Eclusas de Tucuruí: caminho de saída
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- Lúcio Flávio Pinto
- 15/04/2011
Quatro meses depois de inaugurado, o sistema de transposição da barragem da hidrelétrica de Tucuruí ainda é um mistério para os paraenses, que esperaram durante quase 30 anos pela conclusão da obra. Seu custo é impressionante: 1,6 bilhão de reais.
Equivale à maior obra de engenharia hidráulica do mundo: as duas portas de aço que protegem das grandes cheias do Mar do Norte o porto de Rotterdam, na Holanda, o maior da Europa. Mas ainda está longe de permitir a navegabilidade da bacia do Araguaia-Tocantins, que drena 10% do território brasileiro, em seus 2,4 mil quilômetros de extensão.
Pelo contrário: as duas eclusas vão tornar proibitiva a navegação nesse trecho para as pequenas embarcações, que fazem o transporte no baixo Tocantins. Para poder ter acesso aos elevadores hidráulicos e ao canal de concreto, com 5,5 quilômetros de extensão (percurso que será feito em uma hora), a embarcação precisará contar com defensas para se proteger das muralhas laterais das câmaras, que têm 140 metros de extensão.
Terão que dispor ainda de cabos de amarração para ficarem engatadas aos cabeçotes flutuantes e rádio do tipo VHF, necessário para a comunicação com o operador da eclusa. Só farão a eclusagem as embarcações legalizadas junto à autoridade marítima e cujo condutor seja aquaviário, devidamente legalizado.
A esmagadora maioria das embarcações em operação na região não atende a essas exigências e nem possui condições para preenchê-las, por seu custo, proibitivo para esse tipo de negócio. As providências são necessárias para proteger tanto as embarcações que atravessarem o sistema de transposição como as instalações das eclusas.
O problema é que ninguém pensou na navegação local, nem no habitante nativo da área sob a influência da barragem, que é visto apenas como elemento decorativo da paisagem. O objetivo é atender grandes e poderosos clientes, como os mineradores e os produtores de grãos.
Sempre foi essa a preocupação dos que delinearam os "grandes projetos" na Amazônia, a partir dos anos 1970: identificar os locais onde estavam depositadas as riquezas naturais da Amazônia, como os minérios, e viabilizar meios de transporte até o litoral, de onde a produção seria levada para mercados externos, cada vez mais distantes (em princípio, os Estados Unidos e a Europa; por fim, a Ásia).
No caso de Tucuruí, a busca foi pelo máximo de energia a ser gerada num único ponto. Ao invés de três ou quatro barragens rio a montante, até Itupiranga, que poderiam vencer sucessivamente desníveis médios de 20 metros, um único represamento de alta queda, que provocou desnível de 70 metros. Com isso, possibilitou o máximo de energia, que chegou a 8,4 mil quilowatts.
Em compensação, foi preciso construir duas enormes eclusas e um longo canal intermediário entre elas para permitir a transposição, num dos maiores sistemas desse tipo em todo o mundo. O desnível é do tamanho de um prédio de 33 andares, como o Real Class, que desabou em Belém no dia 29 de janeiro, no maior acidente da construção civil na capital paraense (embora com menos vítimas do que o outro grave episódio, de 24 anos antes).
Para se ter uma idéia do que representou essa decisão, tomada na metade da década de 70 do século passado, basta compará-la com a opção adotada pelos construtores das duas hidrelétricas em andamento no rio Madeira, em Rondônia. Juntas, elas vão gerar 80% da energia produzida por Tucuruí. Os projetistas descartaram liminarmente a alternativa de levantar uma única barragem no Madeira, o principal afluente do rio Amazonas.
Ao invés de uma só usina, com barragem de 40 metros, formando um grande reservatório, optaram por duas estruturas: Jirau, com desnível de 12 metros, e Santo Antônio, com altura de pouco menos de 20 metros, ambas formando pequenos reservatórios, em conjunto equivalentes a um quinto da área inundada pela represa de Tucuruí, com seus 70 metros.
Como a missão da Eletronortre, concessionária da usina, era se responsabilizar exclusivamente pela energia, que iria atender os dois maiores consumidores individuais do Brasil (a Albrás, em Barcarena, e a Alumar, em São Luís do Maranhão, responsáveis por quase 3% de toda demanda nacional), as eclusas foram entregues aos parcos recursos da Portobrás.
A empresa portuária do Ministério dos Transportes foi extinta durante o acidentado percurso da obra e nenhum sucessor deu-lhe andamento. Ela só foi retomada em 2006. Por ironia, quando o Ministério dos Transportes delegou a tarefa à Eletronorte, que a descartara 25 anos antes.
