Luciana Genro e a trajetória das esquerdas petistas
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- Rudá Guedes Ricci
- 18/09/2014
Ontem, a estrela de Luciana Genro brilhou. Foi protagonista do maior ataque que se viu no Brasil num debate eleitoral televisionado (no dia de setembro, promovido pela CNBB) . Em poucos minutos, desferiu críticas e nomeou erros e escolhas do PSDB, acusando o candidato tucano, Aécio Neves, de parasita, de estar num partido que ensinou o PT a roubar, de ser fanático pela privatização a ponto de usar dinheiro público para construir aeroportos de uso particular. Escrever, neste momento, suas palavras, me causa certo constrangimento, tal a potência de sua ofensiva. Algo inédito que, obviamente, ressoa como o inesperado.
Luciana Krebs Genro não é novata em política. Nasceu em 1971. Filha de Tarso Genro, que veio do Partidão e se tornou uma das lideranças do PT gaúcho, dividindo este principado com Olívio Dutra. Neta de Adelmo Genro, militante do trabalhismo gaúcho que foi perseguido pelo regime militar. Começou a atuar politicamente com 14 anos de idade (no emblemático ano de 1985, ano da posse de Sarney como presidente da República) numa escola que leva o nome do ex-presidente do Rio Grande do Sul e formulador da Constituição Estadual deste estado em 1891, o positivista Julio de Castilhos. Na sua primeira eleição, disputando vaga na Assembleia Legislativa, em 1994, com 23 anos de idade, se torna deputada, logo depois do movimento pelo impeachment de Collor. Sua pauta mais significativa como parlamentar foi a denúncia de corrupção em órgãos de saneamento do Rio Grande do Sul. Reeleita em 1999, enfrentou a dura situação de apoiar a greve dos professores gaúchos num momento em que seu partido, o PT, governava pela primeira vez o Rio Grande do Sul. Foi punida pelo partido. Em 2002 foi eleita deputada federal, ainda pelo PT. A proposta de reforma da previdência enviada pelo presidente Lula ao Congresso Nacional foi o estopim para o confronto final que levou à sua expulsão do PT. Luciana foi uma das fundadoras do PSOL.
Reproduzi rapidamente estas passagens de seu currículo político porque se confunde, de alguma maneira, com a trajetória de várias correntes petistas à esquerda.
O PT teve várias correntes internas de inspiração marxista. A grande maioria de origem trotskista e poucas de inspiração maoísta e até mesmo origem stalinista. Várias dessas correntes se estruturaram, até o final dos anos 1980, como partidos encastelados no PT. Algo, aliás, que ocorreu com o MDB (com a “hospedagem” do PCB e PCdoB) e, depois, com o PMDB (talvez, o caso mais conhecido seja do MR-8).
As correntes trotskistas mais famosas do PT foram a Convergência Socialista (hoje, PSTU, da corrente internacional morenista), a Libelu (vinculada à corrente internacional lambertista) e a Democracia Socialista (vinculada à corrente internacional mandelista). Mantiveram uma relação de amor e ódio com Zé Dirceu (ex-Ação Libertadora Nacional/ALN e ex-Movimento de Libertação Popular/Molipo). Embora Dirceu tenha militado na frente de massas da ALN (e não na militar), foi se revelando como dirigente petista muito mais afeto à burocracia e comando central partidário que o próprio Marighela.
Havia outras correntes derivadas do Partidão ou com proximidade com a lógica soviética, como MCR ou Ala Vermelha ou até mesmo o PRC (Partido Revolucionário Comunista), que teve Ozéas Duarte, Aldo Fornazieri e José Genoíno nas suas fileiras. Mas nada que se comparasse à articulação liderada por Zé Dirceu.
O fato é que este impasse interno entre correntes marxistas criou várias histórias pouco públicas do PT. As lutas de massas, as campanhas eleitorais e pronunciamentos de lideranças nacionais formavam uma enxurrada que encobria os afluentes à esquerda da disputa intestina dessas correntes.
Assim, numa divisão didática, seria possível sugerir várias histórias paralelas que conformaram o PT: a história da construção de sua burocracia interna, a história das lutas de massas, a história da organização eleitoral e construção da governabilidade do governo do país e a história da disputa entre correntes internas, em especial, as de inspiração marxista.
A história da construção da burocracia interna se embaralhou com a da organização eleitoral e montagem do arco de alianças e de governabilidade do PT. E foi esta articulação que, a partir dos anos 1990, alijou as forças políticas envolvidas com as outras histórias paralelas do PT (a das lutas de massa e a da disputa programática entre correntes internas do partido).
O ataque de Luciana Genro a Aécio Neves no debate organizado ontem (16) pela CNBB lembrou os velhos tempos do PT, anterior à vitória de Lula em 2002. Dura e afiada, Luciana encarou o adversário como opositor de classe. Não perdoou um segundo. Típico embate dos primeiros anos da vida do Partido dos Trabalhadores e de toda tradição de esquerda marxista onde o programa está acima de tudo. Aécio revelou total desconhecimento deste terreno de disputa. Fugiu, tentou mudar de assunto, tentou desqualificar Luciana. Continuou sendo caçado pela verve metálica da candidata do PSOL como num carrossel enlouquecido.
A trajetória de Luciana Genro cruza com a de outros militantes que foram alijados do centro do processo decisório do PT. Daí certa surpresa de muitos que acompanharam o debate de ontem. Até então, era Eduardo Jorge, outro ex-militante petista, médico sanitarista oriundo do Partidão que sempre atuou na periferia da cidade de São Paulo, que chamava a atenção pela desenvoltura e perspicácia, além de objetividade e clareza programática. Mas havia mais gente oriunda do PT no debate de ontem. E gente que nunca esteve no centro do poder do lulismo. Era o caso de Luciana Genro. Forjada no PT pré-lulismo, vimos na tela de televisão ressurgir a escola das correntes internas do PT. Uma agressividade desconcertante, foco ideológico e programático, rapidez de raciocínio e coragem.
A ausência deste PT no PT de hoje é o que cria tanta perplexidade em militantes contemporâneos do partido de Lula quando jovens saem às ruas em protesto. E é o que cria frio na barriga quando Dilma Rousseff entra no estúdio para debater com seus adversários.
A ausência, enfim, é o que está transformando o PT em Partido da Ordem.
Rudá Guedes Ricci é sociólogo. Blog: http://www.rudaricci.com.br/
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