agora “não viu nada de substancial” no governo em relação ao enfrentamento dessa questão, para além do que foi feito nas terras do povo Yanomami. Qual é a situação dos garimpos nas terras dos povos Munduruku e Kaiapó, por exemplo?
Rodolfo Salm: Eu tinha uma expectativa enorme de que a posse do Lula fosse marcar uma mudança fundamental na lida com os garimpos. O ecologista é um ingênuo, e essa ingenuidade é necessária. Temos que acreditar que as coisas são possíveis porque, do contrário, não saímos nem da cama. Se eu for realista mesmo, vou pensar que a região está fadada à destruição, que, dentro de três ou quatro décadas, veremos um processo de desertificação avançado na Amazônia, que os povos indígenas vão deixar de existir, que isso vai virar uma grande desgraça, com sofrimento humano. Essa é a visão realista, não pessimista. Nós deixamos essa visão de lado para sempre acreditar que é possível lutar.
Depois que o governo tomou posse, a revista Sumaúma, editada pela Eliane Brum, denunciou a situação catastrófica do povo Yanomami. Tem gente que diz que o governo fez isso [intervenção na área yanomami] estrategicamente; eu acho que foi malandramente. A estratégia foi focar na desintrusão do território e está todo mundo fingindo que só tem garimpo na terra – não só o governo, mas também a imprensa. Ninguém mais fala do garimpo nas terras dos povos Kaiapó e Munduruku; só se fala no garimpo yanomami, como se não tivesse garimpo em outros lugares. E, hoje, parece que o garimpo na terra dos Yanomami está caindo no esquecimento, sem que a situação fosse resolvida, porque ainda tem garimpo funcionando lá dentro.
Na aldeia kaiapó, em Altamira, o garimpo não está com aquela força que estava antes. Depois da posse do presidente Lula, algumas pessoas saíram espontaneamente. Mas, na medida em que não acontece nada e tudo segue igual, as pessoas começam a voltar: os que não saíram ficam felizes em não ter saído, e os que saíram pensam em voltar. O que vejo é uma paralisação no ataque aos garimpos. No governo anterior, tinham algumas ações pontuais contra o garimpo na terra kaiapó e em outras terras. Agora, não estou vendo nada.
O pessoal do PT diz que precisamos ter paciência porque o governo estava desmobilizado, está sem recursos, só tem três meses de governo. A direita não está nem aí, quer mais que o garimpo destrua tudo. Assim, eu fico isolado, gritando e perguntando sobre o garimpo em outras terras indígenas. Quando posto uma foto de um indígena no Twitter, ganho 300 seguidores, mas quando falo do garimpo e do governo Lula, o número de seguidores vai despencando.
Você critica a esquerda, entendida em sentido amplo e partidário, e valoriza a esquerda local de Altamira, formada por pequenos grupos. A atuação de ambas é muito dissonante?
Rodolfo Salm: Com a direita não tem conversa. Ela é fascista, negacionista, quer que o índio seja incorporado ou desapareça, e quer destruir a floresta. Por isso, prefiro criticar a esquerda, porque a direita não tem o que criticar; é como falar de Hitler. Claro que é possível analisar profundamente a direita, mas não há debate com esse grupo. Agora, na esquerda, entende-se que tem pessoas decentes. Mas o fato é que muitos, dentro do PT, ainda têm uma resistência à questão ecológica, tanto é assim que Belo Monte foi possível. Lula não é um ecologista.
Hoje, está sendo discutida a conversão, em larga escala, de áreas de pastagem em produção de soja no país. A turma foi para a China na comitiva do Lula – que não foi porque ficou doente – para negociar como vender o Brasil em forma de soja para a China. Ninguém está preocupado com o meio ambiente. Eles dizem que esse processo vai acontecer sem prejuízo para o meio ambiente. Mas como? Vão parar o desmatamento durante três anos? Se isso acontecer, eu posso acreditar que alguma coisa vai ser feita sem a destruição de florestas.