O nó górdio atado em 1979 foi desfeito e a racionalidade – ao menos a formal – foi restabelecida: quem barrou o rio que lhe restabeleça a navegabilidade. Com a enorme vantagem, para a Eletronorte, de executar o serviço com recursos do governo. E maior vantagem ainda para a Construtora Camargo Correa, que mantém seu canteiro em Tucuruí há 36 anos, talvez recorde nacional.
Com dinheiro fluindo através do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), não faltaram recursos para que a empreiteira lançasse mão de um bilhão de reais até a inauguração das eclusas, em 30 de novembro do ano passado. O ato recebeu as bênçãos do presidente que saía e da sua sucessora, ambos do mesmo partido, o PT, constituindo o casal que gerou e acalentou o PAC: Lula e Dilma Rousseff.
O sistema permitirá a passagem de 40 milhões de toneladas de carga por ano nas duas direções, através de comboios com capacidade para 20 mil toneladas e calado máximo de 4,5 metros. É quase 10% a mais do que a barragem da hidrelétrica de Três Gargantas, na China, que deverá se tornar a maior do mundo, quando (e se) alcançar sua capacidade nominal de geração, mas que conta com cinco eclusas, três a mais do que Tucuruí.
É uma poderosa via de transporte de carga. Mas para quem acha que só agora está sendo corrigido o golpe traiçoeiro dado no Pará nos anos 1970, quando foi decidido escoar a produção de minério de Carajás por ferrovia até o litoral do Maranhão, e não pela costa do próprio Pará, usando o Tocantins, é bom não esquecer que a capacidade da ferrovia de Carajás já ultrapassou 100 milhões de toneladas – e ainda poderá ser expandida. Ninguém jamais previu tanto. Nem a Vale.
Fica cada vez mais claro que essa decisão estava coerente com a razão de ser do projeto: criar volumes crescentes de minério para exportação com o objetivo de chegar ao Japão e, em seguida (o que não foi cogitado inicialmente) à China, com preço melhor, graças à excepcional qualidade do minério de Carajás (com teor de 66% de hematita pura, o dobro do australiano) e ao custo decrescente do frete ferroviário até o porto (a partir da escala de 60 milhões de toneladas, se tornou igual ou inferior ao frete hidroviário).
As eclusas de Tucuruí se enquadram nesse modelo. Elas deverão escoar minérios e produtos siderúrgicos (como ferro gusa e chapas de aço), além de grãos, no sentido sul-norte, e os contêineres da Zona Franca de Manaus na direção contrária, no maior fluxo desse tipo de carga em todo país, além de outras possibilidades, como a do gás, que dependem da evolução da pesquisa, da produção e do mercado. Mas tudo em grandes quantidades, o que acarretará o uso oligopolístico do sistema de transposição, em condições de receber 24 comboios diários nas duas direções.
Essas perspectivas só se consumarão definitivamente se outras obras forem realizadas, a montante e a jusante de Tucuruí. Uma das maiores é o derrocamento dos 40 quilômetros do Pedral do Lourenço, acima da barragem, a dragagem do baixo Tocantins, a ampliação do porto de Vila do Conde (ao custo de R$ 700 milhões), o porto de Marabá, e mais as eclusas de Lajeado, no estado do Tocantins, e Estreito, no Maranhão. No final, talvez o dobro do que se gastou nas eclusas de Tucuruí.
Pode parecer exagero, mas, depois de tantos anos de investimento, a hidrovia Tietê-Paraná ainda tem uma capacidade de carga que é uma oitava parte do que pode ser utilizado em Tucuruí. Não para o benefício da população local e das atividades internas, mas como mais um caminho de passagem de riquezas naturais rumo ao exterior.
Essa é também a perspectiva do superporto da ponta da Tijoca, em Curuçá, no litoral nordeste do Pará. Será um terminal de embarque e reembarque de commodities, caso realmente seja exeqüível o projeto de construir um terminal próximo ao litoral (dois quilômetros e não de 8 a 11, como se previa), com um canal de acesso profundo, protegido das fortes correntes marítimas e com um fundo estável. Será mais um ponto de lançamento de riquezas para fora e não, como se deseja, um fator de indução do desenvolvimento para dentro. Nessa direção, o destino concebido é o do despejo dos restos do banquete que está sendo servido a privilegiados comensais no Pará.
Lucio Flavio Pinto é jornalista.
Retirado de Mineração do Sul e Sudeste do Pará.
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