‘Brasil é o país mais atrasado no debate sobre a megamineração na América do Sul’
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- Valéria Nader e Gabriel Brito, da Redação
- 09/11/2013
Maior potência mineradora do mundo, o Brasil pouco discute as políticas desse fundamental segmento da economia, e mesmo o debate sobre o novo Código de Mineração vem ocorrendo marginalmente a outros acontecimentos políticos. Cabe lembrar que a maior empresa do mundo na extração mineral está sediada no Rio de Janeiro, com uma carteira de investimentos imensa e novos projetos minerais pelo Brasil, inclusive em Carajás e suas gigantescas reservas.
“Aprofunda-se uma economia baseada em matérias primas, mas subordinada à globalização e com mais dificuldades para industrializar-se ou para se integrar a países vizinhos. O suposto êxito de exportar, por exemplo, ferro, reforça o drama da América Latina como provedora eterna de recursos naturais para o resto do planeta”, afirma Eduardo Gudynas, economista e pesquisador do Centro Latino-Americano de Ecologia Social (CLAES), de Montevidéu, em entrevista ao Correio da Cidadania.
Gudynas, frequentemente convidado para palestras e atividades que debatem a megamineração a céu aberto (que ele alerta ser a que mais cresce em todos os países sul-americanos, com maiores consequências sociais e ambientais), explica como é ainda difícil que os distintos governos, mesmo progressistas, aceitem um debate mais crítico sobre políticas de extrativismo e exploração de jazidas minerais. Tendem, unanimemente, às justificativas de que a renda de tal atividade financia seus programas sociais.
“Se, em troca, se orientasse o desenvolvimento de outra maneira, os recursos minerais do Brasil, ao invés de alimentarem a China, poderiam ser utilizados em necessidades nacionais e continentais. Uma verdadeira integração regional permitiria ao Brasil recuperar sua autonomia frente à globalização e alimentar cadeias industriais dentro da América do Sul. A importância de ter um processo desse por aqui seria gerar muito mais emprego, ao passo que se requereriam volumes menores de extrativismo”, reforça Gudynas, que qualifica a esquerda de “antiquada” quando se trata de debater a exploração econômica da natureza.
No geral, o pesquisador, que se diz “quase gaúcho” por ter familiares na fronteira com o Rio Grande e também em São Paulo, traça um panorama que evidencia o alto grau de conflitividade social que envolve os projetos mineradores, garantidos através de práticas de “redução da democracia” e devastação ambiental, que tornam questionável o próprio retorno econômico. Por fim, considera que, entre todos os países sul-americanos, o Brasil é o mais atrasado em todo esse debate.
A entrevista completa com Eduardo Gudynas pode ser lida abaixo.
Correio da Cidadania: Partindo dos cenários mais estudados e visitados pelo senhor, qual o atual diagnóstico que faria da atividade mineradora nos países latinos, especialmente os sul-americanos?
Eduardo Gudynas: Em primeiro lugar, é preciso diferenciar os diferentes tipos de atividade mineradora. Há práticas de menor escala, em alguns casos subterrâneas, que, apesar de terem efeitos negativos, podem ser melhor manejadas. Em segundo lugar, vem a megamineração a céu aberto, onde as grandes superfícies são afetadas, são removidos milhões de toneladas de solo e rochas, com água e energia utilizadas intensamente.
Pode ser megamineração localizada, como em Carajás, ou garimpo de ouro, que devasta a Amazônia, a exemplo do Peru. Os problemas mais graves são os dessa megamineração do segundo tipo, que avança em todos os países sul-americanos. Mesmo os países sem megamineração a céu aberto, como Uruguai, estão considerando projetos.
Correio da Cidadania: Qual a razão do avanço desta megamineração?
Eduardo Gudynas: As jazidas mais valiosas, com a maior concentração de minerais, e mais acessíveis, já estão em exploração e inclusive já estão se esgotando. Agora, buscam-se depósitos de menor qualidade e, em seguida, é necessário remover maiores volumes de rochas, para obter a mesma quantidade de minério. Isto é possível porque a demanda internacional e os preços globais são muito altos. Esta megamineração é uma atividade globalizada: extraem-se minérios não para o uso interno, mas para exportá-los a outros mercados. Portanto, aumenta nossa dependência dos mercados internacionais.
Correio da Cidadania: Quais os impactos dessa atividade que salientaria como mais notáveis?