Partes da esquerda têm uma preocupação ecológica e uma parte gigantesca acha que preocupação ecológica é invenção de ONG do primeiro mundo, que quer paralisar nosso desenvolvimento e tem interesses obscuros. É um pessoal cínico que não acredita que na Inglaterra existe alguém que possa estar preocupado, genuinamente, com a floresta amazônica e com os povos indígenas. Essa parcela da esquerda acha que é tudo fingimento e nós somos ingênuos.
Há aqueles que também são muito temerosos em relação a um golpe. Acham que esse governo tem que fazer de tudo para não cair. Se falo que tem que cuidar do garimpo nas terras kaiapó, dizem que estou enfraquecendo o governo e favorecendo um golpe, e a situação vai terminar sendo pior. Tem outros que acham que o governo está focando primeiro no povo Yanomami para depois atuar em outras terras. Um amigo tem a tese de que é preciso resolver a situação na terra yanomami, para saber como resolver, e depois atuar em outras terras. Não acredito nisso. Não acho que as forças do Estado, aquelas possíveis de serem utilizadas no combate ao garimpo, estejam todas concentradas em Roraima. No Pará, vejo a Força Nacional parada. Outra força fundamental é o Exército, que custa uma fortuna ao país e não está fazendo coisa alguma. O Exército precisa desmontar esses garimpos não como empresa, como funcionaram no governo Bolsonaro. Falta firmeza para lidar com a situação.
No Ministério da Defesa, Lula colocou um ministro que era bolsonarista; isso é problemático. Silvio Almeida [ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania], que trabalhou na questão do garimpo, é muito fraco. Disse que tem que ver alternativas econômicas para que os índios não caiam na mão do garimpeiro. Fica preocupado com alternativas para os índios, para os garimpeiros. E quanto ao combate ao garimpo e à retirada daquele pessoal das terras? Você ouviu falar de algum garimpeiro grande que foi preso? Nenhum. Realmente, a coisa está devagar, sim.
A esquerda local é maravilhosa, mas é fraquinha e quase inexpressiva. Na época de protestos contra Belo Monte, participavam seis, oito pessoas. Mas eu sou fã dessa esquerda. A Antônia Melo [ativista brasileira que luta pelas causas dos direitos humanos e pela conservação do ambiente, tendo sido fundadora do Movimento Xingu Vivo para Sempre] é uma das pessoas mais íntegras que conheço. Não cede por nada. Ela é firme nas convicções. Os movimentos [locais] são quase exclusivamente de mulheres.
Como o Ministério dos Povos Indígenas pode contribuir para o tratamento dessas questões?
Rodolfo Salm: Gostei da nomeação da Sonia Guajajara. Tenho admiração por ela, como também pela Juma Xipaia e pela Maial Paiakan. É um pessoal muito bacana, mas sem experiência. Vão precisar de um tempo para pegar o traquejo e ter uma ação efetiva. É claro que foi ótimo tirar os militares que estavam no comando da Fundação Nacional dos Povos Indígenas – Funai, e agora entrou uma turma bonita. Mas quão eficientes eles serão em implementar uma política eficiente de proteção às terras indígenas, ainda é uma questão em aberto.
Como avalia os primeiros meses do governo Lula à luz das questões climáticas e dos desafios para a Amazônia?
Rodolfo Salm: A questão amazônica tem uma particularidade que é a sazonalidade. A época de grandes desmatamento e tragédias é o segundo semestre, não o primeiro. Então, o grande teste é o que vai acontecer em agosto, setembro, outubro e novembro. Aí veremos se a Amazônia vai queimar forte novamente – e é provável que vá – e como será o combate à queimada e ao desmatamento.
Claro que a substituição de Ricardo Salles, um bandido de colarinho branco, por Marina Silva, um símbolo da preservação, traz um alívio. Mas o quanto isso vai se reverter em mudanças nos dados no mundo real, ainda teremos que ver. Por outro lado, quando Lula assumiu o primeiro mandato, em 2003, o desmatamento ainda se manteve alto em 2004 e 2005. Foi somente depois que o desmatamento começou a cair. Demorou um tempo para reverter a situação. Queria que dessa vez fosse mais rápido porque a situação da Amazônia está muito pior do que naquela época e muito mais próxima do ponto de não retorno. Por essa razão, a ação deveria ser mais enfática. Mas aquele caso de sucesso, de redução do desmatamento em 80%, não aconteceu de uma hora para a outra. É natural que desta vez também demore um pouco.
