Correio da Cidadania

Marina, a verdade tropical

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Marina Silva está no centro do turbilhão político nacional. Assumiu a cabeça de chapa da candidatura do PSB após a morte do ex-governador de Pernambuco, Eduardo Campos, e na primeira pesquisa, com a poeira do desastre já assentada, surpreendeu e emergiu para o segundo lugar da disputa, deixando o tucano Aécio Neves para trás e se aproximando perigosamente da presidente Dilma Rousseff, vencendo em um possível segundo turno. A partir daí, a campanha tomou outra direção e Marina é agora o alvo prioritário.

 

Mas como entender Marina? Como é possível que seu discurso abstrato, muito vezes hermético, consiga ter a aderência que faça possível sua chegada ao Palácio do Planalto em janeiro de 2015? E como entender todas essas variáveis em conjunto com a possibilidade de que o partido que há pouco navegava em águas tranquilas rumo aos vinte anos no governo central do país, e que comandava o movimento social com influência histórica inabalável, perca a eleição para a “nova política”?

 

Foi o PT quem nos trouxe a esta situação. Acreditou que a manutenção de sua base subproletária recém-promovida ao mundo do consumo lhe garantiria vida eterna. A hegemonia lulista, no entanto, é uma hegemonia tensa, pois não se funda nas chamadas “bandeiras históricas” do partido e, portanto, não tem raízes fortes. Na medida em que o ritmo de crescimento diminui, a mobilidade também fica estagnada, e isso é mais sensível para aqueles que buscam mais avidamente a ascensão social e a classe média, os jovens. A reação ao partido no poder é previsível.

 

Mas não para todos, pelo visto. O petismo continua dando de ombros, deixando o desgaste com a política na conta dos outros, fazendo seu jogo entre Kátias e Garotinhos. Quem acompanha e pensa a política sabe que o que Marina diz talvez não faça sentido. Mas ela sabe bem que é exatamente esse sentido que a maioria hoje rejeita. Na pesquisa Ibope de 24 de agosto, além dos evangélicos, Marina ganha no Sudeste e nas capitais, entre aqueles com ensino médio e superior e entre os mais jovens, batendo com o perfil das manifestações de junho de 2013.

 

O que falar então dos jovens nascidos para a política depois de 2003? A campanha petista, no entanto, despreparada para qualquer outro cenário que não fosse o da polarização com o PSDB, repisa o assunto à exaustão. Na dúvida, atira em Marina com o que tiver na frente, como um zagueiro inábil que chuta para o lado para o qual o nariz aponta. A última peripécia dos comissários do partido é vasculhar a gestão de Marina à frente do Ministério do Meio Ambiente do governo Lula. Querem responsabilizá-la, por exemplo, pelo rigor com que tratou as liberações ambientais da usina de Belo Monte. Ou seja, querem culpá-la por fazer seu trabalho.

 

Lula já percebeu a enrascada em que seu partido se encontra. Em várias manifestações, tem defendido que não se pode “negar” a política. “Votar na presidente Dilma para que a gente não deixe o Brasil voltar ao que era antes de 2002. Os mais jovens não sabem o que era o Brasil antes de eu chegar à presidência. Por favor, perguntem para os seus pais, para os seus avós, para saber que este país era o país do desencanto, era o país em que o ministro da Fazenda, todo final de ano, ia a Washington pedir esmola para fechar o caixa”, disse o ex-presidente, em tom de apelo, em evento de campanha em São José dos Campos.

 

*

 

Marina tem sido acusada, por exemplo, de ter contatos excessivamente próximos ao banco Itaú, notadamente a uma de suas herdeiras, a cientista social Neca Setúbal, também coordenadora do programa de governo da candidata. Este é um exemplo de como a crítica pela esquerda tem todas as chances de naufragar mais uma vez.

 

Está parado no Supremo Tribunal Federal o julgamento das ações sobre os planos econômicos das décadas de 1980 e 1990 (Bresser, Verão, Collor 1 e Collor 2) e as perdas na caderneta de poupança decorrentes desses planos. O julgamento, iniciado em novembro de 2013, deveria ter sido retomado em 20 de maio. A longa batalha jurídica entre bancos e poupadores – existem mais de 1 milhão de ações individuais e mais de mil ações coletivas – teve, até agora, todas as ações individuais dos planos Verão e Bresser com decisões favoráveis aos poupadores.

 

Atuando como árbitro de interesses conflitantes, o governo Dilma não hesitou. O modo de regulação lulista não permite recuos. Os poupadores, integrantes das classes média e trabalhadora tradicionais, não representam a base eleitoral do partido e, de todo modo, já tiveram perdas salariais ao longo da última década. O governo não admite que os bancos sejam condenados neste processo e desde o primeiro momento fez terrorismo com a possibilidade de quebra do sistema financeiro, em parceria com a Federação Brasileira dos Bancos (Febraban).

