Correio da Cidadania

A seca no sertão e o debate sobre a convivência com o semiárido brasileiro

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O Semiárido brasileiro abrange uma área de 969.589,4 km², com 1.133 municípios de nove estados do Brasil: Alagoas, Bahia, Ceará, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte e Sergipe. Nessa região, vivem 22 milhões de pessoas, que representam 11,8% da população brasileira, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

 

A tradicional e naturalizada divulgação de seca no Nordeste feita pela mídia, durante o ano de 2012, pode ser considerada a mais forte estiagem dos últimos 50 anos e está ocorrendo há meses no semiárido nordestino, nos vales do Jequitinhonha em Minas Gerais e do Mucuri no Espírito Santo. A previsão é de que a seca ou a estiagem tende a se agravar no início de 2013, devido à instabilidade climática no Oceano Pacífico com a manifestação do La Niña. Essa situação climática e a falta de condições estruturais para lidar com a mesma estão afetando diretamente em torno de 10 milhões de pessoas.

 

A região mais acometida do semiárido nordestino é o estado da Bahia, com cerca de 230 municípios atingidos. Municípios de Alagoas e Piauí também estão há meses sem chuvas. Segundo dados divulgados periodicamente pelo Ministério da Agricultura (MAPA), oito municípios da Zona da Mata em Pernambuco estão em situação de emergência devido à estiagem. No Maranhão, a estiagem chegou a municípios do litoral, como o de Barreirinhas, nos lençóis maranhenses. Na Bahia, o número de cidades afetadas chegou a 259, quase a totalidade das 266 situadas no semiárido. No norte de Minas Gerais, 125 municípios estão em situação de emergência devido à seca, inclusive seca de barragens.

 

Ao todo, segundo o Ministério da Integração Nacional, 525 municípios da região estão em situação de emergência e outros 221 sofrem efeitos da estiagem e aguardam avaliação da Secretaria Nacional de Defesa Civil.

 

De acordo com o Centro de Previsão de Tempo e Estudos Climáticos – CPTEC/ INPE e o INMET, a previsão climática para o trimestre de dezembro, janeiro e fevereiro de 2012-2013 tem 40% de probabilidade de ocorrência de precipitação na categoria abaixo da normal climatológica, para grande parte da região Nordeste, exceto extremo sul e sudoeste da Bahia. A situação poderá se agravar mais ainda caso não ocorra a precipitação esperada para os próximos meses, pois centenas de outras cidades poderão ter seu serviço de abastecimento de água afetado e entrar em colapso.

 

Em 512 anos, o semiárido nordestino chegou a sua 72ª grande estiagem, segundo relatos históricos da Articulação do Semiárido Brasileiro (ASA). Percebe-se que temas como falta de água, desabastecimento, racionamento, rodízio, revezamento, colapso e carro pipa são recorrentes quando se referem à seca ou estiagem no Nordeste brasileiro.

 

A pouca chuva é típica das regiões semiáridas. No caso brasileiro, isso tem se intensificado pelos danos ambientais cometidos, o descontrole e a concentração do uso da água pelos grandes proprietários rurais e as elites locais. Contudo, os impactos decorrentes da estiagem no semiárido são históricos e perduram, além da questão climática, podendo ser identificados como um processo socioambiental e econômico mais amplo, que constitui a reprodução social do sistema capitalista ao longo da história no Brasil.

 

A estiagem, a indústria da seca e algumas provocações para o debate

“Mas plantar prá dividir
Não faço mais isso, não.
Eu sou um pobre caboclo,
Ganho a vida na enxada.
O que eu colho é dividido
Com quem não planta nada”.

Sina do Caboclo - João do Vale

O semiárido é marcado por grandes desigualdades sociais. Segundo dados sistematizados pela ASA e divulgados pelo Ministério da Integração Nacional, 58% da população considerada em situação de pobreza no Brasil vivem nessa região. O Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) no semiárido é considerado baixo para aproximadamente 82% dos municípios, que possuem IDH até 0,65, estimando-se que 62% da população vivem sem as condições necessárias para a manutenção de uma vida digna em relação aos indicadores de renda, educação e longevidade.

