Quanto vale o arranjo social-liberal em tempos de ajuste neoliberal?
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- Luis Fernando Novoa Garzon
- 22/09/2014
A pergunta é uma resposta aos que ainda se consideram inteiros depois de alianças amplas o suficiente para manter moeda e território plenamente apropriáveis e conversíveis, ou seja, para manter estável o “negócio Brasil” depois de 2002. Para os mercados, mais que soberanos, cortejados por Dilma e candidaturas variantes, o que conta é capacidade de sacrifício adicional de políticas domésticas e gastos sociais, requeridos para o ajuste de 2015. As ecléticas coalizões postas em torneio valerão o quanto pesarem na implementação do aperto na radicalidade necessária.
O espaço à esquerda do PT foi implodido à medida que este se aferrou a um centro deliberadamente estendido à direita, em um esquadro de outorga de superpoderes aos grupos privados. Depois da sanção de Lula e o PT aos privilégios adquiridos nos anos de reestruturação neoliberal, a direita pôde então relaxar e naturalizar suas premissas: fundamentos da “boa economia” em troca dos da “boa sociedade”.
Já os segmentos e agrupamentos que permaneceram efetivamente na esquerda, na contramão, no contra-fluxo do capitalismo, ou seja, tudo que possa ser coletivo, comunitário, democrático, equilibrado, foram expelidos do campo da “normalidade institucional”. Logo foram rotulados como “ultraesquerda”, já que o PT, sensata ou oportunisticamente, tinha se integrado aos parâmetros de longa duração da modernização conservadora do país. A prefixação “ultra” passa então a definir o confinamento do protesto ou a dissensão tolerável.
Convenhamos, depois de tantas metamorfoses e concessões, como compartilhar da mesma percepção que “chegamos por ora ao teto possível de conquistas sociais”? Quer dizer que para a manutenção dos estreitos limites do ainda não privatizável e flexibilizável “dependemos absolutamente da recondução de Dilma ao governo”?
Os limites parecem mais instransponíveis para os que se autolimitaram aos vetos sistêmicos postos. Palocci indicava com a famigerada frase “esse tema está fora da pauta”, ainda na transição do governo FHC, o grau de renúncia à transformação e, portanto, o nível de pactuação com os capitais. Doze anos depois, é preciso insistir que, enquanto a dívida pública e o tripé macroeconômico que a alimenta não forem colocados em pauta, não haverá país, nação ou Estado nenhum por “disputar”.
Estivessem comprometidos com interesses “republicanos” e “nacionais”, deveriam preparar a população para o mais agudo conflito distributivo que se avizinha em arenas amplas e reconhecidas, e não simplesmente deixar que oligopólios e bancos estabeleçam o cronograma e direcionalidade do acerto de contas, como já vem ocorrendo.
O que conferiu reeleição a FHC foi cavalgar o Real com o mote: “Ou eu ou o caos”. A chantagem se repete e se perfila em paralelo à chantagem do mercado financeiro com sua orquestração da movimentação de capitais. Caos antecipado para que o governo transforme desde já essas prerrogativas em políticas de Estado, não politizáveis, portanto. Do contrário, o caos continuará sendo laboriosamente construído. A chantagem é sistêmica e paira sobre os três programas tidos como “viáveis”, tal qual uma espectral “carta aos brasileiros” perene, em expansão e com um pendão de uma (des)constituinte.
O PT não é o inimigo, mas dorme com ele, lhe dá guarida, confere-lhe títulos de heroísmo pátrio, desqualificando tudo que a ele se oponha como entrave, barreira ou obstáculo. Criminalizados, consequentemente, os que ficam fora desse pacto de crescimento a qualquer custo. Nem reconhecimento nem igualdade, apenas fuga para a frente da atual matriz de assimetrias.
