Hidrelétricas brasileiras na Amazônia peruana
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- Marc Dourojeanni
- 03/07/2009
No rápido processo de ocupação da Amazônia peruana, caracterizado durante as últimas décadas por infra-estrutura viária, exploração petrolífera e aurífera, ademais da rápida expansão das atividades agropecuárias e florestais, tem surgido outro elemento determinante. Trata-se da exploração de seu potencial hidrelétrico. Os presidentes Alan García, do Peru, e Luiz Inácio Lula da Silva, do Brasil, lançaram formalmente, em 28 de abril de 2009, a proposta que deve culminar com a operação de um número indeterminado de grandes represas nos rios da Amazônia alta peruana que, segundo informado, deve principalmente abastecer a demanda energética do Brasil.
O memorando de intenções assinado pelos presidentes permite que o Brasil estude, financie, construa e opere até seis grandes hidrelétricas em território peruano para abastecer suas necessidades de energia, comprando do Peru grande parte da energia produzida. As hidrelétricas escolhidas pelo Brasil são Inambari (2.000 MW), Sumabeni (1.074 MW), Paquitzapango (2.000 MW), Uru-bamba (940 MW), Vizcatan (750 MW) e Chuquipampa (800 MW), incluindo ainda as linhas de transmissão correspondentes que seriam integradas ao sistema brasileiro.
O custo total das seis obras seria da ordem de 16 bilhões de dólares e o primeiro projeto selecionado é o do Rio Inambari, na confluência dos departamentos (estados) de Madre de Dios, Cuzco e Puno, o qual custaria uns quatro bilhões de dólares. Apenas para dar uma idéia do que se trata, Inambari seria, em termos de geração de energia, a maior barragem do Peru e a quinta maior da América Latina, com uma área de inundação de mais de 46.000 hectares. Curiosamente, esta importante notícia foi muito pouco divulgada no Peru.
O fato é que a iniciativa tem já um longo e mal conhecido processo que resultou na instalação, no Peru, de duas novas empresas formadas por consórcios brasileiros. A primeira é a Empresa de Generación Eléctrica Amazonas Sur, que reúne empresas privadas de estudos, notoriamente a Engevix; a segunda é a Inambari Geração de Energia, que inclui Eletrobrás, Furnas e a empresa OAS. Segundo informações circuladas pelas próprias empresas, a primeira já estaria desenvolvendo os estudos para a obra do Inambari, com base em uma resolução ministerial outorgada em junho de 2008 e a segunda já contaria com um crédito de 2,5 bilhões de dólares do BNDES para trabalhar. Na verdade, as seis obras foram propostas a partir de estudos antigos, desenvolvidos nos anos 1970 pela empresa Lahmeyer-Salzgitter, com financiamento do governo alemão (GtZ) e do Banco Mundial. Este estudo revelou pelo menos 14 pontos prioritários para geração de energia hidrelétrica nos rios da Amazônia Alta do Peru, dentre eles os seis projetos mencionados.
Neste caso, como em outros que provocaram recentemente manifestações violentas de indignação por parte da população amazônica, em especial dos índios, o processo que levou a assinatura do memorando de intenções binacional, embora não seja segredo, tem sido cuidadosamente mantido sem alardes. O fato é que as empresas estiveram instaladas e operando no Peru antes da reunião de Rio Branco e que a autorização para fazer os estudos também foi outorgada previamente. Tudo estava acertado bem antes da reunião, e mais, tudo indica que a obra tenha sido igualmente decidida antes que os estudos de impacto ambiental e social fossem sequer concluídos.
Existe muita informação sobre os impactos das grandes barragens, especialmente em condições da Amazônia brasileira e, na verdade, obriga a se refletir muito antes de se decidir construí-las. Seus impactos diretos incluem mobilizações humanas importantes, mudanças econômicas e sociais nem sempre positivas, inundação de terra fértil escassa, desmatamento, eliminação da fauna, alteração do sistema hidrobiológico e de ecossistemas terrestres próximos, navegabilidade, problemas especiais de contaminação (geração de metano) etc. Os indiretos são piores e se estendem sobre enormes superfícies que incluem invasão de áreas protegidas e de territórios indígenas, mais desmatamento, pois a obra atrai mais gente e energia produzida facilita novas especulações. Todos estes problemas serão ainda mais graves nas condições sui generis da Amazônia Alta, pois os vales são estreitos e os elementos da sua biota são raros e muitas vezes endêmicos.
As empresas consultoras já comunicaram alguns resultados do estudo de impacto ambiental do Inambari. Como era previsível, disseram em essência "que não há problema" e que os que existirão serão de fácil solução. Isso é inverossímil quando já se sabe, por exemplo, que o reservatório inundará toda a agricultura existente na área, incluindo a garimpagem de ouro e vários centros povoados que, ademais, pelas características do vale, não terão aonde ser reassentados apropriadamente. Também se sabe que inundará entre 90 e 125 km (dependendo da altura final da represa) da recém construída estrada Interoceânica, cujo custo é elevadíssimo. Os taludes abruptos da região não são estáveis e podem afetar o reservatório. O pior é que além do mais inundará parte da zona de amortecimento do Parque Nacional Bahuaja-Sonene e que para reconstruir a estrada esta ficará muito perto do próprio Parque, ameaçando gravemente seu futuro. Já se sabe, por estudos na mesma bacia, que muitas espécies de peixes, incluindo alguns raros, serão drasticamente afetadas.
