A cheia do Madeira e a precificação do desastre
- Detalhes
- Luis Fernando Novoa Garzon
- 24/04/2014
Com a chamada “cheia histórica” do rio Madeira, são mais de 5.000 famílias desalojadas e pelo menos 100 mil pessoas sem acesso a água potável e alimentação adequada na cidade de Porto Velho – que teve 12 de seus bairros afetados, em particular os bairros do Triângulo, Balsa, São Sebastião, Nacional e Belmont. No entorno das usinas, a montante e a jusante, cerca de 50 comunidades ribeirinhas remanescentes foram alagadas por águas agora consideradas “incontroláveis”: Vila de Abunã, Distrito de Jaci-Paraná, Linha 19 do Joana D’Arc, Bom Será, Brasileira, São Carlos, Ilha do Monte Belo, Itacoã, Bom Jardim, Curicacas, Tira Fogo, Reserva Extrativista Lago do Cuniã, Igarapé do Tucunaré, Nazaré, além de outras comunidades, que não se fizeram identificar. Ambientes compostos e construídos por gerações sucessivas de indígenas, seringueiros, pescadores, ribeirinhos e camponeses, territórios destroçados como corpos coletivos e agora marcados pelo sinal do que não tem retorno. A cheia, definida como novo limite máximo “natural”, justifica e acelera o processo de despossessão das barrancas do rio Madeira em coerência com o processo da privatização de suas águas.
Os consórcios liderados pela Odebrecht e pela Suez procuram ocultar qualquer responsabilidade por efeitos adicionais da cheia, alegando que “casos fortuitos ou de força maior” não podem ser evitados. Mas se as hidrelétricas de Santo Antônio e Jirau foram concebidas elas próprias como casos de força maior permanente – do formato do leilão e do financiamento até as licenças e outorgas –, não se pode falar de aleatoriedade, e sim de riscos planejadamente maquiados. “Precaver-se de fatos extraordinários não seria razoável”, afirmam os Consórcios depois de promoverem uma sequência de fatos extraordinários, como seguidas mortandades de peixes, extensos desbarrancamentos e a ampliação indeterminada das manchas de inundação de seus reservatórios.
O nexo causal entre fator gerador e dano não pode ser imediato e unilinear, pois o “fator gerador” em questão são grandes hidrelétricas mediadoras e potencializadoras de danos múltiplos: ao redefinirem a calha e o leito do rio, o seu nível e velocidade, além das propriedades bioquímicas da água em toda a área de influência das usinas, cujo perímetro é sabidamente muito mais amplo que o assumido no EIA-RIMA.
É o nível de organização social e a forma de ocupação do espaço que definem desastres e catástrofes. Por isso furacões, terremotos e cheias produzem efeitos muito diferenciados – dependendo do país ou da região ou do perfil social da população afetada. É preciso perguntar como se deu a distribuição, o espraiamento e tempo de residência dessas “águas excedentes” ao longo da calha do rio Madeira. E saber que segmentos sociais, grupos étnicos, áreas urbanas e quais atividades propiciadoras de renda foram as mais afetadas. Amazônia brasileira e boliviana, comunidades camponesas e ribeirinhas e bairros “beiradeiros” têm sido os destinatários preferenciais dos danos socioambientais, tidos como danos colaterais de um padrão de acumulação focado em commodities e em plantas industriais eletro-intensivas.
Apelar para a natureza como prova suficiente para enterrar dúvidas e controvérsias sobre o desastre é expediente de quem conta com uma ciência instrumental, mas que se faz crer neutra e autorreferente. Não se pode conferir a priori anterioridade e causalidade aos efeitos da natureza, eles próprios resultantes de um circuito de olhares, interesses e metodologias em disputa.
“Natureza” seria nada mais que o produto de coordenações recíprocas entre as apropriações objetivas da natureza e as representações subjetivas destas mesmas apropriações. O que podem ser “consequências naturais” depois do capitalismo globalizado, do boom das commodities, da privatização ampla e irrestrita dos setores de infraestrutura que propiciam a exploração de recursos naturais e sua circulação? Poderia parafrasear Adorno (que se indagava como haveria poesia depois de Auschwitz) e perguntar: que natureza intocada é esta que produziu “efeitos imprevisíveis e incontroláveis”?
O rio Madeira é a divisa central do corredor inter-oceânico em implantação na região, corredor concebido para carrear recursos naturais exportáveis a largas distâncias, em um caso em que o uso define a logística que lhe cabe; logística que, por sua vez, intensifica este mesmo uso, em um círculo vicioso de especialização regressiva do território. Projetos petrolíferos, de mineração, hidrelétricos e de infraestrutura já esquadrinharam o que circunda o dito corredor. Enquanto isso, fluxos de populações desenraizadas pelo ciclo de expropriações anteriores tratam de ocupar suas posições nesse espaço como podem, seguindo a móvel e célere fronteira dos investimentos.
