Dormir mocinho e acordar bandido
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- Kemel A. B. Kalif
- 10/12/2008
Todos os anos, vemos as taxas de desmatamento na Amazônia sendo amplamente divulgadas. Cientistas proeminentes, cordialmente, trocam críticas de cunho técnico para validar ou não a metodologia pela qual se obteve essa ou aquela taxa. Já os governos trocam acusações sobre esse ou aquele mandato. Para nós, habitantes dos grandes centros urbanos do país, é indiscutível, ouso dizer, uma verdade absoluta: os responsáveis por desmatamentos na Amazônia não passam de bandidos.
Assim tem sido desde o início dos anos 90, com a maior acessibilidade e qualidade das imagens de satélite pelo meio acadêmico, com o paradigma mundial do Desenvolvimento Sustentável em sua melhor fase logo após a Eco-92, e quando se iniciou a transformação das taxas anuais de desmatamento em moeda política.
Todos sabemos que há pouco tempo atrás não era assim. Nas décadas de 60 e 70 era possível abrir um jornal, no Sul do país por exemplo, e encontrar anúncios que prometiam terras gratuitas na Amazônia. A visão dos governos militares da época era taxativa: a Amazônia era um grande vazio demográfico cujo maior entrave ao desenvolvimento era a imensa floresta. Na tentativa de levar um milagre econômico para aquela região, tentou-se instalar um modelo agropecuário composto de grandes empresas no estilo "revolução verde", ou seja, baseado no monocultivo de vastas áreas e com forte acesso a insumos mecânico-químicos. Uma outra frente deste ambicioso plano era a mobilização de pequenos produtores descapitalizados, os quais, assim como os canhões de uma artilharia, amaciariam o terreno antes da ocupação. Os governos militares ofereciam, em alguns casos, terras cujo tamanho era limitado basicamente pela força de trabalho que um colono poderia dispor para desmatar. Ou seja, cada aventureiro que ali chegasse, ao desmatar um hectare de floresta, tinha direito a mais cinco.
Visitando um monumento apelidado de "Pau do Médici", ainda hoje no meio do nada, localizado próximo a cidade de Altamira no Pará, na lendária Rodovia Transamazônica, percebe-se claramente a força do paradigma desenvolvimentista da época. Trata-se de um monumento inaugurado pelo Presidente Médici, composto de três pilares de concreto de cerca de 10 metros de altura cada, erguidos ao lado de uma castanheira abatida pelo próprio presidente-general, e cujo tronco foi propositalmente deixado para simbolizar a chegada do progresso na região. Era a floresta, símbolo do atraso, dando lugar ao concreto, símbolo do urbanismo e do crescimento econômico.
Que pese o fato do calor escaldante e do regime de chuvas quase intermináveis que deve ter assolado os colonos que ali chegaram, a maior dificuldade ainda estava por vir: um solo ácido e infértil cuja produtividade era perdida drasticamente logo nos primeiros anos de estabelecimento dos roçados. À exceção de quem se instalara em alguma mancha de terra roxa existente naquela região, rapidamente ficou claro que, uma vez sem dinheiro para comprar insumos mecânico-químicos, estariam dependentes do sistema de corte e queima, ou seja, derrubar e queimar a vegetação para que os nutrientes componentes da matéria orgânica fossem disponibilizados para o solo. Como é amplamente conhecido, este sistema funciona em uma mesma área apenas nos primeiros ciclos, demandando novas áreas para serem queimadas.
Mas entre idas e vindas, muitos colonos se fixaram e prosperaram por ali. O município de Altamira, e vários outros estabelecidos às margens da Rodovia Transamazônica (entre eles o de Anapu, que o Brasil só veio saber que existia depois do escabroso assassinato da missionária americana Irmã Dorothy Stang), são atualmente um bom exemplo de persistência dos colonos. Porém, a maioria deles é, agora, ilegal aos olhos do Estado, ou imoral para a sociedade.
A ilegalidade lhes veio com uma abrupta mudança em um único aspecto da legislação ambiental brasileira. Trata-se, especificamente, da questão do tamanho da Área de Reserva Legal, ou percentual do imóvel rural onde não é admitido o corte raso ou desmatamento, mas tão somente o extrativismo, desde que composto de um Plano de Manejo aprovado pelo órgão ambiental competente.
A figura da Reserva Legal foi criada por um artigo do Novo Código Florestal, uma Lei Federal de 1965. O código determinou as porcentagens de Reserva Legal que deveriam ser mantidas em imóveis rurais brasileiros, a exceção daqueles imóveis localizados na Amazônia Legal. Para esta região, o código mencionou apenas que tal porcentagem seria determinada pelo poder central no prazo de um ano. Enquanto isso não ocorria, o código limitava o corte raso em toda a Região Norte para 50% da área de cada propriedade, mas não exigia a comprovação jurídica da existência de uma reserva legal. Pois bem, não é de se estranhar que por mais de 15 anos vindouros, até o fim dos governos militares, não se tenha voltado ao aspecto "reserva legal na Amazônia". Afinal a ordem era desbravar, derrubar e ocupar. Foi apenas em 1989 que a Lei nº 7.803 adicionou a averbação da área de reserva legal de 50% de cada propriedade, "à margem da inscrição da matrícula do imóvel no registro de imóveis competente". Já em 1996, usando de medida provisória com peso de lei, a era FHC elevou para 80% a reserva legal na Amazônia.