 

Atualmente, 67% das famílias situadas na zona rural dos estados que compõem o semiárido não possuem acesso à rede geral de abastecimento de água, sendo que 43% utilizam poços ou nascentes e 24% utilizam outras formas de acessar a água, inclusive a busca em fontes distantes. Estima-se que grande parte das terras da região é formada por pequenas propriedades e apenas 5% da população têm água para irrigação de plantações, seja por tubulações ou por cisternas especiais. A estiagem e a falta de planejamento dos gestores fizeram surgir o comércio paralelo de água, que não é mineral e não traz garantias de qualidade para cozinhar e para o consumo humano.

 

Desse modo, as questões sociais como a desigualdade social, os conflitos socioambientais e a concentração fundiária estão ainda presentes de forma variada e constituem a história do desenvolvimento capitalista nessa região do Brasil, mesmo que a causa das questões relacionadas à miséria no Nordeste recaiam sobre os fenômenos climáticos vinculados à ocorrência das secas.

 

A partir disso e das estrondosas divulgações de calamidade pública na região, uma determinada elite econômica e política tem acesso, em grande medida, a recursos governamentais e verbas de emergência, anistia e renegociação das dívidas, a construção de açudes e a implantação de irrigação que trazem benefícios para eles próprios em suas propriedades. Sob essas condições, em geral, constituem-se as relações de dominação política e econômica sobre a maioria do povo nordestino.

 

Segundo o Mapa de conflitos envolvendo Injustiça Ambiental e Saúde no Brasil, a maioria dos conflitos socioambientais, cerca de 29,45%, está ocorrendo na região Nordeste, com destaque para os estados da Bahia e Pernambuco. Cabe destacar que na região do semiárido também se situa a atual fronteira de expansão capitalista do país, com o agronegócio, o ciclo da mineração e as inúmeras obras de infraestrutura, como hidrelétricas, rodovias e a transposição do São Francisco.

 

As grandes obras, como a transposição do Rio São Francisco, que se justificam pelo discurso de levar água à maioria da população do semiárido, estão causando uma série de impactos socioambientais, econômicos e emigratórios, como aponta o estudo de Evangelista (2012), sobretudo para populações locais subjugadas às consequências desse impacto forçado sobre suas vidas. No semiárido, muitos açudes de pequeno, médio e grande porte foram construídos, em sua maioria, em terras dos grandes proprietários, sem acesso para os moradores das fazendas ou pequenos agricultores familiares. Constata-se também que em muitos locais do semiárido realiza-se ainda a adoção de medidas emergenciais de combate à seca que são incompatíveis com a diversidade, as características fisico-climáticas e etnoculturais da região (Alves da Silva, 2003).

 

Diversas instituições de Estado, nos governos municipais, estaduais e federal, estão presentes historicamente no semiárido e ora colaboraram com a manutenção e a constituição da indústria da seca, ora para amenizar as condições precárias de vida na região. Além das forças repressivas policiais na caatinga, há instituições federais presentes no semiárido, como a Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) e suas companhias, como a de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF), e o Banco do Nordeste do Brasil (BNB).

 

Entre esse conjunto de características socioambientais, históricas, políticas e institucionais contidas no semiárido brasileiro, constituiu-se o que se conhece como "indústria da seca", que se configura como um modus operandi político que mantém as condições socioeconômicas de desigualdade social da região. O subterfúgio é adotar políticas públicas para a convivência no semiárido e que possibilitem as condições necessárias para a autonomia e emancipação dos diversos projetos de vida nesse espaço. Evidencia-se que esse conjunto de fatores delineia relações de concentração econômica e de poder político em prol de determinados e restritos grupos sociais e familiares.

 

A partir desse cenário, parece ser possível fazer o debate sobre o caráter do conjunto de políticas públicas e do arranjo social que, de certa maneira, colaboram em grande medida com a manutenção da desigualdade social no semiárido - mesmo com a atual ocorrência de mudanças sociais consideradas positivas, no cenário de dependência e da correlação de forças desiguais, com os programas de redistribuição de renda do governo federal.

