Correio da Cidadania

Minha caminhada com o mestre Plínio

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No sábado dia 19 de julho estivemos de novo juntos, todos os amigos do Plínio de Arruda Sampaio, na Catedral da Sé, na missa em sua homenagem. Guardando ainda na memória a Igreja dos Dominicanos inteiramente lotada, no seu velório do dia 9. Suspendi nesse dia uma viagem que faria a Brasília, mas não me livrei de uma reunião por skype, infelizmente na hora da missa de corpo presente. Mas pude me emocionar no dia seguinte, com o vídeo que nos permitirá relembrá-la por muito tempo. Especialmente o agradecimento digno e profundo, ao final da missa, feito por Marietta – ou, como gostava de dizer o Plínio, Dona Marietta.

 

Para explicar por que suspendera a viagem, eu dizia simplesmente: morreu um irmão. Um irmão bem chegado, um irmão maior. Maior em experiência, conhecimento, intuição e visão política, embora nossa diferença de idade fosse de pouco mais de um ano. Numa caminhada que se iniciou há quase 64 anos, quando vim do interior para cursar a Universidade em São Paulo, compartilhando com Plínio a fé cristã e sua exigência de compromisso político pela construção de um mundo igualitário e justo. E na qual podiam ocorrer diferenças na maneira de levar adiante nossas lutas, mas nunca divergências que nos separassem.

 

Pouco depois de entrar na Faculdade de Arquitetura me engajei na Juventude Universitária Católica - a chamada JUC. Plínio era então seu Presidente em São Paulo. Suas relações com os companheiros não eram hierárquicas, mas de generosidade. Ele gostava de relembrar a pergunta que um dia sua mãe lhe fez, ao me ver devorar as refeições que “filava” em sua casa, entre uma e outra reunião de trabalho: onde mora esse menino, que não lhe dão o que comer? Foi nesse convívio que fomos sendo levados, um e outro, e conosco as famílias que fomos constituindo, para aventuras e experiências que entrelaçaram nossas existências e aprofundaram nossa amizade.

 

Participamos juntos de muitas “semanas de estudo” naquele início dos anos 50, na casa de férias que a JUC utilizava para isso na praia de Itanhaém, sob os cuidados do Padre Enzo, montado no jipe que o fazia reviver sua experiência de capelão da FEB na Itália da segunda Guerra Mundial. Quando comecei a fazer parte da “equipe de direção” da JUC, para mais tarde suceder Plínio na Presidência do movimento, sorvi o que ele ia aprendendo de Cadieux, um jovem cristão canadense que viera nos trazer a experiência de planejamento dos movimentos da mocidade católica de seu país.

 

Ao seu lado também recolhi com avidez os ensinamentos do frade dominicano Padre Lebret, teólogo/pesquisador/animador político que acordou nossa geração para o maior dos pecados - a omissão diante da miséria e da desigualdade. Sem deixar de nos dar, com seu livrinho “Princípios para a Ação”, que líamos e relíamos, orientações práticas para enfrentar as consequências dessa tomada de consciência, como a necessidade de ‘‘entrar no banho” se quiséssemos ver as coisas como elas são.

 

Em 1959, Plínio já era promotor público há alguns anos e, nos postos que assumiu pelo interior do Estado, já despertava novas militâncias, como a de trabalhadores como Waldemar Rossi, nosso companheiro até hoje de muitas aventuras, e que deu um comovido testemunho sobre Plínio na última velada de seu corpo, no Cemitério do Araçá.

 

Nesse ano foi chamado para assumir a Sub-Chefia da Casa Civil do Governador Carvalho Pinto e coordenar o Grupo de Planejamento do primeiro plano de governo feito no Brasil – o “Plano de Ação” (do qual decorreu, por exemplo, a construção da Cidade Universitária da USP). Plínio levou para a ação do Estado os sonhos suscitados pelo Padre Lebret, de uma ação política voltada para o real atendimento das necessidades de todos os cidadãos, e não para exercer cargos públicos em benefício próprio.

 

O GP, como dizíamos, instalado ali junto ao Palácio do Governo, era integrado por profissionais de alto nível. Mas Plínio viu a necessidade de uma infantaria para concretizar as orientações econômicas e administrativas do GP e acompanhar a realização do Plano. Foi assim que nos chamou, a alguns "jucistas" do seu tempo, para integrar a “equipe técnica” desse Grupo. Foi quando nos aproximamos de Hélio Bicudo, outro promotor que exercia a função de assessor jurídico do Governador.