Eduardo Gudynas: A megamineração tem dois tipos de efeitos. Os mais conhecidos são os impactos sociais, econômicos e ambientais em escala local. Isto inclui, por exemplo, desalojar comunidades locais, destruir economias regionais, que são suplantadas pela dependência às empresas mineradoras, contaminação do solo, água e ar, perda da biodiversidade etc. Como vários projetos mineradores se localizam em lugares mais afastados, afetam quase sempre espaços da natureza e povos indígenas.
Em alguns produtos, utilizam-se substâncias muito tóxicas, como mercúrio e cianeto; em muitos outros casos, são consumidos enormes volumes de água. Deixam um território devastado, com enormes crateras, de centenas de hectares de superfície. Portanto, os impactos locais são enormes.
No entanto, eu gostaria de salientar que existem outros efeitos. A megamineração é muito mais que extrair minério em um local. Esse tipo de atividade, como outras extrativistas, tem efeitos severos na política, na economia e na cultura de cada país.
Correio da Cidadania: Quais são esses efeitos?
Eduardo Gudynas: Aprofunda-se uma economia baseada em matérias primas, mas subordinada à globalização e com mais dificuldades para industrializar-se ou para se integrar a países vizinhos. O suposto êxito de exportar, por exemplo, ferro, reforça o drama da América Latina como provedora eterna de recursos naturais para o resto do planeta.
As exportações massivas, com a grande entrada de dólares, fazem com que as moedas nacionais se valorizem frente ao dólar. Assim, no Brasil, o real supervalorizado, a exemplo do sol no Peru ou do peso no Uruguai, tem o efeito de baratear as importações de manufaturas. Isto permite uma grande expansão do consumo interno, mas debilita as indústrias nacionais.
Este consumismo tem outros efeitos. Gera um estado de bem estar. Paralelamente, o Estado agora capta uma parte maior dos excedentes da mineração, e isto reforça um sentido rentista na economia. Especialmente os governos progressistas afirmam que usam parte do dinheiro advindo das exportações de matérias primas para seus programas de assistência financeira aos pobres, do tipo Bolsa Família.
As consequências destes processos são enormes. Promove-se a ideia de uma justiça social que, na realidade, depende cada vez mais do consumo material massivo nos shoppings centers e da assistência monetária aos mais pobres ou excluídos. Isto não é justiça social, mas uma limitada redistribuição econômica.
Esta associação é viciante: o governo, para ganhar a próxima eleição, necessita manter o novo tipo de consumo e a assistência social e, por isso, requer mais e mais extrativismo.
Correio da Cidadania: O extrativismo também tem efeitos políticos?
Eduardo Gudynas: A megamineração sempre gera reações sociais contrárias, protestos e conflitos. Mas como o Estado necessita desses projetos econômicos, não tem mais remédio se não bloquear a resistência cidadã e defender os investimentos.
Portanto, a megamineração só é possível reduzindo a democracia. Há muitos exemplos: os projetos são aprovados, mas limitam o acesso à informação e participação, os direitos dos povos indígenas são violados, acontecem injustiças ambientais, tolera-se poluição etc.
Isto desemboca em uma cultura de “ordem e progresso”. A “ordem” é controlar a voz da sociedade civil; e o “progresso” é apostar no crescimento econômico a qualquer custo social e ambiental. Progredir seria exportar mais, receber mais investimentos.
Não é simples fazer tal advertência, especialmente porque a maior parte da população vive em cidades e segue acreditando no velho mito de que o resto do país está repleto de riquezas ecológicas, quase vazio, sem problemas ambientais sérios. Essa ideia é falsa, mas continua sendo repetida.
Por tudo isso, a megamineração tem efeitos que geram ondas de protestos, pois afeta muito negativamente a economia, a sociedade e a política. Nos empobrece em todos esses aspectos.
Correio da Cidadania: Há grandes diferenças entre os modelos econômicos utilizados pelos diversos países nessa exploração?
Eduardo Gudynas: Esta é uma pergunta fundamental porque, quando se examinam os modelos econômicos, por exemplo, em países progressistas como Bolívia ou Equador, vê-se que são diferentes dos que se encontram sob os governos conservadores, como na Colômbia. O governo conservador continua apostando nas corporações para esse extrativismo. Contrariamente, os governos progressistas defendem um papel mais ativo do Estado.
Mas existe muita diversidade. Por exemplo, há um forte papel de empresas estatais em petróleo na Bolívia, Equador e Venezuela. Mas, em vários casos, essas empresas fazem acordos e parcerias com corporações estrangeiras, apresentados como contratos de “serviços”.
Outra diferença se observa nos royalties e impostos de algumas matérias primas, que são mais altos em alguns governos de esquerda e para alguns produtos. Há uma variação de maiores a menores impostos. São altos na Bolívia, Equador e Venezuela para o petróleo, não em mineração. Na Argentina, há muitas facilidades aos privados na mineração e petróleo, mas é o único país com um imposto na exportação de soja e outros grãos. Brasil e Uruguai, por sua vez, se caracterizam por um modelo moderado, com impostos e royalties médios e baixos, e que apostam, sobretudo, em arrecadar mais dinheiro aumentando o volume das exportações, sob a égide de empresas estatais mistas.
Correio da Cidadania: Como se dá a relação Estado-Capital em tais projetos?
Eduardo Gudynas: É uma relação cada vez mais íntima. Em alguns países, como Colômbia ou Peru, o Estado protege o capital, incentivando as empresas de mineração, fornecendo segurança em seus investimentos, proteção da polícia, permissões ambientais e subsídios em energia, água ou infraestrutura. Nos países de governos progressistas, a relação é mais complicada, porque as empresas estatais acabam se comportando como as corporações privadas clássicas. É um “Estado empresário”, e petroleiras como PDVSA ou Petrobrás contaminam, afetam as comunidades locais e geram efeitos sociais e ambientais, como fizeram British Petroleum ou Chevron. Para uma comunidade local, não há muita diferença se sua água é contaminada por uma petroleira estatal, brasileira ou holandesa.
Esta íntima relação entre Estado e capital não é observada com a urgência necessária, especialmente como no caso dos acordos com as empresas da China. Elas estão introduzindo um novo tipo de empréstimo, atado a recursos naturais como minérios ou petróleo, oferecendo muito dinheiro, impondo poucas condições sociais e ambientais, a uma alta taxa de juros.
Um exemplo é a situação do Equador, que nos últimos sete anos recebeu uns 10 bilhões de dólares em empréstimos da China em troca de petróleo. São os chamados “empréstimos por recursos naturais”. O Equador é obrigado a enviar aproximadamente 70% de seu petróleo à China. De outro lado, Pequim outorga enormes empréstimos, rápidos, sem exigências de desempenho social e ambiental, mas com juros mais altos do que os cobrados por bancos como BID ou Mundial.
Correio da Cidadania: A renda auferida pelos Estados Nacionais poderia justificar, de alguma forma, o sacrifício ambiental empreendido?
Eduardo Gudynas: Essa é a justificativa de muitos governos. É apresentada com diferentes ênfases. Por exemplo, José “Pepe” Mujica promove intensamente a megamineração porque, em seu conceito, o país primeiro deve crescer e, depois, se pode “repartir”. Outro caso, mais extremo, era na Venezuela sob Hugo Chávez, onde se sustentou que os grupos locais deviam se “sacrificar” para permitir o crescimento das exportações.
Mas toda a evidência que temos indica que tamanho sacrifício não pode ser justificado. Os impactos sociais e ambientais são enormes, com destruição de biodiversidade, poluição, violação de direitos das minorias. Inclusive, é duvidoso que se trate de um bom negócio mesmo do ponto de vista econômico, porque os Estados não contabilizam o custo em dinheiro dos efeitos negativos. Nenhum país, por exemplo, contabiliza perdas econômicas por erosão dos solos, em função do lucro do setor, para exportar soja para a China.
Correio da Cidadania: E o debate social, considera que tem sido relevante? As populações têm adquirido maior consciência quanto aos significados da mineração em grande escala?
Eduardo Gudynas: Em vários países, esse debate é muito intenso. Começou primeiro no Peru e Bolívia, agora se estendeu à Argentina, Colômbia, Bolívia e Uruguai. Em vários desses países, é uma discussão pública importante, está nos jornais, na televisão em horário nobre etc. Os grupos locais se organizaram e começaram a coordenar atividades em nível nacional. Porém, é importante advertir que muitos deles não só discutem os problemas de projetos específicos, mas lançaram um debate sobre políticas nacionais de mineração, recursos naturais e, a partir disso, políticas de desenvolvimento.
Portanto, em muitos casos, não é só protesto contra certas ações, mas um debate político sobre o rumo do desenvolvimento. Foi nesses espaços que nasceram as discussões sobre pós-extrativismo, para pensar em um país sem megamineração ou sociedades pós-petroleiras. Por distintos motivos, esse debate não é tão visível, ou é parte de outras discussões, como no Chile ou Paraguai.
Em compensação, o Brasil é possivelmente o caso de maior atraso. O debate público mais visível é sobre o petróleo no pré-sal, a discussão é sobre royalties ou sobre como distribuir esse dinheiro. Mas não está instalada uma polêmica, rigorosa e aceita, sobre se realmente é necessário extrair esse petróleo, os riscos ambientais e impactos na economia.
Quando proponho essa discussão em oficinas e palestras no Brasil, ou em publicações em português, muitos companheiros e amigos resistem a tal debate. Para eles, não tem sentido pôr em dúvida o setor petroleiro. Muitos na esquerda consideram que a essência da luta é que o Estado seja o único a explorar o petróleo.
Em minha visão, essa é uma postura de esquerda antiquada, e que corre o perigo de ficar envolta por essa íntima relação com o capital extrativista, contra as comunidades locais e a Natureza. É uma postura que ignora riscos. Esqueceram o acidente da British Petroleum com sua plataforma de alta profundidade no Golfo do México? O futuro do Brasil é continuar sendo provedor de matérias primas, antes café, hoje ferro e alumínio, amanhã de petróleo? Retomar uma postura de esquerda é voltar a discutir as essências das estratégias de desenvolvimento.
Correio da Cidadania: No Brasil, está em discussão há anos, com possibilidades de avanço real agora, um novo marco regulatório para a mineração. As alegações se dirigem a “aumentar competitividade”, “destravar processos” e, claro, prometem mais renda e desenvolvimento ao país. Nota-se, nesse momento, intensa participação de parlamentares, parte destes financiados por empresas mineradoras. O que pensa a respeito dessa situação atual específica no Brasil, tendo em vista o nosso gigantesco potencial mineral?
Eduardo Gudynas: Primeiramente, penso: “pobre Brasil”, um país tão rico, e sob essas enormes tentações.
Se o Congresso brasileiro repetir o processo de reforma de normas mineradoras que recentemente se realiza em outros países, como Equador e Uruguai, teremos uma lei flexível social e ambientalmente, na qual a arrecadação pode aumentar, mas se permitirão outros apoios, isenções e subsídios. Se, em troca, se orientasse o desenvolvimento de outra maneira, os recursos minerais do Brasil, ao invés de alimentarem a China, poderiam ser utilizados em necessidades nacionais e continentais. Uma verdadeira integração regional permitiria ao Brasil recuperar sua autonomia frente à globalização e alimentar cadeias industriais dentro da América do Sul. A importância de ter um processo desse por aqui seria gerar muito mais emprego, ao passo que se requereriam volumes menores de extrativismo.
Correio da Cidadania: O que pensa, por sua vez, da regulamentação da mineração em terras indígenas e de povos originários, à luz de situações similares em países sul-americanos?
Eduardo Gudynas: A pressão extrativista é tão intensa que avança sobre os últimos espaços livres dentro de nossos países. Esses territórios são, em alguns casos, as unidades de conservação e, em outros casos, as terras indígenas. Assim, mineradoras ou petroleiras fazem pressão pelo acesso a tais terras e os governos aceitam. Por exemplo, na Bolívia, o governo Evo Morales está promovendo a exploração dentro de unidades de conservação, em alguns casos em parceria com a PDVSA. No Equador, Correa acaba de permitir a exploração petrolífera dentro de seu principal parque nacional amazônico, Yasuní. É um avanço sobre a última fronteira.
Correio da Cidadania: No caso específico da Vale do Rio Doce, como analisa o relacionamento do Estado brasileiro com essa empresa, privatizada nos anos 90?
Eduardo Gudynas: Há vários elementos surpreendentes em torno da Vale. Primeiro que, na realidade, essa mineradora não é exatamente privada, mas deve ser entendida como mista, em parte similar à Petrobras, pois um pouco mais da metade das ações da empresa é de propriedade de fundos de investimento, como os do Banco do Brasil, e de participação e financiamento, via BNDES. Para explicar de forma simples e esquemática, a Vale é essencialmente controlada pelo governo, por intermédio dos sindicatos e BNDES. Por sua vez, o povo brasileiro financia a Vale.
Essa relação tão íntima expressa uma rara forma de capitalismo. A Vale é uma empresa de todos, brasileira, quando precisa do apoio a investimentos, mas é privada quando resiste a revisar sua gestão social e ambiental.
Por sua vez, muitos setores políticos e sociais perdoam diversas situações vindas da Vale e Petrobras por conta da ideia de empresa nacional. Essas empresas têm perdoadas ações que a esquerda criticaria duramente se adviessem de corporações transnacionais. Neste terreno, parece que se avançou muito mais em países como Bolívia, Equador e Uruguai, onde analisar ou criticar o governo progressista não significa que se está deixando de ser de esquerda ou estar a serviço de setores conservadores.
Valéria Nader, jornalista e economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.
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