Para atingir esta porcentagem, o proprietário pode simplesmente abandonar a área desmatada para que a regeneração natural cuide da recomposição da reserva legal, e então poderá averbá-la. É uma lei tão "redonda" que parece muito fácil de ser cumprida. Aparentemente não há custos em deixar com que a regeneração natural reponha a cobertura florestal. Mas não é verdade, existem muitos custos envolvidos, entre eles o custo de oportunidade ou renda líquida por hectare de terra que seria gerada na área a ser abandonada.
Outros mecanismos legais possibilitaram a averbação da reserva legal em outro imóvel para compensar a área de reserva faltosa. Neste caso seria necessário comprar uma propriedade com cobertura florestal em quantidade excedente para "emprestar" para o outro imóvel do mesmo dono. A relação entre preço da terra com floresta e os custos de oportunidade é que determina a melhor opção, entre comprar para compensar ou abandonar para recompor. Mas é notório que, em nenhum dos casos, a lei trata de forma diferenciada os pequenos produtores.
Voltando à região da Transamazônica, depois de ter passado um bom tempo divagando sobre a simbologia daquele monumento do Presidente Médici, visitei lotes de pequenos produtores. Ao contrário do que eu esperava encontrar, vi condições bastante favoráveis para o funcionamento da legislação de 80% de reserva legal. É que o cacau está com bom preço por lá, e isto, somado a um ótimo trabalho de apoio e assistência técnica, tanto de ONGs quanto de órgãos do governo, tem estimulado a adoção dos Sistemas Agroflorestais (SAFs). Os SAFs podem ser averbados como reserva legal, mesmo o monocultivo do cacau pode. Porém, ainda que com condições econômicas e estruturais favoráveis, a existência de lotes com 80% de área com cobertura arbórea, passível de ser reserva legal, é minoria.
Muito produtores possuem pequenos rebanhos bovinos, e vendem bezerros para engorda. A existência destes animais funciona como um sistema de financiamento para suas empreitadas. Por exemplo, para plantar um hectare de cacau, vendem bezerros para custear mudas, diárias etc. Para qualquer imprevisto, os bezerros são também vendidos, e cumprem também o papel de poupança e fundo de garantia, sendo atividade de extrema importância sócio-econômica. Para muitos destes produtores, recompor a área de reserva legal representaria abandonar áreas de pastagem, o que tornaria mais vulnerável a já combalida economia familiar.
No entanto, sem a reserva legal o produtor não pode vender, legalmente, a madeira de seu lote, já que não pode aprovar um plano de manejo no órgão ambiental competente. Assim, vende madeira a baixos preços, a qual é retirada por extratores e atravessadores clandestinos sem o menor planejamento ou cuidado com a área de floresta, aumentando a propensão ao fogo dentro do lote e as chances de incêndios em larga escala. Trata-se de um processo onde a lei estimula não apenas a ilegalidade, mas tem efeito contrário exatamente no objeto de sua regulação: a floresta.
Ao se exigir 80% de reserva de um pequeno agricultor na Amazônia, pressupõe-se que existem, igualmente distribuídas na região, amplas condições para o franco desenvolvimento de Sistemas Agroflorestais e extrativistas. Pressupõe-se, também, que a maioria dos pequenos agricultores está apta, técnica e financeiramente, para a intensificação da agricultura e pecuária em 20% do seu lote.
Neste ponto, vale ressaltar, nem todo pequeno produtor é um agricultor familiar, que por sua vez pode não ser um assentado ou muito menos um proprietário de terra. Mas, devido à diversidade sócio-cultural e produtiva dificultar uma tipificação mais precisa, arrisco, neste momento, optar pelo pragmatismo: um tratamento diferenciado para os pequenos produtores assentados por programas governamentais, e cujo tamanho do lote não seja superior a 100 hectares (tamanho médio dos lotes oficiais em assentamentos na Amazônia). Para os enquadrados nesta categoria a porcentagem exigida como área de reserva legal deve ser reduzida. Para qual porcentagem é assunto para outra discussão, no entanto o valor de 50% poderia ser um ponto de partida.
Tal redução traria para a legalidade milhares de assentados, lhes daria maior poder de barganha na comercialização de seus produtos, especialmente os florestais, madeireiros e não-madeireiros. O aumento da legalidade representaria um aumento na própria perspectiva de construção da sustentabilidade nos assentamentos amazônicos.
É chegada a hora de discutir com responsabilidade essa questão, e não com os tabus que nos impõe o que parece ser o bom senso. O questionamento da viabilidade da reserva de 80% nos assentamentos na Amazônia é legítimo, e não uma desculpa de bandido, como nós, urbanóides, acreditamos.
Kemel Amin Bitencourt Kalif é Doutor em Desenvolvimento Sustentávl do Trópico Úmido e pesquisador post-doc do Instituto de Economia da Unicamp.
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