 

A evidência de que a “fórmula” das medidas emergenciais não muda em relação às políticas públicas está, por exemplo, no que tange a recente estiagem, na criação de uma linha no Fundo Constitucional de Financiamento do Nordeste (FNE) no valor de R$ 1,5 bilhão, com foco nos pequenos produtores rurais, o pagamento do seguro Garantia Safra, o pagamento da Bolsa Estiagem (no valor de R$ 400 por família), a abertura de uma linha de crédito com juros reduzidos e o crédito extraordinário de R$ 164 milhões para distribuição de água por meio de caminhões-pipa. Já o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) vem adotando Ações Emergenciais de Enfretamento aos Efeitos da Estiagem. O que parece ter sido o diferencial foi a manutenção do convênio com a ASA, após diversas manifestações das organizações e movimentos sociais, do Programa Um Milhão de Cisternas (P1MC) (política de convivência com o semiárido que já beneficiou mais 300 mil de famílias).

 

Parece estar mais do que evidente a ausência de políticas públicas efetivas, por parte dos governos, que promovam as condições necessárias de convivência com as singularidades socioambientais do ecossistema semiárido brasileiro e do bioma da caatinga. Para isso parece ser necessário não renegar ou combater as características climáticas da região, insistindo em promover um modelo de progresso econômico e produtivo anacrônico a essa realidade, com a concentração de terra, de riqueza, recursos públicos e tornando o semiárido uma região inóspita para a maioria do seu povo viver.

 

Nesse sentido, urge a necessidade de debater efetivamente a reforma agrária, o fomento e o estímulo ao desenvolvimento de tecnologias sociais para o manejo dos recursos hídricos e alimentos (além das políticas ineficientes e inadequadas em irrigação), bem como o estímulo a uma produção agropecuária contextualizada e apropriada ao ecossistema local. Também parece ser necessário rever os aspectos normativos, o perfil político e tecnoburocrático das instituições e agentes que gerenciam as políticas públicas na região do semiárido.

 

A dominação social, os preconceitos regionais e socioambientais sobre o povo do semiárido em grande parte têm sua eficácia marcada pelo fato de serem ignorados. Observa-se que os debates e as disputas políticas para o aprimoramento e a ampliação de outro conjunto de ações e políticas públicas estão em pauta nessa região, apesar de silenciados ou ignorados pelas esferas de governo e a grande mídia. Ao mesmo tempo, o esforço de gerar outro ciclo de políticas públicas com as organizações e movimentos sociais do semiárido também terá que abranger a ampliação da discussão sobre democracia, emancipação e autonomia social, em vistas de fragilizar cada vez mais os resquícios de coronelismo e clientelismo, bem como o mandonismo político que está presente em vários redutos dessa região.

 

Outra questão, que pouco se comenta, é como e quando vai ocorrer o desenvolvimento e o fomento de tecnologias avançadas em meteorologia, para o aprovisionamento e o planejamento público sobre as possíveis intempéries climáticas, como as longas estiagens, que afetam as distintas regiões do Brasil. Além da notória falta de sensibilidade social dos nossos governantes, evidencia-se descaso e a falta de um projeto nacional e soberano de ciência e tecnologia com políticas apropriadas à diversidade social e regional do Brasil (Fonseca, 2007).

 

Ressalta-se que forjar outro projeto de desenvolvimento para o semiárido e de políticas para a convivência nesse contexto não está contido na proposição da sua inclusão em um modelo econômico competitivo e excludente, apoiado por políticas públicas altamente burocratizadas, elitizadas e sem capilaridade social, como, por exemplo, os históricos projetos de poços artesianos, irrigação e a recente transposição do Rio São Francisco. A formulação de outro ciclo de políticas públicas no semiárido terá de ocorrer junto com a construção de um projeto de desenvolvimento socioambiental para o país em conjunto com a sociedade. Diante disso, uma provocação que pode ser feita é: como apresentar e construir o intercâmbio do conjunto das experiências e tecnologias sociais desenvolvidas no semiárido junto aos governos, organizações e movimentos sociais na formulação, gestão e monitoramento de políticas públicas com a sociedade?

 

Caberá ao atual governo federal fazer a sua parte nesse processo de debate sobre as mudanças necessárias no semiárido brasileiro, mais do que já vem fazendo, e parece ser esse mais um dos seus desafios para 2013, isto é, estimular e viabilizar esse processo de elaboração e efetivar políticas e programas, a médio e longo prazo, de convivência com a região.

 

Sérgio Botton Barcellos é doutorando em Sociologia pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.

Maciel Cover é membro da Pastoral da Juventude Rural e pesquisador de políticas rurais.

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