Correio da Cidadania

Vamos falar sobre a dívida ecológica

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Manifestantes na frente do prédio do FMI
AFP/Getty Images

"Trata-se de voltar a amarrar o nó górdio atravessando, tantas vezes quanto necessário, o corte que separa os conhecimentos exatos e o exercício do poder, digamos a Natureza e a cultura”, Bruno Latour.

Francisco, o Papa, é categórico ao exigir dos países enriquecidos "perdoar as dívidas dos países que nunca poderão pagá-las. Antes de ser uma questão de magnanimidade, é uma questão de justiça, agravada hoje por uma nova forma de iniquidade da qual tomamos consciência: porque há uma verdadeira 'dívida ecológica', especialmente entre o Norte e o Sul, relacionada aos desequilíbrios comerciais com consequências no âmbito ecológico, bem como ao uso desproporcional dos recursos naturais historicamente conduzido por alguns países (enriquecidos, convém ressaltar)".

Esta conclusão está refletida em sua Bula de Convocação do Jubileu Ordinário do ano 2025, publicada em 9 de maio passado. Sintetiza a demanda para anular a dívida externa, em sintonia com o sentido do Jubileu que as igrejas cristãs promoveram um quarto de século atrás, cuja vigência e urgência permanecem atualmente, recuperando mais uma vez o sinal da esperança. E, como afirmou o próprio Papa Francisco em 5 de junho deste ano - Dia Mundial do Meio Ambiente - em uma audiência privada com os participantes da conferência "Crise da dívida no Sul Global", promovida pelo Vaticano, é necessário construir "uma nova arquitetura financeira internacional audaciosa e criativa", tendo em mente que a dívida externa e a dívida ecológica são "duas faces de uma mesma moeda que hipoteca o futuro".

Quando falamos em dívida ecológica, não se trata apenas de uma dívida climática, ligada aos impactos derivados das mudanças climáticas em que a maior responsabilidade recai sobre as nações enriquecidas. A dívida ecológica é muito mais complexa, com uma história longa e ao mesmo tempo muito atual. Encontra suas origens no saque colonial - a extração massiva e brutal de recursos minerais ou o desmatamento em larga escala de florestas naturais, por exemplo - ou seja, esta dívida é parte de uma dívida histórica colonial, que ainda não foi assumida de forma alguma. Saque que continua impávido em nossos dias republicanos.

Esta dívida cresce ao mesmo tempo que a demanda por recursos naturais dos diversos capitalismos metropolitanos. As pressões provocadas sobre a Natureza através das exportações de recursos naturais provenientes do Sul global, (quase) sempre mal pagas, não assumem a perda de nutrientes e de biodiversidade, tampouco consideram a destruição das comunidades e muito menos as múltiplas violências que desencadeiam. Bem sabemos que se trata de exportações exacerbadas pelos crescentes requisitos decorrentes da proposta de abertura total, própria dos tratados de livre comércio, que não são livres nem apenas de comércio; tratados que cada vez mais buscam apenas garantir o suprimento de recursos naturais para seus processos de transição energética corporativa (com a demanda por lítio, cobre, terras raras, por exemplo).

Neste ponto, impactam igualmente as condicionalidades para sustentar o pagamento das dívidas externas, forçando as exportações, principalmente de bens primários (e ao mesmo tempo a superexploração da mão de obra). Aqui também influencia a crescente financeirização de diversos processos econômicos. Não nos esqueçamos que o capital, quando não consegue acumular produzindo, extraindo ou comercializando, acumula especulando, inclusive mediado pelos extrativismos: basta observar os mercados futuros do petróleo, minerais ou cereais.

Daí também vem a crescente avidez contemporânea por mais e mais recursos naturais, que são mercantilizados mesmo antes de serem extraídos ou semeados, tudo para cristalizar a acumulação. Trata-se de um cenário onde a especulação reina e onde a financeirização dos processos produtivos e extrativos está cada vez mais presente, com uma participação ativa e cada vez maior dos capitais do crime organizado.

Tudo isso provoca uma maior destruição da Natureza e profundas afetações às comunidades, principalmente próximas aos locais de exploração, ao mesmo tempo em que impacta em todos os âmbitos da vida dos países do Sul global, presos às (impossíveis) promessas da Modernidade. Seus governantes e suas elites, como constatamos à exaustão, estão dispostos a seguir por este caminho buscando o sempre esquivo desenvolvimento.

Neste contexto, se ampliarmos o olhar, a dívida ecológica se projeta não apenas no intercâmbio ecologicamente desigual, mas também na ocupação gratuita do espaço natural dos países empobrecidos pelo efeito do estilo de vida predatório dos países industrializados. Assim, esta dívida cresce, de outra perspectiva inter-relacionada com a anterior, na medida em que os países mais ricos ultrapassaram em muito seus equilíbrios ambientais nacionais, ao transferir diretamente ou indiretamente poluição (resíduos ou emissões) para outras regiões sem assumir qualquer pagamento.

Basta ver o que acontece com a emissão de gases de efeito estufa, que desproporcionalmente emitem os países do Norte global, mas cujas consequências são suportadas por todo o planeta e, em maior medida, pelos países do Sul cujas infraestruturas são mais precárias para enfrentar os eventos climáticos extremos. Tanto é assim que vivemos um colapso ecológico global, cujos respingos locais, como vemos diariamente, com uma frequência acelerada, impactam cada vez mais em muitos cantos do planeta.

A tudo isso devemos adicionar a biopirataria, impulsionada por várias corporações transnacionais, que, além disso, patenteiam em seus países de origem uma série de plantas e conhecimentos dos povos originários, beneficiando-se assim dos saberes curativos ancestrais, em particular. Nesta linha de reflexão também cabem os danos causados à Natureza e às comunidades, principalmente camponesas, pela introdução de sementes geneticamente modificadas, que levam a uma afetação da soberania alimentar. E essas nações enriquecidas, graças ao saque de outros povos e da Natureza, também são corresponsáveis por expandir pelo mundo seus padrões de consumo e produção profundamente predatórios.

Por isso afirmamos que não há apenas um intercâmbio comercial e financeiramente desigual, mas também um intercâmbio ecologicamente desequilibrado e desequilibrador. Intercâmbios que acarretam impactos culturais complexos e até predatórios.

Um primeiro passo para a justiça global é, sem dúvida, assumir o tema das dívidas em sua complexidade. Portanto, é indispensável repensar a lógica de abordagem do tema, entendendo que os países devedores das dívidas financeiras são credores dessas outras dívidas. Em seguida, é urgente a desobediência frente à dívida externa. O cancelamento das dívidas externas, como reivindica o Papa Francisco, deve ser incondicional.

Ao mesmo tempo, é necessário organizar-se para exigir o pagamento da dívida ecológica e da dívida colonial. Não se trata apenas de mobilizar grandes fluxos de dinheiro do Norte para o Sul, nem de país para país, nem para comunidades ou indivíduos. É preciso ir muito além, visando a justiça global tanto social quanto ecológica.

É importante introduzir no debate as noções de restituição e reparação, que visam refazer o mundo a partir do princípio dessa justiça global; em outras palavras, com outras regras do jogo e com outras estruturas, a fim de criar uma ordem política completamente nova, caracterizada pela autodeterminação e solidariedade, e não pela dominação e hierarquização.

Isso demanda, é claro, a construção de outra economia para outra civilização, que requer outras estruturas internacionais destinadas a desmontar todos os mecanismos de dominação financeira e comercial, sustentados pelo FMI, Banco Mundial e OMC. É urgente superar igualmente todas aquelas estruturas onde a especulação reina como consequência da mercantilização dos serviços ambientais, que abrem as portas para os mercados de carbono em todas as suas formas. Não deve haver espaço para falsas soluções, como trocas de dívidas por Natureza ou por investimentos sociais, que em sua essência ignoram a origem muitas vezes corrupta e usurária da dívida externa. Acabar com os paraísos fiscais, refúgio da corrupção e especulação financeira, é outra tarefa inevitável. Tudo isso com o objetivo de construir uma nova arquitetura financeira e monetária internacional.

Trata-se, então, de devolver aos povos a soberania de tomar decisões coletivas democraticamente sobre seu futuro. Isso implica devolver a soberania sobre a política econômica fora do jugo da dívida externa, que tem no FMI e Banco Mundial seus principais garantes; uma política econômica que liberte os países do Sul global das imposições comerciais exploradoras dos Tratados de Livre Comércio e dos quadros impostos pela OMC.

Da mesma forma, esta política econômica renovada deve restituir as soberanias alimentar e energética, assim como - isso é fundamental - reconhecer os modos de vida que giram em torno da qualidade das relações e do equilíbrio entre humanos e a Natureza, em vez de colocar no centro a acumulação de dinheiro e poder.

E este esforço demanda, em suma, identificar todos os mecanismos de dominação, entre os quais historicamente se destaca o dispositivo das dívidas, incorporando a dívida patriarcal. Um assunto em que Francisco, o Papa, nos deve muito.

Notas:

1) Bruno Latour (2007); Nunca fuimos modernos – ensayo de antropología simétrica, Siglo XXI Editores, Buenos Aires.

2) https://www.vatican.va/content/francesco/es/bulls/documents/20240509_spes-non-confundit_bolla-giubileo2025.html 

3) https://www.swissinfo.ch/spa/el-papa-pide-una-%22nueva-arquitectura-financiera-internacional%22-que-sea-%22audaz-y-creativa%22/79741087 

Alberto Acosta é economista equatoriano, ministro de Energia e Minas em 2007 e Presidente da Assembleia Constituinte de 2007 a 2008. Acosta também é professor universitário e autor de vários livros.

Tradução: Gabriel Brito, editor do Correio da Cidadania.

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