 

Não interessa a nenhum dos atores políticos tradicionais defender os interesses dos poupadores, mesmo que sua causa seja obviamente justa. Vale, sobretudo para o PT, o pacto conservador: manter os grandes lucros dos setores dominantes da economia e a manutenção do poder de compra e de crédito da “nova classe média” – o topo e a base da pirâmide. Aquela classe média, se reclamar, será chamada de “abominação” e terá sua opinião desqualificada. Classe média não sofre.

 

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Assim, nos últimos anos, o PT tem usado a culpa contra os críticos à esquerda: devem defender o Partido dos Trabalhadores contra os avanços da direita, sob ameaça do fogo eterno. E tentam o mesmo agora, contra Marina. Conseguiu o aval que queria para promover o modo de regulação lulista com poucas resistências, sobretudo nos movimentos sociais. Dois exemplos recentes demonstram que, mais do que um canal de comunicação, a relação entre eles e o governo petista desorganizou e esvaziou sua própria capacidade de atuação.

 

No começo de fevereiro, o governo resolveu cancelar a realização da II Conferência Nacional de Educação, sem qualquer justificativa razoável. A despeito da perplexidade geral, a reação dos movimentos de educação ficou exatamente nisso. Com uma infinidade de grandes exemplos de participação e construção popular e democrática desde o fim dos anos 1970, passando pela Constituinte de 1988 até o plebiscito contra a ALCA no final do século, os movimentos atuais se contiveram em sua impotência diante da negativa do governo. Não passou pela cabeça de ninguém realizá-la à revelia do partido que ajudaram a criar.

 

O segundo exemplo vem na esteira dos acontecimentos de junho de 2013. Uma das propostas da presidente Dilma para acalmar a massa furiosa que lhe aplicou uma rasteira em sua popularidade foi a realização de uma Constituinte exclusiva para a Reforma Política. Rechaçada por políticos e juristas, esfacelou-se rapidamente. No entanto, um movimento pelo plebiscito da reforma política começou a partir de movimentos ligados ao PT e com aval oficial. Sempre que pode, o partido a trata como quimera para a solução dos desvios no sistema político-partidário do qual se beneficiou para manter-se no poder.

 

Independentemente da necessidade de uma Reforma Política – os exemplos para a sua pertinência são muitos –, o engajamento na proposta tirada da cartola do marqueteiro da presidente apenas comprova que os movimentos sociais hoje só se mobilizam quando empurrados pelo governo. As boas intenções da proposta de Constituinte exclusiva, que buscam uma “verdadeira” representação da população brasileira – os evangélicos deveriam apoiar o movimento –, não resistem ao fato de que elas só existem porque o partido teme perder o poder se não responder à difusa insatisfação que ronda as ruas e vilas desde o ano passado. Nada mais velha política do que ser guiado por uma proposta populista.

 

Assim querem representar as reivindicações de junho. Mas apenas Marina conseguiu enxergar o espírito do tempo. Sua falta de sentido é exatamente o sentido que querem. Marina é a síntese da política que colocou o conflito de classes no fundo do armário e que acreditou que o futuro da esquerda era lidar com as diferenças, invertendo o sinal que dizia que o fim das desigualdades econômicas resolveria as diferenças identitárias. Abandonando a perspectiva materialista, a esquerda tradicional, traumatizada com a queda do Muro de Berlim, agora deixa a nova política a quem legitimamente a representa.

 

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Na última oportunidade em que esteve à frente do governo espanhol, entre 2004 e 2011, o Partido Socialista Obrero Español (PSOE) implementou uma série de propostas progressistas, sobretudo em relação aos direitos civis. Tendo abandonado o marxismo ainda em 1979, abraçou a austeridade e mergulhou o país em uma crise econômica que resultou em uma taxa de desemprego atual de 22,8%. Entre os jovens, são 51,4%. Enxotado do poder pelo povo, hoje amarga a concorrência de movimentos como o Podemos, nascidos dos Indignados e que agora fazem a disputa institucional. Pior: viu a direita reverter conquistas, como a anulação da lei de 2010 que autorizava o aborto em até 14 semanas e em até 22 semanas em caso de malformação do feto, e não teve forças para barrar.

 

Não importa que as propostas de Marina sejam vazias, contraditórias. Ela é a verdade tropical, o resultado da associação entre meios e fins, PT e PSDB, movimentos e ONGs, velha classe média e nova classe trabalhadora, sonhos e práticas políticas de partidos e movimentos que nasceram e morreram nos últimos 30 anos. É a vitória final do tropicalismo enquanto hegemonia cultural. Ex-leninistas nunca conseguirão ser mais convincentes do que ela.

 

 

 

Henrique Costa é mestrando em ciência política na USP.


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