O impacto das outras represas pode ser maior ou menor que a do Inambari, embora não deixará de tê-los. E pior ainda serão seus efeitos acumulados. No Brasil, por exemplo, as barragens têm deixado grande parte do país sem rios não explorados com uma ou mais obras para fins energéticos com gravíssimas e bem documentadas implicações sociais e ambientais. Elas geraram o importante movimento popular denominado Movimento dos Afetados pelas Barragens (MAB), que reclama um trato justo para as vítimas dessas obras e que, para ser atendido, invade e ocupa instalações das empresas.
Os riscos, pois, são importantes demais para aceitar que o governo peruano, em especial, mas também o governo brasileiro, tenha decidido fazer a obra sem, como é o caso, discutir seriamente o tema. Até agora, as únicas "discussões" parecem ter sido as consultas públicas com os camponeses e habitantes pouco alfabetizados do entorno da obra, nas quais se enfatizam os supostos benefícios e se escamoteiam os problemas. As perguntas que os promotores peruanos da obra devem responder são basicamente três:
1. Qual é o estado atual do compromisso do Peru com as empresas e com o governo brasileiro no caso do Inambari e dos outros projetos? Existe ainda a possibilidade de discutir o assunto ou de procurar alternativas?
2. Até que ponto o avanço dos estudos de viabilidade do Inambari, incluindo aspectos sociais e ambientais, não revelaria que a obra já está decidida, comprometendo a opção de "não fazer", se seus impactos são excessivos, como manda a legislação ambiental?
3. Quais serão os benefícios para o Peru de um programa hidroelétrico que, pelo informado, será estudado, financiado, construído e operado pelo Brasil, que também compraria a maior parte da produção? Acaso não se leva em conta o risco de que a hidrelétrica seja devolvida ao Peru já obsoleta por sedimentação, apesar de que ainda deverá continuar pagando a dívida contraída?
Brasil e Paraguai estão precisamente agora confrontando uma situação difícil com relação à Itaipu, que foi construída em condições similares às que se planejam agora para as seis represas peruanas. Não importa, neste caso, discutir que parte tem a razão, mas é indiscutível que o Peru e o Brasil deveriam estudar detalhadamente esse antecedente para evitar a repetição de erros.
É perfeitamente razoável que o Peru venda energia que não necessita aos países vizinhos, como o Brasil, tal como qualquer país faz com este ou qualquer outro recurso. Isso é normal, desejável e forma parte do processo de integração continental. Mas, antes de tomar a decisão deve realizar todos os estudos econômicos, sociais e ambientais que garantam que os benefícios sejam maiores que os prejuízos, ou seja, que será uma decisão rentável nos três termos. Os benefícios econômicos devem assegurar, além disso, um mínimo de danos sociais e ambientais ou, pelo menos, as compensações adequadas. Mais ainda, neste caso deve ser feita uma avaliação sócio-ambiental estratégica que aborde a totalidade do programa hidrelétrico da Amazônia peruana e não somente a do Inambari.
Uma coisa é "uma barragem" na Amazônia Alta e outra, muito diferente, são seis ou 14 represas nos principais rios do leste do país. Ademais, a leitura do estudo da Lahmeyer-Salzgitter revela que, apenas no Inambari, poderia haver outras cinco represas para "explorar mais eficientemente" o potencial. Cada rio da Amazônia poderia, em efeito, ser convertido em uma sucessão de lagos artificiais, como já é o caso em vários rios brasileiros. O novo Ministério do Ambiente do Peru deve assumir o problema e exigir os recursos financeiros para fazer o necessário com absoluta independência.
De outra parte, é difícil entender porque o governo peruano, que atualmente enfrenta um sério conflito social na sua Amazônia, precisamente por falta de informação e discussão das suas ações, reincida adotando o mesmo comportamento para as hidrelétricas projetadas. A única forma de legitimar este programa é divulgando-o e discutindo-o seriamente nos níveis nacional, regional e local e nas instâncias políticas, acadêmicas e populares. Esperemos que não se repita a triste experiência da estrada Interoceânica, que vai ser parcialmente destruída pela represa do Inambari, decidida com estudos sócio-ambientais mal feitos e inúteis, pois já estava financiada e em plena construção quando estes foram concluídos.
Finalmente, o Brasil deveria ser para a América do Sul como um irmão mais velho. O Brasil está muito mais adiantado que o Peru no campo da engenharia de obras hidráulicas e mesmo no tema ambiental. O pequeno Ministério do Meio Ambiente do Peru tem apenas um ano de funcionamento e a sua legislação sobre licenciamento ambiental é muito fraca, outorgando plenos poderes a seu Ministério de Minas e Energia. Oxalá que o irmão mais desenvolvido não abuse da sua capacidade, influência e poder econômico, não aplicando no Peru sequer o que é obrigatório no Brasil.
Além do mais, o que for feito na bacia amazônica peruana, refletirá diretamente na bacia amazônica brasileira.
Marc Dourojeanni foi professor e decano da Faculdade Florestal da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru e Diretor Geral Florestal desse país.
Fonte: A Gazeta.
Retirado de Amazônia.org.
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