Correio da Cidadania

E depois da seca?

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Os moradores das margens dos rios da Amazônia, que formam a maior bacia hidrográfica do planeta, com 20 mil quilômetros de vias navegáveis, regulam suas vidas pelo ciclo das águas. Em seu principal curso, o do rio Amazonas, o maior em extensão e em volume do mundo, elas podem atingir, durante os seis meses de enchimento (seguidos por seis meses de vazantes), 230 milhões de litros de água despejados a cada segundo em sua foz, no Oceano Atlântico, a quase sete mil quilômetros de distância das suas nascentes, na cordilheira dos Andes, no Peru (onde ninguém ainda informou se chove ou não).

Com seus afluentes, enormes e também volumosos, o Amazonas drena águas de uma área de 7,5 milhões de quilômetros quadrados, na sua grandeza continental, em cinco países latino-americanos. Dois terços do rio se espraiam por nove estados brasileiros, recebendo contribuições de 13 rios, a maioria deles entre os maiores da Terra.

Mais de 150 mil quilômetros quadrados (ou 15 milhões de hectares) são as terras mais férteis de toda bacia, adubadas todos os anos pelos nutrientes que o Amazonas arrasta desde os Andes e vai deixando às suas margens, durante o período de cheia.

A grandeza desse ciclo e suas características, ora em escala gigantesca, ora em filigranas delimitadas e específicas, tem impressionado os viajantes desde o século 16, nacionais ou estrangeiros. O engenheiro Euclides da Cunha, no início do século 20, reagiu com uma frase que se tornou célebre pela exatidão do conceito: a Amazônia é a última página do Gênesis, que Deus deixou para os homens escreverem.

A observação é correta porque esse vasto mundo, dominado por um rio que despeja 17% das águas doces que chegam aos oceanos, ainda está em formação, seis milhões de anos depois de ter começado a nascer. É uma bacia de sedimentos, a mais recente das fases geológicas da Terra. No seu ciclo, o Amazonas tanto deposita sedimentos enriquecidos, formando ilhas ou prolongando margens, quanto as arranca da terra firme, no fenômeno muito conhecido das “terras caídas”.

Milhares de anos depois das primeiras correntes humanas, os nativos, que os colonizadores europeus chamaram impropriamente de índios, transmitiram aos imigrantes aculturados o conhecimento desse ciclo. No inverno é preciso ter paciência e sagacidade para se adaptar às águas grandes, que podem inundar a terra firme e invadir as casas, mesmo que elas estejam a alguns metros do solo, erguidas sobre palafitas.

Para quem desconhece os segredos dessa adaptação, imagens que são produzidas nesse período, antes pela imprensa, agora pelas mídias da internet, impressionam e chocam. O que era situação normal virou anomalia. Por mimetismo incabível, aplicou-se à condição humana do habitante da Amazônia o tratamento dado ao habitante do Nordeste em função de fenômeno inverso: o termo flagelado, aplicado ao homem (“antes de tudo um forte”) que fugia – e ainda foge – do sertão inclemente para a zona da Mata, no litoral nordestino.

O varzeiro era estimulado a também fugir do ataque da natureza em sua outra modalidade, através da água, abandonar sua moradia e suas culturas da terra fértil e se instalar nas cidades. Ou, se recalcitrante, era atendido pelo poder público, intermediado pelos políticos que têm base eleitoral no local, com o imediatismo e paliativo de sempre: tábuas para montar suas marombas”, currais flutuantes para abrigar o gado.

Encerrado o ciclo da cheia, era preciso se adaptar ao período da vazante, muitas vezes recomeçando mais uma vez, sem contar com uma presença constante e cumulativa dos governos, sobretudo do federal, todo ele desviado para as áreas centrais da Amazônia. É por onde passam as estradas e os planos, programas e projetos orientados pela diretriz geopolítica de uma nova frase, sem a percepção de Euclides: integrar a Amazônia, de qualquer maneira, para não entregá-la ao estrangeiro cheio de cobiça territorial.

A partir daí essa página está sendo escrita com garranchos. A um deles é atribuída a seca recorde que assola atualmente a bacia amazônica. O método para exibir e denunciar o fenômeno é o mesmo de antes: imagens fortes são divulgadas pela imprensa e a rede mundial de computadores e celulares. Muitos dos que contemplam esses flagrantes devem imaginar que os enormes rios começaram um novo aterrador ciclo: do desaparecimento.

Como as várzeas têm sido ignoradas diante do avanço feroz e conflitivo das frentes econômicas pelas rotas rodoviárias, o cenário, que começou a ser apresentado na grande seca de 2010, neste ano em seu terceiro capítulo, é de assustar mesmo. Não quem vive nesses locais.

De fato, os rios secaram mais do que era esperado e causam prejuízos e danos consideráveis, por vários motivos, locais ou globais. Reagindo como neófito nessa paisagem, o governo Lula fez uma recomendação inédita para os milhares de habitantes das várzeas, mas já reincidente para os moradores das cidades, tanto as das estradas, com um histórico mais antigo, como para as concentrações humanas à beira dos rios: ficar em casa para evitar a fumaça dos incêndios que acontecem na região.

A orientação foi dada durante coletiva de imprensa na sede do Ibama de Manaus. Mas o instituto confundiu queimadas na floresta, fato de mais de meio século de constatação sistemática, com a redução do nível dos rios, que levou os prefeitos de 55 municípios do Amazonas a decretar estado de emergência.

A confusão é tão grande que criou ambiente propício para os políticos entrarem em ação sugerindo medidas para beneficiar o agora flagelado da seca do Amazonas ou para tirar proveito da catarse com iniciativas que, ao invés de beneficiar a relação saudável do homem com a natureza, vão alimentar a devastação.

Como, por exemplo, completar o asfaltamento da polêmica BR-319 (Manaus-Porto Velho), em torno da qual estão agora os municípios mais desmatados do país, com muito mais dinheiro do que o que vier – se vier – a ser empregado na dragagem do rio Madeira, o principal afluente do Amazonas, para melhorar sua navegação, que, como sempre, é prejudicada no verão, mas não interrompida totalmente. Aliás, quando sobe, inunda as margens da rodovia.

Socorrendo com providências de emergência para ajudar o morador nativo a enfrentar a seca, o governo nem parece pensar que, agora, o mais importante é antecipar iniciativas de mais longo prazo, antes que venha o período da cheia, que pode ser excepcional ou normal. Seria possível saber e acertar o que fazer no novo ciclo, se a tecnologia de ponta disponível fosse usada para acompanhar o sobe-e-desce dos rios amazônicos, antecipando-se ao que vier a acontecer.

Isso seria o que de melhor os governos podiam fazer para ajudar o varzeiro a se manter onde está, realizando suas atividades o ano todo para melhorar de vida. Mas será que isso poderá acontecer depois que passar o “frisson” da seca?


A imagem que abre este artigo é de autoria de Marizilda Cruppe/Greenpeace e mostra as pessoas caminham de uma margem a outra, pela margem árida do rio, para encontrar lagos e poder pescar na comunidade Porto Praia do Povo Indígena Kokama, em Tefé, Amazonas.

Lucio Flavio Pinto é jornalista
Retirado de Amazônia Real.

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