Sobre os protestos de junho, se partidos da esquerda social não os conduziram, foram os que estavam mais próximos deles, tanto que, ainda em julho de 2013, Abin e as Polícias Militares de SP e RJ procuraram envolvê-los nos inverossímeis processos de criminalização das manifestações. E foram justamente eles, com suas bandeiras empunhadas, que tiveram de enfrentar as gangues fascistas que afluíram às ruas, ditando o verde e amarelo como matiz única e inegociável.
Processos de adaptação e oligarquização partidária, como sabemos historicamente, não podem ser reduzidos a um evento ou causa única. Chamemos as “traições” de renúncias condicionadas – desde 1994, com as primeiras contribuições das grandes empreiteiras à candidatura de Lula, até os programas de concessões de infraestrutura no final do governo Dilma – e teremos um cenário mais realista da auto-domesticação do PT e do verdadeiro “sentido do lulismo” para os de cima.
O que pode oferecer a ex-esquerda senão a mitigação do que considera inevitável, mas não declara: arrocho sobre os trabalhadores, maior esvaziamento das políticas sociais e continuidade do avanço selvagem da fronteira da mercadorização sobre novos territórios e bens públicos?
Em nome da urgência de não perder, no curto prazo, duvidosas margens de autonomia relativa, entregam sem maior resistência os comandos de última instância às frações hegemônicas do bloco de poder. Nos agronegócios, na mineração e na energia, mais mudanças, quer dizer, mais concentração e mais lucros. Nos setores de infraestrutura, PPPs (Parcerias Público-Privadas) ao gosto do freguês é a palavra de ordem última.
No plano externo, se houve real distanciamento do imperialismo norte-americano, o realinhamento rebaixado do país no seio dos BRICs, mais especificamente como grande supridor de matérias-primas da China, não nos trouxe nada parecido com alguma “inserção soberana” ou a internalização de centros de “inovação tecnológica”. Ao contrário, por pressão chinesa, o Brasil está sendo “convidado” a negociar com a Parceria Transpacífico (TPP) e com a Aliança Pacífico. Em breve dirão que será necessário firmar acordo com a União Europeia e os EUA (o TAFTA) para “contrabalançar” o peso chinês sobre nossa dinâmica e perfil produtivos.
Por um tempo, o carimbo de “ultraesquerda” ajudou a convencer a direita, oclusa e onipresente, que o PT era o centro necessário e inescapável. Agora que precisam pendular retoricamente para a esquerda para reter bases eleitorais despolitizadas em fuga, a ultraesquerda torna-se incômoda de novo, mesmo com todo seu “residualismo”. Mas o resíduo que importa é aquele proveniente das vagas de lutas massivas no campo e nas cidades a partir do final dos anos 70, um material imagístico valioso, memória indispensável para se fundir com o novo repertório de resistências trazido pelas Jornadas de Junho.
Por isso, um pouco mais de pudor e respeito com o campo no qual se originaram é o mínimo que se pode exigir dos que agora vêm falar em “risco iminente de perda de direitos sociais e de soberania nacional”. Por isso, quem crê que um novo ciclo de crise e mobilização social teve início a partir de 2011 sabe o quão fundamental é fortalecer os bastiões do pensamento crítico e das dinâmicas de auto-organização. E por isso não se renderá à chantagem dos mercados ou de seus ventríloquos e seguirá com sua agenda de enfrentamento cotidiano do mundo da mercadoria, o que inclui votar, com orgulho e de cabeça em pé, em uma das candidaturas da frente de esquerda, que se apresenta de forma latente com o PSOL, o PCB, o PSTU e o PCO, além de outras organizações que não comungam da forma-partido clássica.
Havendo segundo turno, conforme reza o script das abdicações ilimitadas, será desejável construir uma posição conjunta deste campo, que aponte para as mudanças profundas e estruturais que a população deseja, mas que não estão colocadas “em pauta” nessas eleições.
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Luis Fernando Novoa Garzon é sociólogo, professor da Universidade Federal de Rondônia.
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