Sobre os primeiros meses do governo, diria que mudou muita coisa no campo simbólico. A figura simbólica de Bolsonaro, que nos atormentava diariamente, passou. Agora, ainda precisamos ver as mudanças no mundo real; estamos aguardando. A imprensa, por sua vez, já está rápida em fazer ataques e absolver a extrema-direita. Sérgio Moro está sendo tratado como uma pessoa respeitável, mas ele, em grande parte, é responsável pela situação das terras indígenas porque foi ministro da Justiça e disse que não queria saber das terras indígenas; abriu mão de combater o garimpo.
Como o senhor tem refletido sobre o desenvolvimento da Amazônia, considerando o novo regime climático, a necessidade de valorização da vida dos povos, a discussão sobre a transição energética, em contraposição a modelos de desenvolvimento que devastam a região e os povos? A construção de centros tecnológicos de pesquisa, como propõe o professor Carlos Nobre, é uma alternativa?
Rodolfo Salm: O desenvolvimento baseado na tecnologia, na pesquisa e na biodiversidade é fundamental. Carlos Nobre fala da criação de um MIT [Instituto de Tecnologia de Massachusetts] da Amazônia, mas muitos fazem piada, com certa razão, porque parece que estão querendo inventar a roda. Querem criar centros de pesquisa “sudestinos” – termo para se referir a quem vem do Sudeste – na Amazônia, cuja administração vem de fora, mas, na verdade, a Amazônia já tem muitos centros de pesquisa. Eu trabalho dentro de uma universidade em Altamira. Tem o Museu Paraense Emílio Goeldi, a Universidade Federal do Amazonas. São grandes centros. É claro que eles estão com pouco pessoal, poderiam ser mais qualificados, ter melhores laboratórios, mais bolsas de pesquisa. É isso que tem que fazer e não criar novos centros. Que tal investir nas nossas universidades? Estamos lutando para fazer a universidade funcionar.
Nós temos o desejo de que a Universidade Federal do Pará – UFPA passe a ser Universidade Federal do Xingu – UFX. Se criássemos a Universidade do Xingu, se triplicássemos o número de cursos, se investíssemos na criação de laboratórios, se abríssemos vagas para concursos nacionais, se atraíssemos professores de qualidade para laboratórios bem equipados e se oferecêssemos bolsas para os alunos, não haveria a necessidade de criar outros centros. O que quero dizer é que não é preciso criar um instituto novo enquanto estamos há décadas lutando nas instituições que já existem.
Sobre a crise climática, a longo prazo, será um desastre; a Amazônia vai virar um deserto. Mas recuando o prazo e olhando para o país ao longo deste século, se quisermos ter uma vida mais ou menos decente no território brasileiro, teremos que parar imediatamente todo o desmatamento da Amazônia e recuperar tudo o que foi desmatado. É possível recuperar isso em dez anos.
Se começarmos a plantar árvores em larga escala na Amazônia hoje, em dez anos a região vai virar um paraíso verde novamente. É disso que precisamos para poder ter água no restante do país. Isso pode gerar dinheiro também porque, quando se planta, é possível ter acesso à madeira, que é algo importante. O inadmissível é entrar em uma floresta virgem e cortar uma árvore de 300 anos. Mas se plantar algumas espécies de árvores hoje, em dez anos é possível cortá-las. É preciso trabalhar na recuperação da floresta. Quando recuperamos a floresta, carbono é absorvido, o que pode igualmente gerar créditos de carbono e ser uma fonte de dinheiro importante para o país.
Patricia Fachin é jornalista do Portal IHU, onde a entrevista foi originalmente publicada.
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