 

Um dos meus setores de trabalho no GP era o Poder Judiciário estadual. Plínio um dia me propôs que convidasse alguns desembargadores para um passeio de Kombi por toda a cidade, para que tomassem consciência da dimensão da metrópole. Uma intuição da qual resultou a descentralização da Justiça em nossa cidade.

 

Eleito deputado federal em 1962, Plínio foi logo incumbido de relatar a emenda constitucional que tornaria possível a reforma agrária, uma das propostas mais importantes de Jango Goulart. E eis que um dia à noite ele me chama de Brasília pelo telefone, para me perguntar se eu aceitaria a indicação para dirigir o Departamento de Planejamento da SUPRA, organismo federal que realizaria essa reforma.

 

A essa altura sua atuação política, antes do golpe de 64, já ia mais longe do que a do Partido Democrata Cristão - PDC, pelo qual tinha sido eleito. Almino Affonso, do PTB, Paulo de Tarso Santos e Plínio constituíam o que nós chamávamos, brincando, de APP: base parlamentar da Ação Popular, movimento político de jovens, de inspiração cristã, recém-nascido da JUC, ao qual eu me ligara e do qual um dos fundadores foi o inesquecível Betinho.

 

Cassado no golpe de 64, Plínio se asilou na Embaixada do Paraguai, sendo alojado por ela num pequeno apartamento-escritório em Copacabana, perto de onde eu tinha vindo morar com minha família, quando vim trabalhar na SUPRA. Eu o visitava então regularmente em sua autêntica reclusão, com uma alimentação enviada por um pequeno restaurante das vizinhanças, por iniciativa de Jorge da Cunha Lima e Beth. E lhe contava o que aprendera durante minha prisão no Ministério da Marinha, logo depois do golpe, para aguentar a tensão da expectativa de um desconhecido arriscado.

 

Marietta, que esperava em São Paulo o quinto filho do casal, veio ao Rio quinze dias depois de seu nascimento, para que Plínio o conhecesse e se despedisse da família. Ela ficou hospedada em meu apartamento, que, com todas as nossas crianças, se transformou num verdadeiro jardim de infância, incomodando sem dúvida o vizinho do apartamento abaixo, que por ironia era o General Orlando Geisel... Quando os filhos foram visitar o pai, Eduardo, de quatro anos, não queria de forma nenhuma sair do colo de Plínio.

 

Em fins de novembro, logo depois dessa visita, Plínio seguiu para o Paraguai, onde praticamente nem parou: o Presidente Eduardo Frei, do Chile, imediatamente o convidou para se asilar no Chile, para que lá fosse tratado como deputado que era.

 

Em viagem que fiz ao Chile em 1965, para participar de um seminário sobre promoção popular, encontrei Plínio de novo, em reunião com outros brasileiros cassados - Fernando Henrique Cardoso, Paulo de Tarso, Almino Affonso - num sítio de Jacques Chonchol, que mais adiante viria a ser o Ministro da Reforma Agrária de Allende. Era o tema em que Plínio trabalhava na FAO, das Nações Unidas.

 

No fim de 66 tive que sair também para o exílio, indo para a França com toda a minha família. Voltei a encontrar Plínio quando me transferi em 1970 para o Chile, pouco antes da eleição de Allende. Durante uns tempos, acompanhando e aprendendo com a experiência da Unidade Popular, nossas famílias conviveram por lá. Um dia Stella, ao voltar para casa, constatou que tinha “esquecido” nosso filho João na casa de Plínio e Marietta, onde ele gostava de brincar com Fernando, o então caçula dos seus filhos.

 

Com o golpe de Pinochet, os brasileiros exilados no Chile se espalharam pelo mundo. Plínio fora antes com toda a família para os Estados Unidos, onde nasceu Vicente, seu sexto filho, e eu voltei para a França com minha família. Muitos anos depois, quando já estávamos de novo no Brasil, a amizade entre os jovens das nossas famílias continuava. Plininho, o segundo filho de Plínio, em pós-doutorado em Paris no início dos anos 90, às vezes até ajudava uma de minhas filhas, que lá vivia, a cuidar de minha primeira neta, hoje com 22 anos, quando seus pais saíam para algum descanso...