Recebem, em troca disso, junto com as populações locais, a maior parte da carga dos danos socioambientais – e de superexploração da força de trabalho – advinda da efetivação desses projetos. Novas zonas de sacrifício perfilam-se nas bordas das áreas/setores que apresentam alta lucratividade em meio ao último surto de “crise financeira” e a seus novos e brutais requisitos.
A conversão da Amazônia em estoque e plataforma logística se aprofunda ainda mais com a incorporação de “mecanismos de desenvolvimento limpo”: green cleaning/green washing para tornar toleráveis os efeitos colaterais dessa nova ofensiva espoliativa através de mecanismos como o Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL), Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação (REDD), Plano ABC (Plano Setorial de Mitigação e de Adaptação às Mudanças Climáticas para a Consolidação de uma Economia de Baixa Emissão de Carbono na Agricultura) e Mercado de Crédito de Carbono e seus múltiplos derivativos.
E assim caminha a fronteira elétrica na Amazônia e prossegue a construção social dos rios amazônicos como recursos energéticos, conversão feita de modo “sustentável” ou através de “usinas a fio d’água” ou “usinas-plataforma”. O “ambiental”, como reatividade formal e cínica aos requerimentos energéticos de nosso padrão de acumulação, produziu artefatos como “usinas-plataforma” e “usinas a fio d’água” a garantirem, por meio de carimbo normativo cientificizador, os menores impactos possíveis – depois, é claro, de atestada a irreversibilidade dos investimentos chamados estruturadores. Impacto social nulo, prometem os detonadores de bombardeios cirúrgicos na Bacia do rio Tapajós. Vazão afluente = vazão defluente, repetem em forma de mantra os diretores dos consórcios e das agências fiscalizadoras, para nada mais declararem sobre como especificamente seus dois reservatórios (1) interferem na dinâmica das cheias e vazantes do rio Madeira, a montante e a jusante, trecho a trecho.
Reparem que são os atores ou agrupamentos sociais que criam e recriam versões do mundo natural e claramente do mundo social. Essas versões emplacam ou não, dependendo dos instrumentos e dos métodos de construção e entronização da realidade dos que se imaginam vencedores, da realidade que dá razão a eles.
Mas a vitória nunca é completa enquanto podemos pô-la à prova na cena pública. Chuvas implacáveis acima das usinas, em território boliviano, não constituem um álibi que se sustente, já que pareceres e estudos técnicos indicavam, desde 2007, a possibilidade de eventos climáticos extremos associados a processos de desmatamento e ocupação irregular do solo na Bacia do rio Madeira. E tais pareceres foram ignorados ou censurados durante os processos de licenciamento e outorga das UHEs. Agências hidro-meteorológicas na Bolívia e Peru deveriam ter sido condição prévia? Um maior conhecimento da ameaça não se traduz em condições de desvulnerabilizar, ou seja, impedir novas vulnerabilidades.
Deveria haver consonância entre sistemas de alerta e adequação de operação dos reservatórios e planos de contingência publicizados. Ao invés disso, o que se viu foi uma disputa extemporânea entre as duas usinas pelo aumento das cotas dos seus respectivos reservatórios, para otimização do aproveitamento energético.
Os consórcios dizem não poderem assumir responsabilidade sobre “danos remotos” ou sobre efeitos colaterais “inevitáveis”. Mas sem que se avaliem em detalhe as dinâmicas de sedimentação em associação com os efeitos de remanso dos dois reservatórios, não é possível afirmar que a quantidade de chuva nas cabeceiras possa determinar o nível e a vazão do rio Madeira – pura e simplesmente. Pontuam, em defesa própria, que a falta de planejamento do solo na área de influência das hidrelétricas não pode ser “causa direta e imediata” das usinas.
Aqui a meia confissão basta para deixar claro que os consórcios privados não estão dispostos a verificar as muitas causas coadjuvantes desta catástrofe socioambiental, muito menos oferecer segurança mínima à população rondoniense que vive no entorno do projeto ou que depende da infraestrutura viária nele situada, como, por exemplo, a população do estado do Acre. A viabilidade das duas hidrelétricas está colocada em xeque depois que a ESBR (Energia Sustentável do Brasil) e a SAE (Santo Antônio Energia) provaram que não conseguem lidar com a vazão dos rios amazônicos e sua extrema variabilidade.
Nota:
1) Ou, como denomina o insuspeito Sultan Alan: os seus respectivos pools, corpos d’água que se diferenciam da calha antes de cada barramento “river-of-the-river” (RoR.)
Leia também:
As hidrelétricas, a nova cheia histórica do rio Madeira e as tergiversações de Dilma
O escândalo do licenciamento ambiental das hidrelétricas no rio Tapajós – Parte 1
‘Repassar empréstimo às elétricas para o consumidor parece atitude de ditadura’
Luis Fernando Novoa Garzon é professor da Universidade Federal de Rondônia.
Contato: Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo.