Lições amargas
- Detalhes
- Valerio Arcary
- 04/11/2024
“Nunca é tão fácil perder-se como quando se julga conhecer o caminho”
(Provérbio popular chinês).
A derrota eleitoral de Guilherme Boulos em São Paulo foi a maior que a esquerda sofreu neste segundo turno. Não é fácil refletir sobre derrotas. Derrotas são tristes e dolorosas. Estamos sob o impacto emocional da amargura. Ninguém está imune, subjetivamente, da decepção e frustração. Manter a lucidez não é simples.
A derrota política foi muito dura, mas parcial. Não foi nem estratégica, nem histórica. Se enganam aqueles que sempre lhe foram hostis, tanto na esquerda mais moderada, quanto na mais radical, e já profetizam que Guilherme Boulos teria saído diminuído. Guilherme Boulos consolidou a posição de maior liderança popular e da esquerda brasileira, depois de Lula. Esta conquista desperta rancores, rivalidades e despeitos.
Guilherme Boulos liderou a campanha unificada da esquerda com uma indomável coragem, perseverança e dedicação. Foi hábil nas entrevistas agressivas, incansável nas caminhadas pela periferia, brilhante nos debates e inspirador nos comícios. Durante meses foi caluniado, pessoalmente, e difamado, politicamente. Drogado, invasor, comunista, extremista, incendiário.
Nas vésperas do primeiro e segundo turno foi vítima de crimes eleitorais sem precedentes, desde a campanha de Fernando Collor contra Lula em 1989, há trinta e cinco anos: cocainômano e apoiado pelo PCC. Enfrentou a luta política-ideológica dificílima de cabeça erguida. Denunciou que Pablo Marçal e Ricardo Nunes eram duas faces do bolsonarismo, a corrupção no escândalo das creches e das obras sem licitação, a cumplicidade com o PCC, se posicionou contra a guerra às drogas diferenciando traficante de usuário, acusou Nunes pela privatização da Sabesp, defendeu a anulação da concessão feita à ENEL, e muito mais. A campanha cometeu erros, também, como seria inevitável, mas não é responsável fazer este debate em público no dia seguinte da apuração. Ele deve ser feito, em primeiro lugar, no interior de nossas organizações.
Perdemos por uma diferença de um milhão de votos. Foi um tsunami. A questão é: por quê? Estão sendo divulgadas três explicações erradas. A primeira é que Guilherme Boulos não devia ter sido o candidato da esquerda porque o seu perfil seria, excessivamente, radical. Foi vocalizada pelo prefeito eleito de Maricá: Quaquá é também, um dos vice-presidentes nacionais do PT.
A segunda é que a campanha teria feito um giro ao centro para reduzir a rejeição de Guilherme Boulos, e esse erro transformou a derrota eleitoral em derrota política. Foi vocalizada por Vladimir Safatle e Luís Felipe Miguel, professores universitários da USP e UnB, mas tem apoio em uma parcela da esquerda radical.
A terceira é que teria sido contaminada pela pressão do “identitarismo”, uma fórmula popularizada pelo liberalismo, uma corrente ideológica estranha à esquerda, para fazer referência às lutas dos oprimidos, em especial, as mulheres e a luta feminista, os negros e o antirracismo, e os LGBTs e a luta anti-homofóbica, e foi vocalizada por Jesse Sousa, ex-presidente do IPEA.
Estas três explicações são falsas porque desconhecem o resultado da apuração. Um milhão de votos não são dez mil votos. Quando se perde por uma pequena diferença é razoável considerar a hipótese de que, se a representação da esquerda tivesse sido feita por outra candidatura, talvez tivesse sido possível vencer. Quando se perde por uma pequena diferença é incontornável fazer o balanço da tática eleitoral, se deveria ter sido mais radical ou mais moderada. Mas não foi o que aconteceu em São Paulo.
A desvalorização da diferença colossal não é, intelectualmente, honesta. Um milhão de votos não se anulam com táticas eleitorais. O balanço deve ser, portanto, desapaixonado. Nesta escala não importa se os programas de rádio e televisão deveriam ter sido “assim ou assado”, se o programa para saúde, educação, transportes, habitação deveriam ter sido outros. Nesta dimensão não tem palavra de ordem mágica. Não há “abracadabra”.
Marxismo não é fatalismo objetivista. Mas não é verdade que “tudo pode acontecer”. As margens do que pode ocorrer são estreitas. Por isso, fazemos cálculos, às vezes acertamos, outras erramos. Desta vez erramos feio, porque subestimamos, mais uma vez, a extrema-direita. As análises que defendiam que era possível vencer repousavam em uma premissa fundamental: o fato de que em 2022 tanto Fernando Haddad quanto Lula tinham derrotado Tarcísio de Freitas e Jair Bolsonaro na capital.
Esta análise, que quem escreve estas linhas defendeu, também, estava errada. Estas linhas são autocríticas. Não é difícil concluir que a situação evoluiu, desde 2022, para pior. Ocorreu uma mudança desfavorável na relação social e política de forças. As votações somadas de Ricardo Nunes e Pablo Marçal, no primeiro turno, foram o dobro da de Guilherme Boulos. E foi por uma estreitíssima margem que não aconteceu um segundo turno sem a presença da esquerda, pela primeira vez. Marxismo não é tampouco voluntarismo subjetivista. Há uma beleza “poética” na aposta de que nossa militância pode reverter situações adversas. Mas voluntarismo tem limites.
Na verdade, o que o desenlace da apuração revelou foi que não era possível vencer, em função da dura relação social e política de forças. Esta avaliação não interdita, evidentemente, o debate das táticas eleitorais. Mas desaconselha quem quiser insistir que foi o candidato ou a linha de campanha que explicam a derrota. Quem defende que a esquerda deveria ter apoiado Tabata Amaral está repetindo a hipótese imaginária de que Ciro Gomes poderia ter derrotado Jair Bolsonaro em 2018, se o PT não tivesse lançado Fernando Haddad e o PSoL apoiado Guilherme Boulos, um contra-factual absurdo.
Quem se alinha com as posições mais esquerdistas tem todo o direito de criticar que a campanha teria sido lulista demais, ou seja, alinhada com uma defesa do governo federal. Mas essa crítica não autoriza concluir que, se Boulos tivesse sido candidato sem a coligação com o PT, repetindo 2020, teria tido mais votos. Ao contrário, o que o desfecho eleitoral provou é que teria menos votos. Quem denuncia o “identitarismo” desconsidera que sem o apoio das mulheres, negros e LGBT’s teríamos tido muito menos votos. É verdade que a campanha teve muito mais recursos do que em 2020, e obteve uma votação semelhante. Sim, mas este argumento só reforça que a situação objetiva é muito pior.
A derrota da esquerda se explica por muitos fatores, mas repousa, essencialmente, em fatores objetivos e subjetivos. Os dois principais fatores objetivos são: a) que a vida não melhorou depois de um ano e meio de governo Lula, apesar do crescimento, redução do desemprego, aumento do consumo e controle da inflação, porque foram melhorias insuficientes; b) que a maioria dos mais pobres mantém algum grau, embora menor, de lealdade política ao lulismo, mas uma parcela da classe trabalhadora rompeu com a esquerda. É entre os remediados que o bolsonarismo criou raízes.
O que nos remete ao principal fator subjetivo. O governo Lula não faz a luta política-ideológica no patamar que a conjuntura exige. A extrema direita é o movimento mais dinâmico, mais ativista, mais ideológico na sociedade. Pablo Marçal é mais uma demonstração desta implantação. Sua influência vai além do um terço da população que lhes entrega o voto, porque conquistou hegemonia política. Entre os trabalhadores de renda média e esta pequena burguesia em formação está a audiência da extrema-direita. Têm escolaridade baixa ou, na melhor das hipóteses, média, e são remediados que estão em luta implacável pela ascensão social e respondem à agitação do bolsonarismo pela militarização da segurança e pela redução dos impostos.
As igrejas pentecostais ocupam um lugar insubstituível na organização deste movimento. São hostis ao feminismo, à luta antirracista, são homofóbicos e antiambientalistas. Estamos diante de um anticomunismo “popular”. Esta derrota não selou o destino do governo Lula. Ainda há tempo para reverter os danos, mas somente se houver lucidez de que a situação é de alerta vermelho. O alerta amarelo ficou para trás, é muito sério.
Valério Arcary é historiador e professor aposentado do Instituto Federal de São Paulo.
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