 

Nossas voltas para o Brasil se deram com uma diferença de alguns anos. Com mais vocação para a política partidária do que eu, Plínio voltou logo que pôde e se engajou em uma tentativa frustrada de criar um partido socialista. Quando cheguei aqui já estava avançado o processo de criação do PT, no qual Plínio se bateu pela construção de um partido que formasse seriamente seus militantes, organizados em núcleos de base. Optei por não entrar no novo partido, por ter sido acolhido pelo Cardeal Arns para trabalhar, com Stella, na assessoria das Comunidades Eclesiais de Base e retomar minha assessoria à CNBB (esta se iniciara em 1964, antes de minha partida para o exílio). D.Paulo, com razão, preferia que seus assessores não tivessem uma filiação partidária, para poderem dialogar com todos, como ele fazia. Mas eu acompanhava de perto a atuação de Plínio dentro do PT, quase como militante do seu partido.

 

Eleito deputado-constituinte em 1986, Plínio apoiou e se engajou no processo das “emendas populares”, que procuravam responder ao desafio lançado pelo Plenário Pró-Participação Popular na Constituinte, de cuja criação eu participara: “constituinte sem povo não cria nada de novo”. Ele então apresentou com o senador Mario Covas e o deputado carioca Brandão Monteiro a emenda ao regimento interno que autorizava as “emendas populares” ao projeto de Constituição. Foi essa conquista que abriu a porta para as atuais Iniciativas Populares de Lei, das quais se tornou mais conhecida, nos últimos anos, a da Ficha Limpa.

 

Ajudei um pouco seu trabalho como constituinte, sistematizando as propostas que surgiam para a reforma da administração da Justiça, área em que se concentrou e que resultou na ampliação do papel do Ministério Público, a que Plínio pertencera. Por outro lado, ele nos ajudava e nos aconselhava na ação dos Plenários Pró-Participação Popular, que constituía meu principal engajamento no processo constituinte.

 

Na medida em que ia assumindo novas funções - como a de vereador em São Paulo no início dos anos 90, após filiar-me ao PT, e de co-fundador, com um pequeno grupo, do Fórum Social Mundial na década seguinte -, minha própria atividade política me tornava menos disponível para acompanhar as iniciativas de Plínio. Assim mesmo ajudei como pude em sua campanha eleitoral para Governador do Estado em 2006, passando inclusive muitas horas nos estúdios onde gravava seus programas de televisão.

 

E volta e meia surgiam propostas de ação em que nos uníamos com outros em tentativas de mobilização social pelo “outro mundo possível”. Como quando inventamos, em 2004, quase dois anos depois da posse de Lula como Presidente, a ABCD – Ação Brasileira de Combate à Desigualdade. Pretendíamos recolocar com força na agenda nacional a luta que nos levara, 50 anos antes, a nos engajar na política como jovens cristãos, e que começava a ser esquecida como principal objetivo do governo que tínhamos ajudado a eleger.

 

Com o passar dos anos, Plínio começou a viver, no começo de 2001, dificuldades de saúde – que não o impediram de se candidatar em 2010, eu diria heroicamente, à Presidência da República pelo PSOL. Ele tinha saído do PT, acompanhado de grande número de seus militantes. Pouco depois eu também saí do PT, mas não entrei em nenhum partido. Preferi me consagrar à ação política da sociedade civil, que tem que se organizar horizontalmente, em rede, se quiser manter sua autonomia como sujeito político. Uma diferença de atuação que não nos impediu de continuarmos juntos. Antes pelo contrário, aproveitamos a riqueza da diversidade.

 

Ultimamente nos encontrávamos, de tempos em tempos, para conversas longas e profundas, por iniciativa de Danilo Prado Garcia, o jucista que me sucedera na Presidência da JUC de São Paulo, como eu sucedera a Plínio. Organizávamos encontros tranquilos de dois dias, o primeiro dos quais foi exatamente no sítio do Plínio em São João da Boa Vista, ou na serra, como ele dizia. Éramos nós três e mais um membro da equipe nacional de direção da JUC daqueles tempos, Celso Lamparelli, juntamente com nossas companheiras de tantos anos, procurando entender o que se passa no mundo e pensando juntos a continuidade de nossas caminhadas. Espero que esses encontros continuem, com Marietta conosco, e a esplêndida memória de Plínio a nos acompanhar.

 

PS: Plínio era a única pessoa que até hoje me chamava de Chico Ferreira, de meu segundo sobrenome, coisa dos tempos em que nos conhecemos.

 

 

Chico Whitaker é da Comissão Brasileira Justiça e Paz no Conselho Internacional do Fórum Social Mundial e responsável pela Lei 9840, que pune crimes eleitorais, feita com base na iniciativa popular.


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